Conferências, Práticas, Cartas, Poemas
1977 – Editorial Kier S.A – 3ª Edição.
Buenos Aires – Agentina
(Da edição em inglês)
Os escritos e conferências de Swami
Vivekananda já publicados, chegam a mais de 3.000 páginas. Como são muitas as
pessoas que não têm a seu alcance todo esse material ou que não dispõe de tempo
ou de paciência para lê-lo em sua totalidade, há tempos atrás se necessitava de
uma seleção daquelas obras. Mas efetuar tal seleção, a tarefa não foi fácil. O
Swami Vivekananda era um Vidente inspirado, nascido para cumprir uma missão;
por conseguinte, tudo o que brotou de seus lábios ou de sua pena, têm profundo
significado e resulta difícil resolver o que desejar e escolher, sobretudo
quando se dispõe de um espaço limitado. Além disso, sempre existiram
divergências de opinião acerca de quais escritos ou conferências seriam mais
importantes.
Apesar de tudo, nos aventuramos a
publicar este livro de seleções, procurando que nele estejam representados
todos os aspectos de sua obra. Para isso, escolhemos algumas de suas
conferências, discursos, perguntas e respostas, ensinamentos inspirados, cartas
e poemas.
Pode ser que estas seleções não
sejam aceitas por todo mundo como expoentes do melhor que escreveu e disse o
Swami, apesar de nosso sincero esforço para que assim fosse, mas darão, ao
menos, um vislumbre da versátil genialidade de Vivekananda e do alcance e
profundidade de sua mensagem. Abrigamos a esperança de que em alguns leitores
desperte o desejo de estudar a forma mais completa da identidade do Swami.
O Editor
Advaita
Ashrama
Mayavati,
Himalayas
23 de
fevereiro de 1944
O compilador dessas Seleções, Swami
Pavitrananda, nos autorizou a traduzi-las ao espanhol e, além disso, de
expressar seu agradecimento pelas publicações que temos feito (desde 1909, com
a 1ª edição do EVANGELHO DE RAMAKRISHNA) nos agraciou com palavras de alento
para que possamos perseverar; por longo tempo, na difusão de tão sublimes
ensinamentos.
Tampouco nos faltou seu paternal
interesse por nossa ventura pessoal, com carinhosas palavras que, por sua
sinceridade, temos sentido como uma bênção.
Por tudo o que expressamos aqui ao
Swami Pavitrananda, nosso profundo agradecimento.
O Editor.
Raramente após longos períodos de
tempo, chega a este planeta um ser que, evidentemente, provém de outras esferas
e que traz consigo a este mundo de misérias algo de glória, de poder, de
esplendor, daquela longínqua região de onde partiu. Caminha entre os homens,
mas se sente aqui como um estranho. É um peregrino, um estrangeiro que se acha
de passagem e que só permanece uma noite.
Participa da vida daqueles que o
rodeia, compartilha suas alegrias e dissabores, ri com eles e com eles chora,
mas em nenhum momento esquece quem é, de onde veio, nem para quê veio. Jamais
esquece sua divindade. Lembra que é o grande, o glorioso, o majestoso Eu. Sabe
que provém daquela região inefável e suprema que não necessita do sol nem da
lua, porque está iluminado pela Luz das luzes. Sabe que ele era, muito
antes daquele instante em que “todos os filhos de Deus cantaram juntos sua
alegria”.
Vi, ouvi e adorei a um destes
seres. A seus pés depositei a devoção de minha alma.
Tal ser está além de toda
comparação, porque transcende todas as medidas e ideais comuns. Outros podem
ter brilho, mas ele deslumbra, porque sua mente é luminosa e porque possui a
faculdade de se colocar em contato imediato com a fonte de toda sabedoria. Está
desligado do lento processo que limita aos seres humanos comuns. Outros podem
ser grandes, mas só o são se comparados com os de sua própria espécie. Outros
podem ser bons, poderosos, talentosos, por ter mais bondade, mais poder, mais
talento que seus semelhantes; é só uma questão de comparação. Também um santo é
mais santo, mais puro e vive mais dedicado a um só ideal que o comum dos
mortais. Mas não existe comparação possível, tratando-se de Swami Vivekananda.
Ele constitui, por si só, uma categoria. Pertenceu à outra ordem de seres; não
era deste mundo. Era um ser radiante que desceu de uma esfera mais alta, para
cumprir um propósito definido. Podia-se prever que não permaneceria aqui muito
tempo.
Deveria nos surpreender que a
própria natureza se regozije, quando ocorre um nascimento assim, que os céus se
abram e os anjos entoem hinos de louvor?
Bendito o país em que nasceu,
benditos aqueles que viveram nesta terra no mesmo tempo que ele e três vezes
benditos aqueles poucos que se prostraram a seus pés!
(Memórias
de Sister Christine)
Cada alma é potencialmente divina.
A meta é manifestar esta divindade que trazemos dentro de nós,
controlando a natureza externa e interna.
Atingir essa meta por meio do trabalho, da devoção, do controle psíquico
ou da filosofia; por mais de um ou por todos esses seres e serem livres. Nisto
consiste a religião.
As doutrinas, dogmas, rituais, livros, templos ou formas, são somente
detalhes secundários.
Swami Vivekananda
Chicago, 11 de setembro de 1893.
Irmãs e irmãos da América:
Meu coração se enche de uma alegria indescritível ao poder me
levantar-me em resposta às calorosas e cordiais boas-vindas que nos haveis
dado. Dou-lhes a graça, em nome da mais antiga ordem dos monges do mundo;
dou-lhes as graças em nome da mãe das religiões e dou-lhes em nome dos milhões
e milhões de indianos de todas as classes e seitas.
Agradeço, também, a alguns dos oradores desta tribuna que, ao
referirem-se aos delegados do Oriente, disseram que esses homens de longínquos
países podem reclamar para si a honra de levar às diferentes terras, a idéia de
tolerância.
Sinto-me orgulhoso de pertencer a uma religião que tem ensinado ao mundo
não só a tolerância, mas também a aceitação de todos os credos religiosos. Não
só acreditamos na tolerância universal, mas aceitamos todas as religiões como
verdadeiras.
Estou orgulhoso de pertencer a uma nação que deu hospitalidade aos
perseguidos e aos refugiados de todas as religiões e de todas as nações da
terra. Orgulha-me poder dizer que temos abrigado em nosso seio os remanescentes
mais puros dos israelitas, que chegaram à Índia do Sul e refugiaram-se em nós,
no mesmo ano em que seus santos templos foram destruídos pela tirania romana.
Sinto-me orgulhoso de pertencer a uma religião que amparou e ampara os
remanescentes da grande nação zoroastriana.
Citarei, irmãos, algumas linhas de um hino que recordo terem repetido
desde minha mais tenra infância e que todos os dias repetem milhões de seres
humanos: “Assim como os diferentes riachos têm suas fontes em diversos
lugares e vertem todas suas águas no mar, assim, oh Senhor!, os distintos
caminhos que os homens tomam por diferentes tendências, por diversas que
pareçam, tortuosas ou retas, conduzem a Ti”.
A presente convenção, que é uma das mais augustas assembléias que
jamais se havia constituído é, em si mesma, uma justificativa, uma declaração
ao mundo da maravilhosa doutrina predicada no Gita 1: “Qualquer um que se
dirija a Mim, por qualquer caminho que seja, Eu chego a ele; todos os homens
estão lutando em caminhos que, finalmente, conduzem a Mim”.
1. Pronuncia-se Guita.
O sectarismo, a intolerância e seu horrível descendente, o fanatismo, apoderaram-se, há muito tempo, deste formoso planeta. Encheram a terra com violências, regando-a, com farta freqüência, com sangue humano; destruíram a civilização e levaram nações inteiras ao desespero. Se não fosse por esses horríveis demônios, a sociedade humana estaria muito mais adiantada do que está atualmente.
Mas sua hora aproxima-se e espero,
fervorosamente, que a campainha que repicou esta manhã em honra desta
convenção, seja o toque fúnebre pela morte de todo fanatismo, de todas as
perseguições com a espada e com a pena e de todos os sentimentos pouco
caritativos entre pessoas que seguem seu caminho para o mesmo fim.
“POR QUE
NÃO ESTAMOS DE ACORDO”
Swami
Vivekananda
(15 de
setembro de 1893)
Lhes contarei uma pequena história:
Ouvistes dizer o eloqüente orador que acaba de falar: “Paremos de nos injuriar
uns aos outros”, e mostrava-se muito aflito de que houvesse sempre tanta
discórdia.
Creio que seja oportuno fazer
referência a uma história que ilustrará a causa desta desavença: “Uma rã vivia
num poço. Fazia muito tempo que ali vivia e, todavia, era uma pequena, muito
pequena rã. Naturalmente, os evolucionistas não estavam ali para nos dizer se a
rã havia perdido seus olhos ou não, mas por conveniência do conto, devemos
admitir que tinha olhos e que diariamente limpava a água de todos os vermes e
bacilos que vivem nela com uma energia que faria honra a nossos modernos
bacteriologistas. Desta maneira, tornou-se lustrosa e gordinha. Bem, certo dia,
outra rã, que vivia no mar, passava por ali e caiu no poço”.
- De onde és?
- Sou do mar.
- Do mar? É muito grande isso? É
tão grande quanto meu poço? – e deu um salto de um lado a outro do poço.
- Minha amiga – disse a rã do mar –
como queres comparar o mar com teu pequeno poço?
Então a rã deu outro salto e
perguntou:
- É assim tão grande o mar?
- Que besteira dizes; comparar o
mar com teu poço!
- Bem, pois – disse a rã do poço –
não pode haver nada maior que meu poço; não pode haver nada maior que isso;
esta rã é uma embusteira, fora daqui!
Esta tem sido a eterna
dificuldade.
Eu sou hindu. Resido em meu próprio
e pequeno poço e penso que todo o mundo se reduz a meu pequeno poço. Os
cristãos moram em seu pequeno poço e pensam que este é o mundo inteiro. Os
maometanos habitam em seu pequeno poço e crêem que ele é o mundo todo. Tenho
que vos agradecer, os americanos, a grande tentativa que estais fazendo de
romper as barreiras deste nosso pequeno mundo e abrigo a esperança de que, no
futuro, o Senhor os ajudará a realizar vosso propósito.
“DISSERTAÇÃO
SOBRE O HINDUÍSMO”
Swami Vivekananda
(Lida no
mesmo Congresso das Religiões em 19 de setembro de 1893)
Há três religiões no mundo e que chegaram a nós desde tempos pré-históricos. O hinduísmo, o zoroastrianismo e o judaísmo. Todas elas receberam tremendos choques e todas têm demonstrado, com sua sobrevivência, sua força interna. Mas, enquanto o judaísmo não pôde absorver o cristianismo e foi expulso de seu lugar de nascimento por seu predominante filho, e um punhado de parsis é o quanto ficou para contar a história de sua grande religião, na Índia nasceram seitas e mais seitas que pareciam fazer estremecer a religião dos Vedas até seus fundamentos; mas assim como as águas das costas, em um violento terremoto, retrocedem um momento só, para voltar em uma avassaladora onda mil vezes mais vigorosa, quando o tumulto do empuxo passa, assim essas seitas têm sido absorvidas e assimiladas no imenso corpo da mãe fé.
Desde as mais elevadas elocuções
espirituais da filosofia vedanta, da qual as mais recentes descobertas da
ciência só parecem ecos, até as mais baixas idéias de idolatria, com sua
multiforme mitologia, o agnosticismo dos budistas e o ateísmo dos jainas, todos
e cada um têm um lugar na religião dos hindus.
De onde, surge a pergunta, onde
está, então, o centro comum ao qual convergem todos esses raios tão divergentes?
Onde está a base comum, sobre a qual se apóiam todas essas contradições que
parecem irreconciliáveis? Esta é a pergunta que me proponho a responder.
Os hindus têm recebido sua religião
mediante a revelação, os Vedas; sustentam que os Vedas não têm princípio, nem
fim. Pode parecer cômico a este auditório, a possibilidade de que um livro não
tenha princípio nem fim. Mas ao dizer Vedas, não os entendemos como livros. Os
Vedas significam o tesouro acumulado de leis espirituais descobertas por
distintas pessoas em diferentes tempos. Do mesmo modo que a lei da gravitação
existia antes de sua descoberta e continuaria existindo mesmo que toda a
humanidade esquecesse dela, assim ocorre também com as leis que governam o
mundo espiritual. As relações morais, éticas e espirituais entre as almas e
entre os espíritos individuais e o Pai de todos os espíritos, existiam antes de
seu descobrimento continuariam a existir ainda que todos nós viemos a se
esquecer deles.
Os descobridores dessas leis são
chamados rishis (videntes) e nós os veneramos como seres perfeitos.
Tenho a satisfação de dizer a este auditório que alguns dos maiores deles foram
mulheres.
Desde já se pode dizer que estas
leis, como tais, poderão não ter fim, mas devem ter algum princípio. Os Vedas nos
ensinam que a criação não tem princípio, nem fim. É dito que a ciência provou
que a soma total da energia cósmica é sempre a mesma. Então, se houve um tempo
no qual nada existia, onde estava toda esta energia que foi manifestada? Alguns dizem que se encontrava em uma forma
potencial em Deus. Neste caso, Deus é algumas vezes potencial e outras vezes
cinético, o qual o faria mutável. Todo o mutável é um composto e todo o
composto deve sofrer essa mudança que é chamada destruição. Sendo assim, Deus
morreria, o que é um absurdo. Portanto, jamais existiu um tempo em que houvesse
criação.
Se me permitem fazer uma
comparação, criação e criador são duas linhas sem princípio e sem fim, que
correm uma à outra. Deus é a Providência sempre ativa, de cujo poder surge do
caos sistemas após outros, seguem existindo por um tempo e depois são novamente
destruídos. Isto é o que o menino brahmânico repete todos os dias: “O Senhor
criou o sol e a lua, da mesma forma que sóis e luas dos ciclos anteriores”.
Eu estou aqui e fecho os olhos e
procuro conceber minha existência, “eu”, “eu”, “eu”, qual é a idéia que se me
apresenta? A idéia de um corpo. Eu não sou, então, senão uma combinação de
substâncias materiais? Os Vedas declaram: “Não”, eu sou um espírito que vive em
um corpo. Eu não sou do corpo. O corpo morrerá, mas eu não morrerei. Aqui estou
eu neste corpo; ele cairá, mas eu seguirei vivendo. Eu também tive um passado.
A alma não foi criada, porque a criação significa uma combinação, o que implica
uma futura e certa dissolução. Ao contrário, se a alma foi criada, então deve
morrer. Alguns nascem felizes, gozam de perfeita saúde, tem um corpo formoso,
vigor mental e todas as necessidades satisfeitas. Outros nascem na miséria,
alguns carecem de mãos ou pés, outros são idiotas e só arrastam uma
desventurada existência. Por que, se todos foram criados, por que um Deus justo
e misericordioso criaria alguns felizes e outros infelizes, por que é tão
parcial? Não resolve de nenhuma forma a questão, a sustentação de que os
miseráveis, nesta vida, serão felizes em uma vida futura. Por que um homem há
de ser desgraçado mesmo aqui, no reino de um Deus justo e misericordioso?
Em segundo lugar, a idéia de um
Deus criador não explica a anomalia, senão que expressa simplesmente o fiat
cruel de um ser todo-poderoso. Então deve haver causas, antes do nascimento,
que façam um homem desgraçado ou feliz, e essas causas são suas ações passadas.
Todas as tendências da mente e do
corpo não são atribuídas às atitudes herdadas? Aqui há duas linhas paralelas de
existência: uma da mente, outra da matéria. Se a matéria e suas transformações
podem nos explicar tudo o que temos, então não há necessidade de supor a
existência de uma alma. Mas não se pode demonstrar que o pensamento tenha sido
originado na matéria e se é inevitável um monismo filosófico, é certamente
lógico o monismo espiritual e não menos desejável que o monismo materialista;
porém, nenhum deles nos é necessário aqui.
Não podemos negar que os corpos
adquirem certas tendências pela herança, mas essas tendências se relacionam tão
somente com a configuração física, mediante a qual uma mente particular só pode
atuar de uma maneira particular. Há outras tendências especiais da alma,
causadas por suas ações passadas. E uma alma com uma tendência herdada poderia,
mediante as leis da afinidade, nascer em um corpo que fosse o instrumento mais
apto para manifestar essa influência. Isso se acha de acordo com a ciência,
porque a ciência necessita explicar tudo pelo hábito e o hábito é adquirido
mediante as repetições. Assim, as repetições são necessárias para explicar os
hábitos naturais em uma alma recém-nascida. E desde que não foram adquiridos
nesta vida, devem provir de vidas passadas.
Há algo mais que dizer a respeito. Se admitirmos o que foi dito, como é
que eu não lembro de nada de minha vida passada? Isto pode ser facilmente
explicado. Estou falando agora em inglês. Esta não é minha língua materna; com
efeito, nenhuma palavra de minha língua mãe está agora presente em minha
consciência, mas se procuro lembra-las, vêm a mim. Isto demonstra que a
consciência é tão somente a superfície do nosso oceano mental e que, dentro de
suas profundidades, estão armazenadas todas nossas experiências. Com
perseverança e tenacidade e estimuladas essas experiências, podereis ter a
consciência até de vossa vida passada.
Esta é uma evidência direta e
demonstrativa. A verificação é a prova perfeita de uma teoria e aqui está o
desafio lançado ao mundo pelos rishis: “Nós descobrimos o segredo mediante o
qual as profundezas do oceano da memória podem ser revolvidas; queira-o e
obtereis uma completa reminiscência de vossa vida passada”.
De modo que o hindu crê que ele é
um espírito. A espada não pode penetrar, o fogo não pode queimar, a água não
pode dissolver, o ar não pode secar. O hindu crê que a alma é um círculo, cuja
circunferência não está em nenhuma parte, mas cujo centro se acha localizado em
um corpo, e que a morte significa a mudança deste centro de um corpo a outro. A
alma tampouco está sujeita pelas condições da matéria. Na sua própria essência
é livre, ilimitada, santa, pura e perfeita. Mas de um modo ou de outro, se acha
ligada à matéria e considera a si mesma como matéria.
A pergunta imediata é: por que a
existência pura, livre e perfeita está desta maneira sob o domínio da matéria?
Como pode ser enganada, a alma perfeita, com a crença de que é imperfeita? Se
nos foi dito que os hindus fazem referência à questão e sustentam que não pode
ser feita tal interrogação. Alguns pensadores tratam de responder a isso,
supondo um ou mais seres quase perfeitos e empregando sonoros nomes científicos
para chegar ao vazio. Porém, dar nomes não é explicar. O problema permanece
sempre o mesmo, como o perfeito pode chegar a ser o quase perfeito? Como o
puro, o absoluto, pode mudar até uma microscópica partícula de sua natureza?
Mas o hindu é sincero. Não quer refugiar-se sob um sofisma. É intrépido o
bastante para encarar a questão com honradez e responder: “Não sei. Não sei
como a existência perfeita, a alma, pode considerar-se imperfeita, como é
agregada à matéria e condicionada por ela”. Mas o fato é evidente; está na
consciência de cada um, que nos consideramos como um corpo. O hindu não
pretende explicar por que alguém pensa que é o corpo. A resposta de ‘que é a
vontade de Deus’, não é uma explicação. Isso não é mais que o que os hindus
dizem: “Não sei”.
Bem, a alma humana é eterna e
imortal, perfeita e infinita e a morte só significa uma mudança de centro de um
corpo a outro. O presente está
determinado por nossas ações passadas e o futuro pelo presente. A alma
continuará evoluindo e retrocedendo de nascimento em nascimento e de morte em
morte.
Mas se faz outra interrogação: é o
homem uma pequena barca em uma tempestade, levantada num momento sobre a
espumosa crista de uma onda, para ser tragada em seguida, pelas faces do
abismo, rodando de um lado a outro, a mercê das boas e más ações; um náufrago
desamparado e impotente na fúria de uma incessante e implacável corrente de
causa e efeito; um pequeno verme colocado sob a roda causal que gira, esmagando
tudo o que se acha em seu caminho, sem fazer caso das lágrimas das viúvas, nem
dos lamentos dos órfãos? O coração oprime-se ao pensar nisso e, contudo, essa é
a lei da Natureza.
Não há esperança? Não há
escapatória? Eram os gritos que surgiam do fundo do coração do desesperado.
Esses gritos chegaram ao trono da misericórdia e dele saíram palavras de
esperança e de consolo, que inspiraram um sábio védico, o qual erguendo-se ante
o mundo, proclamou, com voz potente, a boa nova: “Ouçam, filhos da felicidade
imortal! Mesmo vós que morais em elevadas esferas! Eu que achei o Antigo Uno, o
que está além de toda obscuridade, de toda ilusão: conheça-o e para sempre
sereis salvos da morte”.
“Filhos da felicidade imortal”, que doce e venturoso nome! Deixem-me que
os chamem, irmãos, por esse doce nome – herdeiros da felicidade imortal; sim, o
hindu se nega chamá-los pecadores.
Vós, os
partícipes da felicidade imortal, seres santos e perfeitos, sois filhos de
Deus. Sois divindades sobre a terra, pecadores? É um pecado chamar aos homens
de uma difamação da natureza humana. Levanta-os, oh leões! E sacode-os da
ilusão de que sois carneiros; sois almas imortais, espíritos livres, benditos e
eternos; não sois matéria, não sois corpo; a matéria é vossa serva e não vós
servos dela.
Isto é o que proclamam os Vedas e
não uma combinação aterrorizante de leis inclementes, nem uma interminável
prisão de causa e efeito, senão que à frente de todas essas leis, em cada
partícula de matéria e força e através dela, está Aquele “por cujo mandato, o
vento sopra, arde o fogo, as nuvens vertem a chuva e a morte passa sobre a
terra”.
E qual é sua natureza?
Ele está em todas as partes, o Uno
puro e sem forma, o Todo-poderoso e Todo-misericordioso. “Tu és nosso pai, Tu
és nossa mãe, Tu és nosso querido amigo, Tu és a origem de toda a força; nos dá
força. Tu és quem suporta as cargas do universo; ajuda-me a suportar a pequena
carga desta vida”. Assim cantaram os rishis do Veda. E como O adorar? Pelo
amor. “Ele há de ser adorado como o único amado e mais querido que tudo desta
vida e da futura”.
Esta é a doutrina de amor
proclamada nos Vedas e vejamos como ela é plenamente desenvolvida e ensinada
por Krishna, a quem os hindus consideram como Deus encarnado na terra.
Ele ensinou que o homem deve viver
neste mundo como a folha de loto, que cresce na água, mas que jamais é
umedecida por ela; assim deve viver o homem no mundo: com o coração em Deus e
as mãos no trabalho.
É bom amar a Deus pela esperança e
recompensa neste mundo ou em outro, mas melhor é amar a Deus pelo amor mesmo e
a prece é: “Senhor, eu não desejo riquezas, nem filhos, nem ilustração. Se for
Tua vontade, irei de nascimento em nascimento, mas concede-me isto: que possa
amar-Te sem esperança de recompensa; amor abnegado, por amor ao amor”.
Um dos discípulos de Krishna,
Yudhisthira, então Imperador da Índia, foi expulso do trono por seus inimigos e
teve que se refugiar, com a rainha, em um bosque dos Himalaias: ali, a rainha
perguntou-lhe, certo dia, por que ele, o mais virtuoso dos homens, haveria de
sofrer tanta miséria? Yudhisthira respondeu: “Contempla, rainha minha, os
Himalaias, quão belos e grandes são; eu os amo. Não me dão nada, mas minha
natureza é amar o grande, o belo, por isso os amo. Por isso mesmo, amo ao
Senhor. Ele é a origem de toda beleza, de toda sublimidade. Ele é o único
objeto que deve ser amado; minha natureza é ama-lo e, por isso, o amo. Nada
imploro, não peço nada. Que me coloque onde lhe agrade. Devo ama-lo por amor ao
amor. Eu não posso comercializar com o amor”. Os Vedas ensinam que a alma é
divina, mas que está retida aos laços da matéria; quando esses laços se
romperem, se alcançará a perfeição e a palavra que se emprega para designa-la,
é mukti, liberdade da morte e da miséria.
E essas cadeias só podem cair feita
em pedaços, mediante a graça de Deus, graça que chega aos puros. Assim, pois, a
pureza é condição indispensável de Sua graça. Como acontece essa graça? Ela se
revela no coração puro; o puro e imaculado vê a Deus, sim, até nesta mesma
vida, e então, só então, se endireitam todas as sinuosidades do coração. Então
cessam todas as dúvidas. Já não se acha mais submetido ao capricho da terrível
lei da causalidade. Este é o centro, na concepção vital do hinduísmo.
O hindu não quer viver baseando-se em palavras e em teorias. Se há
existências além da existência sensorial ordinária, ele necessita enfrenta-la.
Se existe nele uma alma que não é matéria, se há uma Alma universal que é toda
bondade, ele dirige-se diretamente a ela. Necessita vê-la e, somente isto,
desvanecerá todas as suas dúvidas. A melhor prova que um sábio hindu oferece
acerca da alma, acerca de Deus, é “eu vi a alma; eu vi a Deus”. Esta é a única
condição de perfeição.
A religião dos hindus não consiste
em lutas e tentativas de crer em certas doutrinas ou dogmas, mas em realizar;
não em crer, mas em ser e chegar a ser. Assim, todo o objetivo de seu sistema
é, mediante luta constante, chegar a ser perfeito, chegar a ser divino, chegar
a Deus e ver a Deus; e este alcançar a Deus e vê-lo e chegar a ser perfeito
como o Pai Celestial, constitui a religião dos hindus.
E o que acontece a um homem quando
alcança a perfeição? Vive uma vida de infinita felicidade. Goza da felicidade
infinita e perfeita, uma vez que obtém o único em quem deveria achar prazer e
dizer: Deus. E desfrutar da felicidade com Deus.
Todos os hindus estão de acordo
nisto. Todas as seitas da Índia têm em comum esta religião. Mas então a
perfeição é absoluta e o absoluto não pode ser dois, ou três. Não pode ter
nenhuma qualidade. Não pode ser um indivíduo. E assim, quando uma alma se torna
perfeita e absoluta, deve ter chegado a se unificar com Brahman e só realizará
ao Senhor como a perfeição, a realidade de sua própria natureza e existência; a
existência, o conhecimento e a felicidade absolutos. Com muita freqüência temos
lido que isto é perder a individualidade e converter-se em um tronco ou uma
pedra: “Se ri das cicatrizes, quem nunca teve uma ferida”. Direi que nada há de
certo em tudo isso. Se há felicidade em gozar a consciência deste pequeno
corpo, deve ser maior a felicidade de gozar a consciência de dois corpos e a
medida da felicidade se acrescentará com a consciência de um número aumentado
de corpos, alcançando-se o objetivo, ou seja, o grau máximo da felicidade, ao
se alcançar a consciência universal.
Portanto, para alcançar a infinita
individualidade universal, deve desaparecer a mesquinha individualidade
aprisionada. Só então pode cessar a morte, quando eu me unificar com a vida;
cessará a infelicidade, quando eu for uno com a felicidade; e cessarão todos os
erros, quando eu me unificar com o conhecimento; tal é a conclusão cientifica
inevitável. A ciência demonstrou-me que a individualidade física é uma ilusão,
que meu corpo é realmente um pequeno corpo que está constantemente mudando em
um oceano contínuo de matéria e a conclusão necessária para minha contraparte,
a alma, é advaitam (unidade).
A ciência não é senão a conquista
da unidade. Tão logo a ciência alcança a unidade perfeita, se detém em seu
progresso, porque chega à sua meta. Deste modo, a química não poderia progredir
mais, se descobrisse um elemento do qual poderia derivar-se todos os outros; a
física se deteria, quando pudesse coroar seus esforços, descobrindo uma energia
da qual todas as outras fossem apenas manifestações e a ciência da religião
alcança a perfeição, quando descobrir Aquele que é a única vida num oceano de
morte; Aquele que é a base constante de um mundo sempre mutante; Aquele que é a
única Alma da qual todas as demais almas são manifestações ilusórias. Assim se
alcança, através da multiplicidade e da dualidade, a unidade final. A religião
não pode ir mais além. Esta é a meta de toda ciência.
Toda ciência chega, por força, em última
instância, a esta conclusão. Manifestação e não criação é o que, atualmente,
proclama a ciência e é gratificante ao hindu comprovar que as conclusões mais
recentes da mesma ciência ensinam, em linguagem mais potente e com maior
clareza, tudo o que foi ensinado e compreendido por ele, durante séculos.
Desçamos agora, das aspirações da
filosofia à religião do ignorante. Diante de tudo, posso dizer que não há
politeísmo na Índia. Se alguém não se detém a escutar, achará que cada templo
dos devotos aplica todos os atributos de Deus, inclusive a onipresença, às
imagens. Isto não é politeísmo, nem tampouco a denominação de henoteísmo
explicaria a situação: “A rosa, chamada com outro nome, teria sempre o mesmo
aroma”. Os nomes não são explicações.
Lembro que, quando criança, ouvi na
Índia um missionário cristão que pregava a uma multidão. Entre outras coisas
amáveis que dizia naquela ocasião, uma era que se ele pegasse com um pau o
ídolo deles, que este faria? “Serias castigado, quando morresses”, respondeu o
pregador. “Também meu ídolo te castigarias quando morresses”, acrescentou o
hindu.
“Por seus frutos, conhecerás a
árvore”. Quando vir que entre os chamados idólatras há homens de tal
moralidade, espiritualidade e amor como nunca encontrei em parte alguma,
detenho-me a perguntar: pode o pecador engendrar tal santidade?
A superstição é um grande inimigo do homem, mas o fanatismo é pior; por
que vai um cristão a igreja? Por que é santa, a cruz? Por que, na oração, se
dirige o rosto para o céu? Por que há tantas imagens na Igreja Católica? Por
que há tantas imagens nas mentes dos protestantes, quando oram? Irmãos meus,
não nos é possível pensar sem uma imagem mental, como viver sem respirar. Pela
lei da associação, a imagem material evoca a idéia mental e vice-versa. Por
esse motivo o hindu usa um símbolo externo, quando adora, e ele lhes dirá que
mantém fixa a mente no Ser a quem adora. Sabe, tão bem como vós, que a imagem
não é Deus, nem é onipresente. Depois de tudo, que significa onipresença para
quase todo mundo? É simplesmente uma palavra, um símbolo. Tem Deus área
superficial? Se não tem, quando repetimos a palavra onipresença, pensamos no
vasto firmamento e no espaço, isso é tudo.
Assim como falamos que, de um modo
ou outro, temos que associar nossas idéias de infinidade com a imagem do céu
azul, ou do mar, pelas leis de nossa constituição mental, assim também
relacionamos nossa idéia de santidade com a imagem de uma igreja, de uma
mesquita ou de uma cruz.
Os hindus associam as idéias de
santidade, pureza, verdade, onipotência e outras, com diferentes imagens e
formas. Mas com esta diferença: enquanto que algumas pessoas dedicam toda sua
vida ao ídolo de sua igreja e nunca se elevam mais porque para eles a religião
significa um assentimento a certas doutrinas e fazer o bem a seus semelhantes,
toda a religião do hindu se acha concentrada na realização. O homem há de
chegar a ser divino pela realização do divino; os ídolos, os templos, as
igrejas e os livros, são tão somente os suportes, os auxílios de sua infantil
espiritualidade; mas deve continuar progredindo constantemente.
Não deve deter-se em nenhuma parte:
“A adoração externa, a adoração material”, dizem os Vedas, “è o
estado inferior; lutando por elevar-se à maior altura, a oração mental é o
estado seguinte e o mais elevado é quando se realiza ao Senhor”.
Notando isso, o mesmo fervoroso homem que está
ajoelhado ante o ídolo, diz: “O sol não pode expressa-lo, nem a lua, nem as
estrelas; tampouco podem expressa-lo o relâmpago nem o que denominamos
fogo; eles brilham mediante Ele”. Mas não ultraja os ídolos dos demais, nem
chama pecado o culto alheio, senão que reconhece neste, um estado necessário da
vida. “O menino é o pai do homem”; seria justo que um ancião dissesse
que a infância ou a juventude é um pecado?
Se um homem pode realizar sua
natureza divina com o auxilio de uma imagem, seria justo chamar pecado a isto?
Nem mesmo quando haja passado por este estado, deveria chamá-lo de erro. Para o
hindu, o homem não passa do erro à verdade, senão que vai de verdade em
verdade, de uma verdade inferior à outra superior. Para ele, todas as
religiões, desde o mais baixo fetichismo ao mais elevado absolutismo,
significam outros tantos esforços da alma humana por alcançar e realizar o
infinito, cada um dos quais se acha determinado pelas condições de seu
nascimento e associação e marcando cada um, um estado de progresso; cada alma é
uma águia jovem que paira constantemente mais alto, desenvolvendo mais e mais
força até que chega ao Glorioso Sol.
Unidade na variedade é o plano da
natureza e o hindu o reconhece. Cada uma das demais religiões estabelece certos
dogmas fixos e procura obrigar a sociedade a adora-los. Apresenta à sociedade
uma só capa que se deva assentar bem em Joãozinho, em João e em Henrique, a
todos igualmente. Se não fica bem em
Joãozinho ou em Henrique, deverão passar sem capa com que cobrir o corpo.
Os hindus descobriram que o
Absoluto só pode ser realizado, imaginado ou exposto, mediante o relativo; e as
imagens, cruzes e meias-luas, constituem simplesmente outros tantos símbolos,
outras tantos cabides para pendurar idéias espirituais. Não é que esta ajuda
seja necessária para todos, mas quem não necessita dela não tem direito de
dizer que é má. Nem é obrigatória no hinduísmo.
Eu tenho isto em conta; a idolatria
na Índia não significa algo horrível, não é a mãe da corrupção; pelo contrário,
é a intenção das mentes não desenvolvidas de alcançar verdades espirituais mais
elevadas.
Os hindus têm suas faltas, algumas
vezes têm suas exceções; mas advertem-se disto: sempre castigam seu próprio
corpo; jamais degolam o próximo. O hindu fanático se queima sobre uma pira, mas
jamais acendem o fogo da inquisição. E mesmo isto não pode ser atribuído a sua
religião, do mesmo modo que o fato de queimar bruxas não pode ser atribuído ao
cristianismo.
Para o hindu, todo o mundo de
religiões é tão somente uma viagem; uma promoção de diferentes homens e
mulheres, através de várias condições e circunstâncias para a mesma meta.
Toda religião tem, por único
objeto, transformar em um Deus o homem material e o mesmo Deus é o inspirador
de todas elas. Por que há, então, tantas contradições? Tão só são aparentes,
disse o hindu. As contradições procedem da mesma verdade ao adaptar-se às
variadas circunstâncias de diferentes naturezas. A mesma luz atravessa vidros
de diferentes cores. Essas pequenas variações são necessárias para propósitos
de adaptação. Mas no coração de todas as coisas, reina a mesma verdade.
O Senhor, em sua encarnação como
Krishna, declarou ao hindu: “Eu estou em cada religião como o fio através de
uma fileira de pérolas. Donde vir surgir extraordinária santidade e
extraordinário poder que purificam a humanidade, sabe que ali estou eu”.
E qual tem sido o resultado? Desafio o mundo a encontrar em todo o sistema de
filosofia sânscrita, alguma expressão que diga que só o hindu será salvo e os
demais não. Disse Vyasa: “Achamos homens perfeitos mesmo além das fronteiras
de nossa casta e credo”. Mais até. Como pode o hindu, cuja total
estrutura de pensamento tem seu centro em Deus, crer no budismo, que é
agnóstico, ou no jainismo, que é ateu?
Os budistas e os jainas não
recorrem a Deus; porém toda a força de sua religião recai sobre a grande
verdade central de cada religião; transformar o homem em Deus. Eles não vêem o
Pai, mas vêem o Filho. E aquele que viu o Filho, vê o Pai.
Isto, irmãos, é um pequeno esboço
das idéias religiosas dos hindus. O hindu talvez tenha sido impotente para
realizar todos seus planos, mas se algum dia houver uma religião universal, há
de ser aquela que não está radicada no tempo e no espaço; que seja infinita
como o Deus que predique, e cujo sol brilhe sobre os discípulos de Krishna e os
de Cristo igualmente, sobre os santos e sobre os pecadores; que não seja brahmânica,
nem budista, nem cristã, nem maometana, senão a soma de todas elas e tenha
infinito espaço para evoluir: que em seu catolicismo abrace com seus infinitos
braços e que haja um lugar para cada ser humano, desde o selvagem mais rústico,
que em muito pouco ultrapassa o bruto, até o homem mais elevado que se eleva
pelas virtudes de seu cérebro e de seu coração quase acima da humanidade,
fazendo com que a sociedade se assombre ante sua presença e duvide que seja de
natureza humana. Será uma religião que não terá lugar em seu seio para a
perseguição, nem a intolerância, que reconheça em cada homem e mulher a
divindade e cujo fim, cuja força total, esteja concentrada em ajudar a
humanidade a realizar a sua própria e verdadeira natureza divina.
Oferece uma religião assim, e todas
as nações os seguirão. O concílio de Asoka foi uma assembléia de fé budista. O
de Akbar, embora mais apropriado a esse fim, foi tão somente uma reunião de
salão. Estava reservado à América proclamar a todas as partes do globo, que o Senhor
está em cada uma das religiões.
Que Aquele que é o Brahman dos
hindus, o Ahura-Mazda dos zoroastrianos, o Buda dos budistas, o Jeová dos
judeus e o Pai Celestial dos cristãos, dê-lhes força para realizar vosso nobre
ideal! A estrela nasceu no Oriente, avançou com firmeza para o Ocidente,
algumas vezes obscurecida, outras vezes esplendorosa, até que circundou o mundo
e agora surge novamente no mesmo horizonte do Oriente, às fronteiras do Sanpo,
cem vezes mais resplandecente que nunca.
Salve Columbia, mãe da liberdade! A
ti, que jamais empapaste tua mão no sangue de teu próximo, a ti que jamais
pensaste que o modo mais rápido de enriquecer consiste em roubar os vizinhos, a
ti, que marchou na vanguarda da civilização, levando despregada a bandeira da harmonia.
“A RELIGIÃO NÃO É A MAIS IMPERIOSA NECESSIDADE DA ÍNDIA”
Swami Vivekananda
(20 de
setembro de 1893)
Os cristãos devem estar sempre
dispostos a uma crítica amistosa e penso que não levareis a mal que eu faça uma
pequena crítica.
Vós, os cristãos, que sois afetos a
enviar missionários para que se salvem as almas dos hereges, por que não
procurais salvar seus corpos da morte pela fome? Na Índia, durante as terríveis
fomes, milhares de pessoas morreram de inanição, sem que vós, os cristãos,
fizessem algo para evitar.
Construís igrejas por toda a Índia,
mas o mal que aflige a Índia não é falta de religião – que dessa tem o
suficiente – mas pão. Pão é que pedem com angustiada voz, os milhões de
desgraçados hindus. Pedem pão, mas lhes damos pedras.
É um insulto oferecer religião a um
povo que morre de fome, ou ensinar metafísica a um homem que desfalece de
necessidades.
Na Índia, um sacerdote que predica
por dinheiro perderia sua casta e seria insultado pelo povo.
Vim aqui em busca de ajuda para meu
empobrecido povo, mas agora compreendo perfeitamente o quão difícil é
conseguir, em terra cristã, ajuda dos cristãos para os hereges.
“O BUDISMO, CONSUMAÇÃO DO HINDUÍSMO”
Swami Vivekananda
(26 de setembro de 1803)
Eu não sou budista, como já ouviram
e, contudo, o sou. Se China, Japão e Ceilão seguem os ensinamentos do Grande
Mestre, a Índia o adora como a Deus encarnado na terra.
Acabais de ouvir que vou criticar o
budismo, mas por crítica, desejo que compreendais tão somente isto: Estará
longe de meu ânimo criticar a quem adoro como Deus encarnado na terra. Opinamos
que Buda não foi devidamente interpretado pelos seus discípulos. A relação ente
o hinduismo (por hinduismo significa a religião dos Vedas) e o que na
atualidade denomina-se budismo, é quase a mesma existente no judaísmo e no
cristianismo. Jesus Cristo era judeu, e Sakiamuni era hindu. Os judeus
rechaçaram Jesus e até o crucificaram; os hindus aceitaram a Sakiamuni e o
adoraram como Deus.
Mas a verdadeira diferença que os
hindus querem assinalar entre o moderno budismo e o que devemos considerar como
ensinamentos do Senhor Buda reside, principalmente, em que Sakiamuni não veio
pregar nenhuma coisa nova; ele também, o mesmo que Jesus, veio cumprir sua
missão e não para destruir. Só que no caso de Jesus, foram os judeus, os mais
velhos, quem não o compreendeu, enquanto que no caso de Buda, foram seus mesmos
discípulos que não captaram o significado de seus ensinamentos. Não entenderam,
os judeus, que se consumava o Antigo Testamento, nem tampouco os budistas, que
se consumavam as verdades da religião hindu.
Novamente repito que Sakiamuni não veio para destruir, senão que foi ele
o cumprimento, a conclusão lógica, o desenvolvimento lógico da religião hindu.
A religião dos hindus divide-se em
duas partes: a cerimonial e a espiritual, sendo esta última estudada
especialmente pelos monges. Não há castas, nela. Um homem de classe superior e
outro da inferior pode, na Índia, converter-se em monge ficando, assim,
igualadas suas castas. Na religião não
há castas; a casta é simplesmente uma instituição social. O mesmo Sakiamuni foi
monge e sua glória consistiu em ter tido um coração tão grande, que quis
desenterrar as verdades dos ocultos Vedas para dissemina-las por todo o mundo.
Ele foi o primeiro no mundo que instituiu a prática das missões, e o primeiro a
conceber a idéia de proselitismo.
A grande glória do Mestre está em
sua assombrosa compaixão para todo o mundo, especialmente pelos ignorantes e
pobres. Alguns de seus discípulos eram brahmanes. Quando Buda ensinava, a
linguagem falada na Índia não era o sânscrito, idioma que só aparecia nos
livros dos sábios.
Alguns dos brahmanes, discípulos de Buda, quiseram traduzir seus
ensinamentos para o sânscrito, mas ele lhes disse terminantemente: “Eu sou para
os pobres, para o povo; deixe-me falar na língua do povo”. E por isso, até
hoje, a maior parte de seus ensinamentos se encontra em uma língua vulgar da
Índia daqueles tempos.
Seja qual for a atitude da
filosofia, seja qual for a atitude da metafísica, enquanto existir no mundo
isso que chamamos morte, enquanto houver fraquezas no coração humano e lance
este gritos de impotência, haverá fé em Deus.
Pelo lado filosófico, os discípulos
do Grande Mestre chocaram-se contra as rochas eternas dos Vedas e não puderam
derruba-las e, por outro lado, tiraram da nação aquele Deus eterno, ao qual
todo indivíduo, homem ou mulher, aferram-se com tanto amor. Como lógico resultado,
aconteceu que o budismo morreu na Índia, de morte natural e, na atualidade, não
existe ali, na terra onde nasceu Buda, nada que se aprecie de budista.
Porém, ao mesmo tempo o brahmanismo
perdeu algo, perdeu aquele zelo reformador, aquela assombrosa simpatia e
caridade para com todo o mundo, aquela maravilhosa levedura que o budismo pôs
nas massas e que engrandeceu tanto a sociedade hindu, que um historiador grego
escreveu sobre a Índia daquela época, chegando a dizer que não conhecia nem um
hindu que dissesse uma mentira, nem uma só mulher que não fosse casta.
O hinduismo não pode existir sem o
budismo, nem o budismo sem o hinduismo. Compreendamos, pois, o que evidenciou a
separação: que os budistas não podem prescindir do cérebro e da filosofia dos
brahmanes, nem os brahmanes do coração dos budistas. Esta separação entre
budistas e brahmanes, tem a culpa da decadência da Índia e que está agora
povoada por trezentos milhões de mendigos e tem sido escrava dos conquistadores
durante os últimos mil anos. Unamos, por conseguinte, o prodigioso intelecto
dos brahmanes com o coração, a nobre alma e o maravilhoso poder humanitário do
Grande Mestre.
“DISCURSO NA SESSÃO FINAL”
Swami Vivekananda
(27 de setembro de 1893)
O Congresso Mundial das Religiões é
já um fato consumado e o Pai misericordioso têm ajudado aos que trabalharam
para conclui-lo, coroando com êxito seu muito altruísta labor.
Agradeço às nobres almas, cujo
grande coração e amor à verdade, conceberam primeiro este maravilhoso sonho,
realizando-o depois. Obrigado pela demonstração de sentimentos liberais que
reinou nesta tribuna. Obrigado ao esclarecido auditório, por sua unânime
bondade para comigo e por saber valorizar todo pensamento que tende a suavizar
o atrito das religiões.
Em meio desta harmonia, se ouviram,
de vez em quando, algumas notas discordantes; estou especialmente agradecido
aos seus autores porque, com seu forte contraste, tornaram mais doce a harmonia
geral.
Muito tem se falado da base comum
para a unidade religiosa. Não vou propor minha teoria precisamente agora. Mas
se alguns dos presentes esperam que esta unidade se produza mediante o triunfo
de alguma das religiões e a destruição de outras, eu lhes digo: “Irmão,
esperais o impossível”. Hei de desejar que o cristianismo se faça hindu? Deus
me livre. Desejarei que o hindu ou o budista converta-se em cristãos? Que Deus
não permita.
A semente está semeada; a terra, a
água e o ar a rodeiam. Converter-se-á a semente em terra, em ar ou em água?
Não. Far-se-á planta, crescerá segundo sua própria lei e, assimilando o ar, a
terra e a água, os converterá em material vegetal; assim, a semente se
converterá em planta.
O caso da religião é análogo. O
cristão não se fará hindu nem budista; o hindu e o budista não se converterão
em cristãos. Mas cada um deve assimilar o espírito dos outros e conservar, no
entanto, sua individualidade, crescendo segundo suas próprias leis.
Se o Congresso das Religiões
demonstrou algo ao mundo, é o seguinte: Provou que a santidade, a pureza e a
caridade não são possessões exclusivas de nenhuma igreja do mundo e que cada
sistema produz homens e mulheres de ordem mais elevada. Na presença deste fato
evidente, se alguém sonha com a exclusiva sobrevivência de sua própria religião
e da destruição das outras, compadeço-me dele, do fundo do meu coração e o faço
notar que na bandeira de cada religião logo se escreverá: “Ajuda, e não luta”,
“Assimilação, e não destruição”, “Harmonia e paz, e não distinção”.
“O
IDEAL DE KARMA-YOGA”
Swami Vivekananda
O mais admirável que tem a religião
da vedanta, é o conceito de que podemos alcançar a mesma meta por diferentes
caminhos. Foram divididos em quatro classes: o trabalho, o amor, a psicologia e
o conhecimento. Recorda, contudo, que tal classificação não é de todo exata e
que essas classes não se excluem umas as outras, mas que cada uma mescla-se com
as demais. Denominamos essas classes, ou categorias de indivíduos, segundo o
tipo que prevalece em cada um; mais isso não significa que existem homens que
não possuem mais faculdades que a de trabalhar e outros que só sejam devotos
fervorosos, nem outros que só tenham sabedoria. Aquela classificação se efetua
de acordo com o tipo ou tendência que parece prevalecer em um individuo. Temos
visto que, no fim, os quatro caminhos convergem e convertem-se em um só. Todas
as religiões e métodos de trabalho e adoração nos conduzem a um único e mesmo
fim.
Já vos procurei indicar qual é esse
fim. É a liberdade, tal como eu a compreendo. Tudo o quanto percebemos em torno
de nossa luta pela liberdade, desde o átomo ao homem, desde a insensível
partícula de matéria inerte, até a existência mais elevada da terra, a alma
humana. O universo inteiro é, na verdade, o resultado dessa luta pela
liberdade. Em todas as combinações, cada partícula trata de seguir seu próprio
curso e afastar-se dos demais; mas as outras as sujeitam. Nossa terra trata de
fugir do sol e a lua, de distanciar-se da terra. Tudo tende para a dispersão
infinita. Tudo o que vemos no universo tem por base esta luta pela liberdade;
impulsionado por esta tendência, o santo ora e o ladrão rouba.
Quando a linha de trabalho que se
segue não é adequada, a chamamos mal, e quando é correta e elevada, a
denominamos bem. Porém o impulso é o mesmo: a luta em prol da liberdade.
Sente-se oprimido o santo ao saber-se cheio de ligações e deseja livrar-se
delas; por isso, adora a Deus. Para o ladrão, o oprime a idéia de que carece de
certas coisas e procura livrar-se de tal necessidade; por isso rouba. A liberdade
é o único objetivo de toda natureza, seja sensível ou insensível; e consciente
e inconscientemente, tudo luta em prol dessa meta. A liberdade que busca o
santo é muito distinta da que persegue o ladrão; a liberdade amada pelo santo,
o leva ao gozo da infinita e inefável felicidade, enquanto que aquela em que se
empenha o ladrão, só forja outras cadeias para a sua alma.
Em todas as religiões se manifesta esta luta pela liberdade, fundamento
de toda moralidade e do altruísmo; o qual significa abandonar a idéia de que os
homens não são senão seu mísero corpo. Quando vemos um homem realizando uma boa
ação, ajudando os outros, quer dizer que não pode ficar confinado dentro de um
reduzido círculo do “eu” e “meu”. Não existe limite para esta renúncia ao
egoísmo. Todos os grandes sistemas de ética pregam, como objetivo, o absoluto
altruísmo. Suponha que este absoluto altruísmo fosse alcançado por um homem;
que sucederia? Já não seria Senhor Fulano de Tal; haveria se engrandecido
infinitamente e haveria perdido para sempre aquela pequena personalidade que
antes possuía, tornando-se infinito.
A conquista de tal expansão
infinita é, na verdade, a meta de todas as religiões e de todos os ensinamentos
filosóficos e morais. O personalista se assusta quando ouve expor
filosoficamente esta idéia. Contudo, se prega moralidade, preconiza, depois de
tudo, a mesma idéia, já que não põe limites ao altruísmo do homem. Suponha que
um homem chegasse a ser perfeitamente altruísta, de acordo com o sistema
personalista; como faríamos para distingui-lo dos indivíduos perfeitos de
outros sistemas? Conseguindo unificar-se com o universo e alcançar isto, é o
objetivo de todos; só que o pobre personalista não tem suficiente coragem para
desenvolver suas próprias teorias, até sua lógica conclusão.
Karma-yoga é a aquisição, mediante a obra altruísta, dessa liberdade,
que é a meta de toda a natureza humana. Portanto, cada ação egoísta retarda
nossa chegada a esta meta e cada ação altruísta nos aproxima dela; por isso, a
única definição que se pode dar da moralidade, é esta: O que é egoísta, é
imoral, e o altruísta é moral.
Mas se entrais em detalhes, o assunto já não vos parecerá tão simples. Por exemplo, o ambiente altera com freqüência os detalhes, como já foi dito. Uma mesma ação pode ser, segundo as circunstâncias, completamente egoísta ou altruísta. Por isso, só podemos dar uma definição geral e deixar que os detalhes sejam elaborados, tomando em consideração as diferenças de tempo, lugar e circunstâncias.
Em um país, se considera moral a
determinada espécie de conduta que, em outro, se julga imoral, porque diferem
as circunstâncias. O objetivo de toda natureza é a liberdade e esta de obtém
mediante o perfeito altruísmo; cada pensamento, cada palavra ou ação altruísta,
nos leva para a meta e, como tal, se chama moral. Tal definição, segundo vês,
resulta aceitável em qualquer religião e qualquer sistema ético.
Segundo certas filosofias, a
moralidade provém de um Ser Superior: Deus. Se perguntardes por que um homem
deve fazer isto ou aquilo, a resposta é: “Porque tal é o mandato de Deus”. Mas
seja qual for sua origem, o código moral desses pensadores gira ao redor da
mesma concepção central: não pensar nele, mas abandona-lo. E, sem dúvida,
algumas pessoas, apesar de tão elevado conceito de moral, se atemorizam ao
pensar em renunciar à sua mísera personalidade.
Ao homem aferrado à idéia da
pequena personalidade, poderíamos perguntar, no caso de alguém que chegue a ser
perfeitamente altruísta e não pense jamais em si mesmo, nem fale de si, onde
está seu “si mesmo”. Tem consciência desse “si mesmo” unicamente enquanto
pensa, trabalha ou fala para si mesmo. Se só é consciente dos demais do
universo e do todo, onde está seu “si mesmo?”. Desapareceu para sempre.
Karma-yoga, portanto, é um sistema
de ética e religião destinado a obter a liberdade mediante o altruísmo e as
boas obras. O karma-yogui não necessita acreditar em doutrina alguma. Pode não
acreditar em Deus, pode não perguntar o que é a sua alma, nem conceber nenhuma
especulação metafísica. Tem seu próprio objetivo, seu modo especial de alcançar
o altruísmo e deve alcança-lo por si mesmo. Cada instante de sua vida deve ser
realização, porque deve resolver, mediante o mero trabalho, sem ajuda de
doutrina e nem teoria, o mesmo problema do qual o jnani aplica sua razão
e inspiração e o bhakta seu amor.
Agora, consideremos o problema
seguinte: que é esta obra? Em que consiste este fazer bem ao mundo? Podemos
fazer bem ao mundo? Em sentido absoluto, não; em sentido relativo, sim. Não se
pode fazer nenhum bem permanente, ou perpétuo; se pudesse fazer, o mundo não
seria assim. Podemos satisfazer a fome de um homem durante cinco minutos, mas
voltará a sentir outra vez. Notamos que cada prazer que ocasionamos a um homem,
é momentâneo. Nada pode curar definitivamente esta febre de prazer o dor,
sempre renovadas. Pode alguém proporcionar ao mundo a felicidade permanente?
Não podemos elevar uma onda em um oceano sem causar uma depressão em alguma
outra parte.
A soma total das coisas boas do
mundo tem sido sempre a mesma relação às necessidades e à cobiça do homem. Não
pode ser aumentada, nem diminuída. Tomemos a história da raça humana, tal como
a conhecemos hoje. Não falamos das mesmas desventuras e das mesmas felicidades,
os mesmos prazeres e dores, as mesmas diferenças de posição? Não são alguns
ricos, outros pobres, uns altos, outros baixos, uns saudáveis e outros doentes?
Aos egípcios, gregos e romanos dos tempos antigos, acontecia o mesmo que
acontece aos americanos de hoje. Até onde alcança a história, sempre foi assim;
contudo, vemos também que, paralelamente a todas essas insolúveis diferenças de
prazer e dor, sempre existiu a luta por alivia-las.
Cada período da história empenhou milhares de homens e mulheres que se esforçaram por tornar mais suave o correr da vida para os demais. E até onde alcançaram? Só podemos deslocar a bola de um lugar a outro. Eliminemos a dor do plano físico e esta vai ao mental. É como uma escada do inferno de Dante, em que se entrega aos miseráveis uma bola de ouro, para que a façam rolar para cima de uma montanha. A fazem subir um pouco de cada vez e, novamente, volta a cair. Todas as nossas tagarelices sobre a idade do ouro ficam muito entretidas em historinhas para crianças, nada mais.
Cada nação que sonha com a idade do ouro, pensa também que ela será, entre todas as demais, a que alcançará o melhor. Tal é a assombrosa idéia altruísta da idade do ouro!
Não podemos acrescentar felicidade a este mundo, nem tampouco lhe agregar dor; a soma total das energias do prazer e dor, empregadas na terra, será sempre a mesma. As empurramos de um lado a outro e vice-versa, mas nunca variarão, porque permanecer assim está em sua natureza. Este crescente e minguante, este subir e descer, constituem a natureza intrínseca do mundo; sustentar o contrário seria tão lógico como afirmar que pode haver vida sem morte. Isto é um verdadeiro desatino, porque a idéia de vida implica na morte e da mesma forma, a idéia de prazer implica em dor. A lâmpada arde e se consome constantemente e esta é a sua vida. Se quiserdes ter vida, deveis estar morrendo constantemente por ela. A vida e a morte somente são expressões diferentes da mesma coisa contempladas de distintos pontos de vista; são a ascensão e a depressão de uma mesma onda e ambos formam um todo. Quem olha a “depressão”, torna-se pessimista e quem contempla a “ascensão”, torna-se otimista. Quando uma criança vai a escola e seus pais cuidam dela, tudo parece feliz; suas necessidades são simples, ela é uma grande otimista. Mas o ancião, com sua vasta experiência, encontra-se mais descansado e seguro, exalta-se muito pouco. Da mesma maneira, as velhas nações cheias de ruínas têm menos esperanças que as novas. Temos, na Índia, um provérbio: “Mil anos cidades e mil anos bosque”. Esta transformação de cidade em bosque e vice-versa ocorre em todas as partes e torna pessimistas ou otimistas os povos, pelo ponto de vista que assumem.
A próxima idéia que devemos considerar, é a de igualdade. Este conceito de um século de ouro tem servido como um poderoso impulso para atuar. Muitas religiões pregam-no como parte de seus ensinamentos; que Deus virá reger este universo e que então, não haverá diferença alguma de condições. Quem prega essa doutrina são simples fanáticos e os fanáticos são, na realidade, os homens mais sinceros. O cristianismo pregou baseando-se, precisamente, na fascinação desse fanatismo e isso é o que o fez tão atraente para os escravos gregos e romanos. Acreditaram que, com a religião do século do ouro, não existiria mais escravidão, que teriam o suficiente para beber e comer e por isso, agrupavam-se em torno da causa cristã. Aqueles que pregaram, no princípio, a idéia, foram, naturalmente, fanáticos ignorantes, mas muito sinceros.
Nos tempos modernos, esta aspiração ao século de ouro adquire a forma da igualdade – liberdade, igualdade, fraternidade. Também isto é fanatismo. A verdadeira igualdade jamais existiu, nem existirá na terra. Como podemos aqui, sermos todos iguais? Esta espécie de igualdade impossível implica na morte total. Que faz com que o mundo assim seja? O desequilíbrio. No estado primordial, denominado caos, existe um perfeito equilíbrio. Como surgiram todas as forças criadoras do universo? Devido à luta, a competição, ao conflito. Suponha que todos os átomos estivessem em equilíbrio, existiria algum processo de criação? A ciência nos responde que não, que seria impossível. Agita a água e vereis que todas as suas moléculas procuram voltar ao repouso, precipitando-se umas contra as outras. Desse mesmo modo, todos os fenômenos que chamamos universo – todas as coisas que há nele – lutam para retornar ao estado de perfeito equilíbrio. Enquanto se produz uma perturbação, teremos novamente a combinação e a criação. A desigualdade é a base da criação. Ao mesmo tempo, as forças que lutam por ter a igualdade são necessárias à criação, como aquelas que as destroem.
A igualdade absoluta, que significa o perfeito equilíbrio das forças, impugna em todos os planos, nunca pode existir neste mundo. Antes que alcanceis este estado, o mundo se voltará completamente inadequado para toda a espécie de vida e não existiram seres viventes. Observamos, em conseqüência, que todas essas idéias de século de ouro e da igualdade absoluta são impossíveis, ademais, se tencionamos coloca-las em prática, nos conduziriam, seguramente, ao dia da destruição. Em que se diferencia um homem de outro? Em sua capacidade mental, principalmente. Em nossos dias, só um desequilibrado afirmaria que todos nascemos com a mesma potencialidade cerebral. Chegamos ao mundo com faculdades desiguais; nascemos com maiores ou menores capacidades e nada escapa desta condição determinada antes do nascimento.
Os índios americanos habitavam esta terra desde milhares de anos, quando chegaram alguns de vossos antepassados. Como mudou o aspecto desde país, desde então! Por que não efetuaram melhorias entre os índios, nem construíram cidades, se todos somos iguais? Com vossos antepassados, chegou aqui outra espécie de poder cerebral, veio outro estoque de impressões passadas que tomou passo e se manifestou. A não-diferenciação absoluta é a morte. A diferenciação existirá e deverá existir, enquanto durar o mundo e só chegará à idade do ouro da perfeita igualdade, quando chegar a seu término o ciclo da criação. Essa igualdade não poderá existir antes.
Não obstante, a idéia de realizar o século de ouro constitui uma causa muito poderosa. Assim como é necessária a desigualdade para que haja criação, o esforço por limitar sorte desigual resulta também indispensável. Se não existisse a luta por ser livres e voltar a Deus, tampouco haveria criação. A diferença entre essas forças determina a índole das causas humanas. Sempre existirão motivos para atuar, uns com tendência a escravizar e outros impulsionando para a libertação.
Este mundo, semelhante às rodas que giram uma dentro da outra e em sentido oposto, constitui um mecanismo terrível; se aproximarmos a mão, nos engancha e arrasta irreversivelmente. Todos cremos que descansaremos depois de cumprir com o nosso dever; mas antes de ter terminado sequer uma parte, já nos espera outro dever. Todos somos arrastados por esta poderosa e complexa máquina do mundo. Só há duas maneiras de sair dela; uma, é renunciar a todo interesse pela máquina, deixa-la funcionar sozinha e permanecer afastado; abandonar nossos desejos. Isto é muito fácil de dizer, mas quase impossível de realizar. Não sei se em vinte milhões de homens, haverá um capaz de faze-lo.
A outra maneira consiste em mergulhar no mundo e aprender o segredo do trabalho; este é o método de karma-yoga. Não desprezar a engrenagem do mundo, permanecer dentro e aprender o segredo do trabalho. Mediante o trabalho correto efetuado no interior, também é possível sair dali. Mediante este mesmo maquinário, se chega à saída.
Temos visto o que é o trabalho; constitui em uma parte dos cimentos da natureza e prossegue sem cessar. Aqueles que crêem em Deus, compreendem melhor isto, porque sabem que Ele não é um ser tão incapaz que necessite de nossa ajuda. Embora o universo siga sempre em sua marcha, nossa meta é a liberdade, o altruísmo; e segundo o karma-yoga, alcançaremos o objetivo mediante o trabalho.
Todas as idéias de fazer perfeitamente feliz o mundo podem resultar potentes causas para os fanáticos; mas o fanatismo, é tempo de que o saibamos, ocasiona tanto mal quanto bem. O karma-yogui pergunta por que necessitais, para obrar, de outra causa que não amor inato à liberdade. Coloca-os mais além das causas mundanas comuns: “Tereis direito ao trabalho, não a seus frutos”.
Afirma o karma-yogui que mediante o exercício, pode-se chegar a compreender e praticar essa renúncia aos frutos da obra. Quando o desejo de fazer o bem se torna parte integrante de nosso ser, já não buscamos motivos externos. Fazemos o bem porque é bom faze-lo; aquele que realiza boas ações, mesmo quando seja para alcançar o céu, se acorrenta ele mesmo, diz o karma-yogui. Qualquer ação executada com o menor egoísmo, em vez de nos libertar, forja uma cadeia a mais para nossos pés.
De maneira que a única solução consiste em renunciar a todos os frutos da ação e nos manter desligados deles. Saber que o mundo não é nosso, nem nós somos do mundo; que na realidade nem somos o corpo, nem atuamos. Somos o Ser, eternamente em repouso e em paz. Por que temos ligações? Está bem dizer que deveríamos permanecer perfeitamente desligados, mas, como alcança-lo? Cada boa obra que realizamos sem nenhuma causa ulterior, em vez de forjar uma nova cadeia, romperá um dos elos da cadeia existente. Cada bom pensamento que lançamos ao mundo sem desejar recompensa, será acumulado e romperá um elo da cadeia, fazendo-nos cada vez mais puros, até que cheguemos ser mortais mais puros. Contudo, tudo isto pode parecer algo quixotesco e demasiado filosófico, mais teórico do que prático. Tenho lido numerosos argumentos contra o Bhagavad-Gita e são muitos que afirmam que os homens são incapazes de atuar sem motivo egoísta; jamais presenciaram atos altruístas, a não ser executados sob a influência do fanatismo e, por isso, se expressam assim.
Permitam-me que lhes diga, para finalizar, algumas palavras sobre o homem que verdadeiramente praticou os ensinamentos do karma-yoga. Esse homem foi Buda, o único homem que levou essa prática a sua máxima perfeição. Todos os profetas do mundo, com exceção de Buda, tiveram motivos externos que os impulsionaram à ação altruísta. Afora este caso, os profetas podem classificar-se em dois tipos; os que sustentam que são encarnações de Deus chegadas na terra e outros que afirmam que são mensageiros de Deus; ambos recebem do exterior seus impulsos para a obra, esperando uma recompensa externa, por mais espiritualmente elevada que seja a linguagem que utilizam. Mas Buda é o único profeta que disse: “Não me interessam vossas múltiplas teorias referentes a Deus. De que serve discutir sobre as sutis doutrinas que refutam ou explicam a alma? Pratiquem o bem e sejam bons. Isto os levará para a liberdade e a qualquer verdade que exista”.
Sua vida e sua conduta se achavam completamente desprovidas de causas pessoais; no entanto, quem trabalhou mais que ele? Mostrem-me um personagem da história que tenha subido mais alto. A raça humana, em sua totalidade, não produziu senão um só ser como ele, de tão alta filosofia e tão vasta compaixão. Este grande filósofo, que pregou a mais elevada filosofia sentia, contudo, profundíssima compaixão pelos animais e nunca atribuiu a si mesmo méritos; constitui o karma-yogui ideal e que atua absolutamente sem motivos pessoais. Por isso a história a apresenta como o maior homem que jamais existiu, como a combinação mais perfeita de cérebro e coração e como a alma mais ampla e poderosa que se viu no mundo. Foi o primeiro grande reformador que foi visto no mundo. Foi o primeiro que se atreveu a dizer: “Credes, mas não porque vos mostrem uns quantos manuscritos antigos, nem porque seja essa a crença de vosso país ou porque assim vos tenhais feito crer desde vossa infância; discorreis e penseis muito antes e, depois que os tivéreis analisado, se observais que fará bem a todos, sem exceção, credes, praticando e fazendo com que os demais o pratiquem”.
Trabalha melhor quem não o faz por algum motivo egoísta, nem por dinheiro, ou fama, nem por coisas similares. Quem alcança faze-lo, será um Buda e terá um poder tal para trabalhar, que transformará o mundo. Um homem assim representa o mais elevado ideal de karma-yoga.
“O SEGREDO DO TRABALHO”
Swami
Vivekananda
Faz em verdade obra meritória, quem ajuda fisicamente a seu próximo, aliviando suas necessidades físicas, mas o auxílio é tanto maior quanto maior é a necessidade e mais ampla a ajuda. Se puder aliviar por uma hora as necessidades de um homem, este fazer constituirá uma verdadeira ajuda; se puder remediar durante um ano, a ajuda será melhor; mas se o eliminar para sempre, seria esta, indubitavelmente, a melhor ajuda que poderia proporcionar-se. Unicamente, o conhecimento espiritual pode destruir para sempre nossas misérias; os demais conhecimentos só satisfazem as necessidades durante um certo tempo. Unicamente o conhecimento do espírito destrói de uma vez por todas, a faculdade de desejar e por isso, a ajuda espiritual resulta na mais elevada que se pode dar. Quem proporciona o conhecimento espiritual, resulta em benfeitor máximo da humanidade e por isso, sempre observamos que tem sido os homens mais poderosos, os que ajudaram aos demais em suas necessidades espirituais; porque a espiritualidade é a verdadeira base de todas as nossas atividades na vida. Um indivíduo espiritualmente sadio e forte terá força em tudo o mais, se assim o desejar, mas quem carece de fortaleza espiritual, nem sequer poderá satisfazer as necessidades físicas.
Depois da ajuda espiritual, vem a intelectual; a dádiva de conhecimento resulta muito mais elevada que a de alimento e vestimentas; e até maior que a de dar a vida a um ser humano; já que sua verdadeira vida consiste no conhecimento. A ignorância é morte; o conhecimento, vida. E pouco valor possui esta, se transcorre na obscuridade, debatendo-se às apalpadelas contra a ignorância e a miséria.
Segue em importância, naturalmente, a ajuda física. Por conseguinte, quando nos ocorre ajudar ao próximo, procuramos não cair no erro de crer que só existe o auxílio físico, pois este é de menos importância e de menos valor, já que não pode proporcionar uma satisfação permanente. A necessidade que experimento ao ter fome, a satisfaço comendo, mas a fome se repete; meu padecimento terminará somente quando a necessidade estiver satisfeita por completo. Então já não me fará sofrer a fome, nem produzirá angústia ou pena alguma. Portanto, a ajuda que tende a nos fazer espiritualmente fortes, resulta na mais elevada; logo segue a intelectual e depois a física.
As misérias do mundo não podem remediar-se com somente a ajuda física; enquanto não mudar a natureza do homem, sempre surgirão essas necessidades físicas e se sentirão continuamente as desventuras, sem que nenhuma ajuda física possa remedia-las por completo. A única solução deste problema consiste em purificar a humanidade. A ignorância é a mãe de todos os males e misérias. Quando o homem estiver iluminado, quando for puro e espiritualmente forte e educado, então cessará no mundo toda a miséria, mas não antes. Embora convertamos cada casa do país em um asilo de caridade e enchamos a terra de hospitais, continuará existindo a miséria humana, enquanto não modificar a índole do homem.
No Bhagavad-Gita, lemos repetidas vezes que todos devemos trabalhar incessantemente. Toda obra, por natureza, está composta de bem e mal. Não podemos realizar obra alguma que não produza algum bem em alguma parte, nem possa não causar dano em algum lugar. Cada ação é, por força, uma combinação do bem e do mal e, contudo, nos mandam obrar sem cessar. Ambos, o bem e o mal, produzirão seus resultados, seu carma. A boa ação trará um bom efeito, e a má, mau efeito. Porém, tanto o bem quanto o mal constituem ligações para a alma. Referindo-se o Gita a esta propriedade escravizante do trabalho, indica como único remédio, o não se ligar à obra que fazemos, pois assim não forjará novas cadeias para nossa alma. Tratemos de compreender o que significa “não se ligar” à obra.
Aqui tens o tema proeminente, central do Gita: obrar incessantemente, porém, sem se ligar. Samskara pode ser traduzido aproximadamente por “tendência inerente”. Usando o similar de um lago para a mente, cada anel ou onda que nela se produz, não morre inteiramente quando desaparece, mas deixa um vestígio e uma futura possibilidade de que surja novamente. A este vestígio, com a possibilidade de que possa reaparecer a onda, denomina-se samskara. Cada obra que realizamos, cada movimento do corpo, cada idéia que temos, deixa uma dessas impressões na substância mental, que embora invisível na superfície, tem suficiente poder para atuar na profundidade, subconscientemente. O total dessas impressões determina o que somos; neste preciso instante, eu sou o resultado do total das impressões recebidas durante minha vida anterior. A esta realidade, chamamos de caráter; o caráter de cada ser humano se acha determinada pela soma total dessas impressões. Prevalecendo as boas, aquele será bom, se as más, mau. Se um homem ouve continuamente más palavras, concebe maus pensamentos e executa ações malvadas, sua mente ficará cheia de más impressões; estas influirão seu pensamento e seus atos, sem que ele esteja consciente disso. Por outro lado, essas más impressões sempre estarão trabalhando e o resultado deve ser mau; esse homem tem que ser mau, sem poder evita-lo; o conjunto dessas impressões atuará como um poderoso impulso para o mal e o manipularão com se fosse uma máquina, obrigando-o a fazer o mal. Da mesma maneira, se um homem concebe bons pensamentos e realiza boas ações, o conjunto dessas impressões será bom e o obrigará a fazer o bem até a despeito de si mesmo. Quem realiza muitas boas obras e concebe inumeráveis bons pensamentos, tende irresistivelmente para o bem e até quando quiser fazer o mal, sua mente, que é a soma total de suas tendências, não permitirá, pois sua influência é decisiva. Diz-se, neste caso, que o bom caráter está firmado.
Da mesma maneira que a tartaruga recolhe os pés e a cabeça dentro da carapaça e não os tira dali enquanto não a mateis e a despedaceis, assim se acha imutavelmente firmado o caráter de quem domina seus impulsos e seus órgãos; controla suas forças internas e nada pode faze-las sair contra sua vontade. Mediante este contínuo reflexo de bons pensamentos e de boas impressões que ocorrem na superfície da mente, se fortalece a tendência de fazer o bem e como resultado, nos sentimos capazes de controlar os indriyas (órgãos dos sentidos, os centros nervosos). Só assim se firma o caráter; só então, o homem alcança a verdade e fica seguro para sempre; não pode fazer mal algum; seja qual for a companhia com que ande, não correrá perigo algum. Existe até um estado mais elevado que o de possuir esta boa tendência, é o desejo da libertação.
Deveis recordar que a liberdade da alma é a meta de todos os yogas e cada um deles conduz igualmente ao mesmo resultado. Somente trabalhando podemos conseguir o que obtiveram Buda, principalmente por meio da meditação e Cristo, pela devoção. Buda foi o jnani ativo e Cristo um bhakta, mas ambos alcançaram o mesmo objetivo. A dificuldade reside em que a libertação significa completa liberdade – liberdade das travas do bem, assim como as do mal. Uma cadeia de ouro é tão cadeia como a de ferro. Tenho um espinho cravado em um dedo e uso outro para extraí-lo; depois lanço fora os dois; não necessito conservar o segundo, já que, depois de tudo, os dois são espinhos.
Da mesma maneira, as más tendências hão de ser contestadas pelas boas e as más impressões da mente, pelas ondas refrescantes das boas, até que todo o mal desapareça quase por completo, ou fique submetido ou controlado em um canto da mente; mas depois disto, as boas tendências também devem ser conquistadas. Desta maneira, o homem “ligado”, se “desliga”. Trabalhais, mas não permitais que a ação ou o pensamento produza uma profunda impressão mental; deixais que as ondas venham e vão; que as grandes ações procedam dos músculos e do cérebro, mas não deixeis causar profunda impressão na alma.
Como pode alcançar-se isto? Vemos que as impressões de qualquer ação, a qual nos ligamos, perduram.
Posso encontrar centenas de pessoas durante o dia e, entre elas, uma a quem amo; a noite, quando me retiro e trato de recordar todos os rostos que vi, só um se apresenta na minha memória, ele que vi somente durante um instante e o qual eu amo; os demais se desvanecem. Minha atração para aquela pessoa causou em minha mente uma impressão mais profunda que todas as demais. As impressões foram todas fisiologicamente iguais; cada um dos rostos que vi, se refletiu na retina, o cérebro captou a imagem e, no entanto, não produziram um efeito similar na mente. Muitos semblantes eram, talvez, completamente desconhecidos e antes não havia pensado neles, mas aquele do qual só tive um vislumbre, fez associações internas. Talvez não tinha estado gravando em minha mente durante anos, talvez conhecesse muitas coisas referentes a ele e essa nova visão despertou em minha mente centenas de adormecidas recordações; se essas impressões chegam a repetir-se muito mais vezes que todos os demais rostos, produzirão um grande efeito sobre a mente.
Por conseguinte, permaneceis “desligados”; deixeis que as coisas atuem; que atuem os centros cerebrais; obrais incessantemente, mas que nem uma só onda conquiste a mente. Trabalheis como se fossem estrangeiros nesta terra; como passageiros; obrais incessantemente, mas não vos ligueis; é terrível estar ligado.
Este mundo não é nossa morada, é somente um dos muitos estados pelos quais estamos passando. Recordais o grande aforismo da filosofia sankhya: “A natureza toda é para a alma, não a alma para a natureza”. A natureza só existe para a educação da alma; não tem outro objetivo; eis porque a alma deve ter conhecimento para libertar-se. Se nos recordamos sempre disto, jamais nos aferraremos à natureza; saberemos que este é um livro o qual temos que ler e que já não possuirá valor algum para nós, quando tivermos adquirido o conhecimento que o encerra. Não obstante, em vez disto, nos identificamos como a natureza; pensamos que a alma é para ela, que o espírito é para a carne e como afirma o dito comum, pensamos que o homem “vive para comer” e não que “come para viver”. Continuamente cometemos o mesmo erro; consideramos a natureza como nós mesmos e assim, nos ligamos a ela; tão logo se apresenta esta ligação, se produz uma profunda impressão na alma, impressão que nos domina e nos induz a trabalhar como livres, não como escravos.
O ponto capital deste ensinamento, é que deveis atuar como “amos” e não como “escravos”; trabalha incessantemente, mas não em tarefas de escravos. Não vejais como trabalha todo mundo? Nada podeis permanecer completamente em repouso, noventa e nove por cento dos homens trabalham como escravos e o resultado é sofrimento; tudo é trabalho egoísta. Trabalheis pela liberdade, trabalheis por amor!
A palavra amor é dificílima de compreender; o amor não existe enquanto não existir liberdade. Não há possibilidade de verdadeiro amor no escravo. Se adquiris, vos encarcerais e os obrigais a trabalhar para vós, trabalhará como um ganha-pão, mas não o fareis por amor a ele. Da mesma maneira, quando nós trabalhamos como escravos pelas coisas do mundo, não podemos sentir amor e nosso trabalho não é verdadeiramente trabalho. Acontece com o que fazemos por nossos parentes e amigos, como o que fazemos conosco mesmo; toda a ação egoísta é obra de escravos e há aqui uma prova: cada ato de amor aporta felicidade; não existe ato de amor que não produza, como reação, a paz e a felicidade.
A existência, o conhecimento e o amor reais estão eternamente relacionados uns com os outros, os três em um; onde está um deles, também tem que estar os outros; são os três aspectos do Uno sem segundo – a “Existência-Conhecimento-Felicidade”. Quando esta Existência se faz relativa, a vemos como o mundo; este Conhecimento se modifica, por sua vez, no conhecimento das coisas mundanas e esta Felicidade constitui a base de o todo verdadeiro amor que seja capaz de sentir o coração humano. Portanto, o verdadeiro amor nunca pode reagir de modo que cause dor ao amante, nem ao amado. Suponha que um homem ame a uma mulher; a quer toda para ele somente e sente violentos ciúmes dela a cada momento; necessita que esteja sentada perto dele, que permaneça junto a ele e que coma e se mova a seu comando. Converte-se em um escravo dela e quer tê-la como sua escrava. Isto não é amor, senão uma espécie de afeto mórbido do escravo que se insinua como amor. Não pode ser amor, porque é doloroso; se ela não faz o que ele deseja, lhe ocasiona sofrimento. O amor não produz reações dolorosas; só produz felicidade, do contrário, não é amor; é confundir outra coisa com amor.
Quando tiver alcançado amar a vossa esposa, ao vosso marido e filhos, a todo mundo, o universo, de tal maneira que não exista reação de dor ou de ciúmes, nenhum sentimento egoísta, então os fareis em estado apropriado para estar desligados.
Krishna disse: “Contempla-me, Arjuna! Se deixo de atuar um só instante, todo o universo perecerá. Nada ganharei com minha obra; sou o Senhor único, porque obro, pois: Porque amo ao mundo”.
Deus está desligado porque ama; um amor como esse, verdadeiro, nos liberta das travas.
Onde quer que exista apego e atração por coisas mundanas, saiba que só se trata de algo físico, de uma atração entre moléculas; algo que atrai dois corpos cada vez mais próximos e que produz dor, se não podem unir-se; mas quando há o verdadeiro amor, este não se baseia, em absoluto, em atrações físicas. Tais amantes podem se achar a mil milhas um do outro e seu amor será sempre o mesmo; não morre, nem produzirá nunca uma reação dolorosa.
Custa quase o trabalho de uma vida obter esse desapego, mas assim que chegamos à meta do amor e alcançamos a liberdade, caem os grilhões com que nos sujeitam a natureza e a vemos tal qual é; não forjará mais cadeias para nós; seremos completamente livres e não levaremos em conta o resultado das obras; quem se preocupa, então, de qual será o resultado?
Pedis a vossos filhos algo em compensação dos que lhes distancia? Vosso dever é trabalhar para eles e nada mais. Enquanto fazeis por uma pessoa, por uma cidade ou Estado, assumis a mesma atitude que tomais para com vossos filhos, não espereis recompensa alguma. Se podeis tomar invariavelmente a atitude de doador, oferecendo gratuitamente ao mundo quanto dais, sem idéia de recompensa, vossa obra não vos acarretará ligações. Estas somente acontecem, quando esperamos recompensa.
Trabalhando como escravos, se produz egoísmo e apego, trabalhando como amos de nossas mentes, gozaremos da felicidade do desapego. Freqüentemente falamos de retidão e justiça, mas observamos que no mundo, o bom e o justo são mera conversa de criança.
Duas coisas influem sobre a conduta humana: o poder e a compaixão. Exercer o poder e exercer o egoísmo. Todos os seres humanos procuram aproveitar o máximo possível do poder ou vantagem que possuem. A compaixão está no mesmo céu; para sermos bons, devemos ser clementes. Até a justiça e o direito devem apoiar-se na clemência.
Todo pensamento de obter recompensa pela obra que realizamos, incomoda nosso progresso espiritual; mais ainda, no fim, produz sofrimento.
Existe outro modo de praticar este conceito de misericórdia e de caridade altruísta: o de considerar toda obra como “um culto”, se acreditar em um Deus pessoal. Se oferecermos ao Senhor todos os frutos de nossas obras e rendermos-lhe este culto, já não teremos direito de esperar recompensa dos homens. O Senhor mesmo trabalha incessantemente e sempre está livre de ligações. Assim como a água não pode umedecer a folha de loto, tampouco o trabalho pode escravizar o individuo inegoísta que não sente apego pelos seus resultados. Quem carece de egoísmo e de ligações, pode viver em pleno centro de uma cidade populosa e pecadora, sem que o contamine o pecado.
Este conceito de completa abnegação acha-se ilustrado na seguinte narração: - Depois da batalha de Kurukshetra, os cinco irmãos Pandavas celebraram um imponente sacrifício e deram custosas esmolas aos pobres. Todos os presentes expressavam seu assombro ante a magnitude e magnificência do sacrifício, dizendo que jamais haviam visto outro igual no mundo.
Mas, depois da cerimônia, chegou ali uma pequena raposa; tinha a metade do corpo dourado, a outra metade de cor parda e começou a dar voltas no piso do recinto do sacrifício. Depois, dirigindo-se aos presentes, exclamou: “Sois todos uns embusteiros, isto não é um sacrifício”. “Como!”, responderam, “dizes que isto não é um sacrifício, não sabes que foram repartidos tanto dinheiro e jóias entre os pobres que agora cada um deles se tornou rico e feliz? Este é o sacrifício mais assombroso que foi feito por algum homem”.
Mas a raposa replicou: “Certa vez, numa pequena aldeia, residiam um pobre brahmin com sua mulher, seu filho e a esposa deste. Eram muito pobres e viviam das pequenas doações que recebiam, por pregar e ensinar. Aquela comarca sofreu de uma fome que durou três anos, e o pobre brahmin padeceu muito antes. Finalmente, quando já fazia dias que a família não provava nenhum alimento, o pai trouxe, numa manhã, um pouco de farinha de cevada, que havia tido a sorte de conseguir e a dividiu em quatro partes, uma para cada um deles. A prepararam para come-la e, no preciso momento em que se dispunham a faze-lo, chamaram à porta. O pai abriu e se apresentou um hóspede. Convém saber que na Índia, um hóspede é uma pessoa sagrada, considerada como um deus enquanto permanece na casa e, como tal, deve ser tratado. Portanto, o pobre brahmin disse-lhe: “Entre, senhor: bem-vindo sejas”. Pôs diante do homem sua porção de alimento, que o convidado devorou rapidamente, dizendo: “Oh, senhor!, Queres-me matar! Faz dez dias que desfaleço de fome e este pouco alimento só serviu para aumenta-la.”. Disse, então, a mulher ao marido: “Dá-lhe minha parte”, mas este negou-se a faze-lo, até que ela insistiu: “Aqui está este pobre homem e nosso dever, como donos de casa, é dar-lhe de comer. Cumpro o meu dever como esposa, oferecendo-lhe minha parte, ao ver que tu não tens mais para dar-lhe”. Assim fez o visitante, depois de comer, exclamando que ainda estava morto de fome. A vista disso, o filho disse: “Toma também minha parte; o dever de um filho é ajudar os pais a cumprir sua obrigações”. O hóspede a comeu e ainda não ficou satisfeito, de modo que a esposa do filho também deu-lhe sua ração. Com essa, foi suficiente e o hóspede partiu, bendizendo-os.
Nessa mesma noite os quatro morreram de fome. Alguns grãos daquela farinha caíram ao chão e ao pisar sobre eles, a metade de meu corpo adquiriu uma cor dourada, como vistes. Desde então, tenho percorrido todo o mundo, esperando achar outro sacrifício como aquele sem encontrar em parte alguma e, por isso, não foi possível dourar a outra metade de meu corpo. Por isso digo que isto não é sacrifício”.
A idéia de caridade vai desaparecendo da Índia; os grandes homens são cada vez menos. Quando comecei a aprender inglês li em um livro de contos um relato sobre um menino submisso, que entregava a sua mãe anciã tudo o que ganhava; o elogio de tal ação chegava a 3 ou 4 páginas. Que significa isto? Nenhum menino hindu poderá compreender jamais o moral deste conto. Eu compreendo agora, que ouço falar do conceito ocidental: cada um por si. Alguns homens o tomam para si, abandonando os pais, mães, esposas e filhos. Nunca, em parte alguma, deveria ser este o ideal do chefe de família.
Agora sabeis o que significa karma-yoga; ajudar a qualquer, mesmo às custas da vida e sem fazer averiguações. Embora os enganem um milhão de vezes, não averigüeis, nem penseis no que estais fazendo. Nunca vos gabeis das esmolas aos pobres, nem espereis sua gratidão, fiqueis mais bem agradecidos porque lhes proporcionastes a ocasião de praticar a caridade.
De tudo isto se aprende que ser um chefe de família ideal constitui uma tarefa muito mais difícil que a de ser um sannyasin ideal; a verdadeira vida de trabalho resulta em realidade tão árdua, se não mais, que a verdadeira renúncia.
“OS PRIMEIROS PASSOS PARA
BHAKTI”
Swami
Vivekananda
Os filósofos que escreveram sobre o bhakti o definiram como o mais elevado amor por Deus. Por que deve o homem amar a Deus? Tal é a pergunta que devemos contestar e até não a termos feito, não poderemos compreender o tema. Existem dois ideais de vida completamente diferentes. O homem de qualquer país, adepto de qualquer religião, sabe que é um corpo e também um espírito. Mas há uma grande diferença quanto às metas da vida humana.
Nos países ocidentais, em geral, as pessoas dão mais valor ao aspecto corpóreo do homem; aqueles filósofos que escreveram sobre o bhakti, na Índia, concederam maior importância à face espiritual do ser humano. Esta diferença entre o oriente e o ocidente, parece típica e se manifesta até na linguagem comum. Na Inglaterra, ao referir-se a morte, se diz: “que o homem entregou seu espírito a Deus”; na Índia, “Abandonou seu corpo”. A concepção, no primeiro caso, é de que o homem é um corpo e possui uma alma; no outro, que o homem é uma alma e possui um corpo. Destas diferenças, surgem problemas mais intrincados.
Como é lógico, quem sustenta que o homem é um corpo e possui um espírito, dá maior importância ao corpo e, se lhes perguntar para que vive o homem, responderão que é para gozar de seus sentidos, de suas posições e riquezas. Não podem sonhar com algo mais além, embora lhes falem disso; e só concebem a vida futura como prolongamento de tais gozos. Lamentam que seus prazeres não possam perdurar na terra, porém têm que partir e pensam que de uma ou outra maneira, irão a um lugar onde se renovarão seus prazeres. Desfrutarão dos mesmos gozos, terão os mesmos sentidos, porém mais avivados e intensificados. Desejam adorar a Deus porque Ele é o meio para alcançar este fim. A meta de sua vida é gozar dos objetos dos sentidos; chegar a saber que existe um Ser que pode proporcionar-lhes um longo período de tais gozos e por isso adoram a Deus.
Diferindo do que o antecede, afirma o conceito hindu: Deus é a meta da vida e nada existe além Dele. Os prazeres sensuais são, simplesmente, um estado intermediário pelo qual passamos, confiando em alcançar algo melhor. Não só isso, senão que seria desastroso e terrível que o homem não tivesse mais do que os prazeres dos sentidos. A cada dia observamos que quanto menos se goza dos prazeres sensuais, tanto mais elevada é a vida do homem. Olhe um cachorro comendo. Nenhum homem comeu, jamais, com a mesma satisfação. Observa o porco que grunhe de prazer, enquanto engole seu alimento; sente-se no paraíso e se o maior arcanjo viesse contempla-lo, o porco nem sequer repararia em sua presença; toda sua existência concentra-se na comida. Não nasceu um ser humano capaz de alimentar-se com tal empenho. Pense na refinada audição dos animais inferiores, no potencial de sua visão; todos os sentidos estão muito desenvolvidos. Seu gozo sensual é extraordinário; enlouquecem de deleite e prazer. E quanto mais inferior é o homem, mais deleite experimenta com os sentidos. A medida em que se eleva, a razão e o amor se convertem em sua meta. Proporcionalmente ao desenvolvimento de tais faculdades, perde o poder de gozar dos sentidos.
Para dar um exemplo: se supusermos que o homem recebe certa quantidade de energia que pode empregar no corpo, na mente e no espírito, quanto mais energia utiliza em um desses, tanto menos ficará para os demais. As raças ignorantes ou selvagens possuem faculdades sensórias muito mais potentes que as raças civilizadas e esta é, na realidade, uma das lições que aprendemos da história; a medida em que uma nação vai civilizando-se, o sistema nervoso de seus habitantes refina-se e eles debilitam-se fisicamente.
Ao civilizar-se uma raça selvagem, observa-se o mesmo; chega outra raça bárbara e conquista a primeira. Quase sempre é a raça bárbara a vencedora. Notamos, então, que se só desejarmos gozar constantemente dos sentidos, nos degradamos até chegar ao estado primitivo. Não sabe o que pede, quem diz que deseja ir a um lugar onde se intensifiquem seus prazeres sensuais; isso só se pode alcançar descendo ao estado selvagem.
Do mesmo modo, quem deseja um paraíso de gozos sensuais, são como porcos que chafurdam no lodaçal dos sentidos, incapazes de perceber nada mais além. Esse prazer dos sentidos é o único que desejam e sua perda representa, para eles, a perda do paraíso. Nunca podem ser bhaktas, no mais puro sentido da palavra; jamais chegarão a ser verdadeiros amantes de Deus. Contudo, embora conservem tão baixo ideal durante certo tempo, irão modificando gradualmente, na medida em que descobrem a existência de algo que antes não conheciam e dessa maneira, desaparecerá paulatinamente esse apego à vida e aos objetos dos sentidos.
Quando eu era um pequeno estudante, briguei com um condiscípulo por umas guloseimas e como ele era mais forte, tirou-as de mim. Lembro a sensação que experimentei; pensei que este menino era o mais perverso que havia nascido e que se eu fosse mais forte, o castigaria; para mim não existia, naquele momento, castigo suficiente para sua maldade. Nós dois somos, agora, homens e amigos íntimos. O mundo está cheio de meninos para os quais a comida, a bebida e os bolinhos constituem tudo para eles. Sonham com isso e sua concepção de vida futura, é um lugar onde abundam tais guloseimas.
Pense no índio americano que crê que sua vida futura se desenvolverá em um excelente campo de caça. Cada um de nós imagina o céu tal como desejaria que fosse, mas com o correr do tempo e a medida em que crescemos e vamos conhecendo as coisas mais elevadas, captamos visões superiores do mais além.
Mas não recunciemos a nossa concepção de vida futura, tal como se costuma fazer na atualidade: não crendo em coisa alguma. Isso é a destruição. O agnóstico, que tudo destrói desse modo, está equivocado, o bhakta vê mais além. Aquele não deseja ir ao céu porque carece dele; no entanto o bhakti não deseja, porque considera que é jogo de crianças. Deseja a Deus. Que fim pode ser mais elevado que Deus? Deus é a meta mais elevada do homem; vê-lo, gozar Dele. Nada superior podemos conceber, porque Deus é a perfeição. Não podemos imaginar um prazer mais elevado que o do amor, mas o vocábulo “amor” possui distintas acepções. Não significa o comum amor egoísta mundano; é uma blasfêmia denominar isso o amor.
É meramente animal o amor para nossos filhos e para nossa esposa; só merece chamar de amor desinteressado o totalmente inegoísta, ou seja, o que experimentamos para com Deus. É muito difícil alcança-lo. Passamos por diferentes tipos de amores: o amor aos filhos, ao pai, a mãe, etc. Pouco à pouco vamos exercendo a faculdade de amar; mas na maioria dos casos, nada nos ensina; ficamos escravizados, detidos em nosso avanço, ligados a uma pessoa; poucas vezes consegue alguém livrar-se dessas cadeias.
Os homens andam em posse das mulheres, das riquezas e da fama e quando recebem golpes muito duros, descobrem o que o mundo é, na realidade. Ninguém no mundo pode amar verdadeiramente, se não for a Deus. O homem percebe que todo amor humano é oco; não pode amar, embora fale disso. A mulher diz que ama seu marido e o beija; mas assim que ele morre, a primeira coisa que pensa é na conta do banco e no que fará no dia seguinte. O marido ama sua mulher, mas quando está enferma e perde sua beleza, quando fica macilenta ou comete um erro, já não se preocupa com ela. Todo o amor mundano é hipocrisia e vacuidade.
Um sujeito finito não pode amar e um objeto finito não pode ser amado. Quando o objeto do nosso amor morre continuamente e nossa mente, enquanto vamos crescendo, também evolui constantemente, que amor eterno pretendemos achar neste mundo? Não pode existir nenhum amor real, senão em Deus; então para que todos os demais amores? Somente são meras etapas. Nesses afetos humanos esconde-se uma força que nos impulsiona para diante e embora ignoremos onde achar o que verdadeiramente amamos, prosseguimos buscando. Constantemente descobrimos nosso erro. Fazemos algo e notamos que nos escapa por entre os dedos, então tomamos alguma outra coisa. Assim, prosseguimos nosso caminho até que, por fim, chega a luz; nos aproximamos de Deus, o Único que ama. Seu amor é imutável e sempre está disposto a nos acolher. Até onde suportaria qualquer de vós que eu insultasse? Aquele, em cuja mente não existe o rancor, o ódio, nem a inveja, que nunca se altera, nem morre, nem nasce, quem, senão Deus?
Mas o caminho é longo e difícil e muito poucos chegam até Deus. Somos criaturas que lutam. Milhões de pessoas comerciam com a religião. Cada século nos apresenta uns poucos seres que alcançam esse amor para Deus; quando aparece um deles, todo o país se santifica. É certo que são pouquíssimos, mas todos devem esforçar-se por alcançar este amor divino. Quem sabe se vós ou eu seremos os próximos a alcança-lo? Lutemos por esse objetivo.
Dizemos que uma mulher ama a seu marido. Ela pensa que toda sua alma se concentra nele; chega um filho e a metade desse amor, ou mais, passa à criança; sente, então, que já não ama a seu marido do mesmo modo. Semelhante coisa acontece com o pai. Sempre observamos que quando chegamos a nossos objetivos de amor mais intenso, o amor anterior desaparece lentamente.
Crêem os estudantes que adoram a seus condiscípulos ou a seus pais; mas quando crescem e se casam, desvanece-se aquele carinho e só existe o novo amor. Primeiro surge uma estrela, logo outra maior e depois uma maior até; por fim, sai o sol e desvanecem as demais luzes. Esse sol é Deus. As estrelas são os amores menores. Quando esse sol o ilumina, o homem enlouquece e segundo as palavras de Emerson “está bêbado (ébrio?) de Deus”; transforma-se em Deus e esse oceano de amor inunda tudo. O amor comum é só atração animal. Do contrário, por que existe distinção entre os sexos? Se não se ajoelha ante uma imagem, trata-se de uma temível idolatria, mas em troca, é tolerável que se ponha de joelhos ante seu marido ou sua mulher!
O mundo nos apresenta múltiplas etapas de amor. Primeiro, temos que esclarecer o motivo; toda a teoria do amor se baseará em nossa concepção da vida. Brutal, próprio de seres degenerados, é considerar este mundo como objeto e fim da vida. O homem que começa a viver com tal idéia, degenera. Nunca se elevará, nem terá uma visão de fundo, sempre será um escravo dos sentidos. Lutará pelo dólar que lhe proporcionará uns bolinhos para comer. É melhor morrer, que viver esta vida. Escravos deste mundo, escravos dos sentidos, despertemo-nos; existe algo superior a esta vida sensória. Acreditas que o homem, o Espírito Infinito, nasceu para ser escravo de seus olhos, seu nariz, suas orelhas? Existe um Espírito Infinito e Onisciente, latente, que pode fazer tudo, romper todos os laços e esse Espírito é nós; conseguimos essa energia mediante o amor. Esse é o ideal que devemos recordar. Supostamente, não podemos alcançar em um dia. Podemos nos iludir que o possuímos, mas é só uma fantasia; o caminho é muito, mas muito longo.
Devemos aceitar o homem onde estiver e tal como seja e ajuda-lo a ascender. Atualmente permanece ancorado no materialismo; vós e eu somos materialistas. Falamos, isso é certo, sobre Deus e o Espírito, coisa boa, sem dúvida alguma; mas o fazemos porque está em moda em nossa sociedade; só repetimos o que temos aprendido, como papagaios. Devemos, por conseguinte, nos confessar materialistas, aceitar a ajuda da matéria e continuar lentamente, até nos convertermos em verdadeiros espiritualistas, até sentirmos o espírito, até compreender o espírito e descobrir que o mundo, o qual chamamos infinito, só é a forma externa e grosseira do mundo que se acha por detrás.
Mas se necessita de algo mais. Afirma o Sermão da Montanha: “Pedi e se os dará; buscai e encontrareis; bate a porta e se abrirá”. A dificuldade está em saber quem busca e quem necessita. Todos dizemos que conhecemos a Deus. Um escreve um livro para impugnar a Deus; outro, para demonstrar sua existência. Um, pensa que é seu dever demonstrar, durante toda a vida, a existência de Deus; outro, a nega-lo e ensina aos homens que não existe Deus. Que objetivo tem escrever um livro para demonstrar ou negar a existência de Deus? Que interessa à maioria das pessoas que exista ou não um Deus? Quase todos os homens trabalham mecanicamente, sem pensar em Deus e sem sentir necessidade Dele. Porém, certo dia chega a morte e lhe diz: “Vem”. O homem responde: “Espera um momento, necessito de um pouco mais de tempo. Quero ver como cresce meu filho”. Mas a morte insiste: “Vem logo”. E acontece. Assim morre o pobre João. Que diremos ao pobre João? Nunca encontrou nada em Deus que fosse mais elevado. Talvez tivesse sido um porco, no passado e seja muito melhor como homem.
Mas há alguns que despertam um pouco. Acontece uma desgraça, morre alguém a quem queremos muito, ou fracassamos em alguma coisa a qual nos dedicávamos com toda nossa alma e por cuja execução tenhamos enganado a todo mundo, inclusive a nosso próprio irmão; o golpe nos aflige e, possivelmente então, ouvimos dentro de nossa alma, uma voz perguntando: “E depois disso?”. Ás vezes a morte chega de um golpe, mas são poucos os casos em que isso acontece. A maioria de nós, quando algo nos escapa por entre os dedos, dizemos: “E depois?”. Como nos apegamos aos sentidos! Diz-se que quem está a ponto de afogar-se, aferra-se a uma fibra de palha; o mesmo faz a maioria das pessoas, e quando a fibra de palha afunda, diz que se deve ajudar. Mas tudo é inútil; “há que gozar e divertir-se” antes de pensar em coisas mais elevadas.
Bhakti é uma religião. A religião não foi feita para a maioria, nem seria possível ser assim. A essa maioria pode ser conveniente uma espécie de ginástica para os joelhos, consiste em genuflexões, mas a religião é para uns poucos. Em todo o país existem só umas poucas centenas de indivíduos que podem ser e serão religiosos. Os demais não podem ser, porque não despertam, nem querem ser despertados. O principal é necessitar de Deus. Nós necessitamos de tudo, exceto de Deus, porque o mundo externo satisfaz nossas demandas ordinárias; só quando nossas necessidades transcendem o mundo externo, recorremos ao mundo interno, a Deus.
Enquanto nossas necessidades estiveram limitadas por este universo físico, não podemos necessitar de Deus; só quando tivermos saciado com tudo que é terreno, buscamos algo mais. Só quando a necessidade se apresentar, chegará a demanda. Pareis o quanto antes com este infantil jogo do mundo; sentireis, então, que necessitais de algo superior. Esse será o primeiro passo para a religião.
Também em questões religiosas, existem modas. Minha amiga tem uma sala repleta de móveis, mas como a moda exige que possua também um jarro japonês, o adquire, embora não precise dele e embora custe mil dólares. Da mesma maneira terá uma pequena religião e assistirá a uma missa na igreja. Bhakti não é para essa espécie de pessoas. Isso não é “necessidade”. Necessidade significa o que nos é imprescindível. Necessitamos respirar, nos alimentar, nos vestir; sem isso, não podemos viver. Quando o homem ama a uma mulher, há momentos em que sente que sem ela não pode viver, embora isso seja um erro. Quando morre o marido, a mulher pensa que não pode viver sem ele; mas continua vivendo.
Necessitamos, realmente, daquele sem o qual não podemos existir; devemos alcança-lo ou morremos. Quando chega o instante em que assim necessitamos de Deus, ou dito de outro modo, quando desejamos algo mais além deste mundo, algo que está acima das forças materiais, então podemos nos converter em bhaktas. Que são nossas pequenas vidas quando, por um momento, se afasta a nuvem e captamos a visão do mais além e durante este momento, todos os desejos inferiores parecem uma gota em um oceano? Então a alma se engrandece, sente a necessidade de Deus e se obstina em querer alcança-lo.
O primeiro passo é, de quê necessitamos? Nos formulemos diariamente essa pergunta: Necessitamos de Deus? De nada serve ler livros e mais livros; esse amor não se alcança mediante a leitura, nem exercitando o intelecto, nem pelo estudo de diversas ciências.
Quem deseja a Deus, obterá o amor, porque Deus se entregará. O amor é sempre mútuo e se reflete. Vós podeis odiar-me e se quer ama-los, me rechaçareis. Porém, se insisto, depois de um mês ou um ano, os vereis obrigados a querer-me. É um fenômeno psicológico bem conhecido. Com o mesmo amor que a mulher enamorada pensa em seu defunto marido, devemos desejar a Deus e então o encontraremos; nada pode nos ensinar os livros, nem as ciências. Lendo livros, nos convertemos em papagaios; não se chega a nada lendo livros. Se um homem lê uma só palavra de amor, é indubitável que chegue a erudito. Por isso necessitamos, antes de tudo, sentir tal desejo.
Perguntemo-nos diariamente: necessitamos de Deus? Quando começarmos a falar de religião e especialmente quando nos colocarmos em uma posição mais elevada e começarmos a ensinar os demais, devemos fazer a mesma pergunta. Muitas vezes descubro que não necessito de Deus, que me faz mais falta o pão. Posso enlouquecer, se não consigo um pedaço de pão; muitas damas enlouqueceriam se não conseguissem um prendedor de diamantes, mas não sentem o mesmo desejo por Deus; não conhecem a única Realidade que existe no universo.
Temos um provérbio em nosso idioma: “Se quero ser caçador, caçarei um rinoceronte; se quero ser ladrão, roubarei o tesouro do rei”. De que serve roubar os mendigos e caçar formigas? De maneira que se quereis amar, ama a Deus. Que importa o mundano? Este mundo é completamente falso; todos os grandes mestres o descobriram; não existe maneira de livrar-se, senão mediante Deus. Ele é a meta de nossa vida; todas as concepções de que o mundo é o fim da vida, são perniciosas.
Este mundo e este corpo possuem seu próprio valor, um valor secundário, como meio para alcançar um fim, mas o mundo não deve ter um fim. Desgraçadamente, com demasiada freqüência fazemos do mundo o fim e de Deus, o meio para alcança-lo. Encontramos as pessoas que assistem a missa na igreja e dizem: “Deus, concede-me tal e tal coisa; Deus, cura minha doença”. Desejam corpos formosos e sadios e como observam que alguém o consegue, rezam a Deus.
Mais vale ser ateu, que possuir tal conceito de religião. Como tenho lhes dito, o bhakti é o ideal mais elevado; não sei se chegaremos a alcança-lo dentro de milhões de anos, mas devemos considera-lo como nosso ideal supremo, fazer com que nossos sentidos aspirem o mais elevado. Se não alcançamos a meta, pelo menos nos aproximamos dela. Devemos ir deixando para trás, pouco a pouco, o mundo e os sentidos, para alcançar a Deus.
“O MESTRE DA
ESPIRITUALIDADE”
Swami
Vivekananda
Toda alma está destinada a ser perfeita e todo ser chegará, inevitavelmente, a alcançar a perfeição. O que somos é conseqüência do que temos sido ou pensado, no passado e o que chegarmos a ser, no futuro, dependerá do que fazemos agora, ou pensamos. Mas isto não impede que recebamos ajuda do exterior; esta última acelera até tal ponto as possibilidades da alma, que se torna quase imprescindível, na imensa maioria dos casos. A influência aceleradora proveniente do exterior atua sobre nossas potencialidades, começando, então, o desenvolvimento; aparece a vida espiritual e o homem, finalmente, chega a ser santo e perfeito.
O impulso estimulante externo não pode vir dos livros; a alma somente pode receber esse impulso de outra alma e nenhuma outra coisa pode dar-lhe. Embora armazenemos erudição durante toda uma vida, extraindo-a de livros e cheguemos a ser altamente intelectuais, devemos confessar, ao final, a nulidade de nosso desenvolvimento espiritual. Não devemos deduzir que o maior grau de desenvolvimento intelectual corresponde a um maior nível espiritual; muito pelo contrário. Comprovamos quase que diariamente, que em muitos casos o intelecto se desenvolve a revelia da parte espiritual.
Muitos ajudam os livros a despertar e fortalecer a inteligência, mas pouco serve para o desenvolvimento. Quando os lemos e estudamos, cremos, às vezes, receber uma colaboração espiritual, mas se analisarmos, achamos que somente foi recebida ajuda ao nosso intelecto e não ao nosso espírito.
Por isso, quase todos nós somos capazes de falar magistralmente sobre os temas espirituais, mas quando nos chega o momento de atuar, fracassamos lamentavelmente. Isso se deve a que os livros não podem estimular o espírito; o impulso há de vir pela força de outra alma.
A alma de onde parte o impulso denomina-se guru, instrutor e aquela que o recebe, se chama discípulo, estudante. Para que se verifique a operação, a alma de onde se origina o impulso deve possuir o poder de transmiti-lo a outras, por assim dizer, e a alma receptora deve estar capacitada para a dita recepção. A semente deve estar bem viva e o campo perfeitamente arado; quando se enchem dessas duas condições, se obtém um maravilhoso desenvolvimento de religião. “O pregador da religião e seu ouvinte, devem ser maravilhosos” e quando ambos o são e em grau superlativo, se produz um esplêndido desenvolvimento espiritual.
Tais são os verdadeiros instrutores e os verdadeiros alunos. Os demais não fazem senão entreter-se com a espiritualidade, travar pequenas discussões intelectuais, satisfazer mesquinhas curiosidades, mas se acham somente na zona externa do panorama religioso. Contudo, algum valor tem isto, pois pode despertar a verdadeira sede de religião; tudo chega com o transcorrer do tempo.
Por uma misteriosa lei da natureza, enquanto está pronto o terreno, a semente deve, por força, chegar; apenas a alma quer religião, deve acudir quem a transmita. “O pecador que busca, encontra o Redentor”. Quando a força de atração da alma receptora chega a sua culminação, deve chegar ao poder que responde a tal atração.
Porém, existem grandes perigos no caminho, entre eles o de que confunda a alma receptora, sua emoção momentânea, com o verdadeiro desejo religioso. Não é factível observar isso em nós mesmos; morre alguém a quem amamos; recebemos um golpe; por um momento pensamos que este mundo desliza entre os dedos, que desejamos algo superior e que seremos religiosos. Em poucos dias se desvanece a onda e permanecemos encalhados onde estávamos. Com freqüência, confundimos esses impulsos com verdadeira sede de religião e enquanto perdurar essa confusão, não surgirá esse verdadeiro e ininterrupto desejo da alma, nem encontraremos o transmissor.
Da
mesma maneira, quando nos lamentamos por não ter achado a verdade, apesar de
tanto deseja-la, deveríamos, em vez de nos lamentar, perscrutar nossa própria
alma para observar se realmente a necessitamos; na imensa maioria dos casos,
acharemos que não estamos preparados, não queremos, não ansiamos o espiritual.
Existem até mais dificuldades para o transmissor. Muitos indivíduos, mergulhados na ignorância, mas plenos de orgulho, crêem saber de tudo. E não se detêm ali, senão que se oferecem a carregar os outros sobre seus ombros e dessa maneira, “um cego guiando outro cego, cairão os dois na vala”. O mundo está cheio disso; todos querem ser instrutores, cada mendigo deseja fazer uma doação de um milhão de dólares e tanto um como o outro, acabam igualmente ridículos.
Então, como conheceremos o mestre? Em primeiro lugar, o sol não requer tochas para se fazer visível. Não acendemos uma vela para ver o sol. Quando o astro rei aparece no horizonte, instintivamente nos damos conta de sua aparição e quando um instrutor de homens vem para nos ajudar, a alma saberá instintivamente que encontrou a verdade. A verdade se apóia em sua própria evidência; não requer nenhum testemunho que a confirme e brilha por si mesma, sem necessidade de ajuda. Penetra no mais recôndito de nossa natureza e todo o universo se levanta e proclama: “Esta é a Verdade”. Estes são os maiores mestres, mas também podemos obter ajuda dos menores. Como não somos intuitivos o bastante para estarmos seguros de nosso critério ao julga-los, devemos examinar as provas. Se requererem certas condições, tanto para ensinar quanto para aprender.
Os requisitos para quem aprende são a pureza, uma verdadeira sede de conhecimento e perseverança. Nenhuma alma impura pode ser religiosa; é absolutamente necessária a pureza em todo sentido. A segunda condição é uma verdadeira sede de conhecimento. Quem quer? Esse é o problema. Conseguimos quanto queremos; essa é uma lei muito antiga. Quem quer algo, consegue. Por querer religião, não é tão fácil como supomos geralmente. Esquecemos que a religião não consiste em escutar práticas, em ler livros; é uma luta contínua, uma guerra com nossa própria natureza, um constante batalhar até que se alcance a vitória. Não se trata e um ou dois dias, nem de anos ou de vidas; a vitória pode apresentar-se de imediato ou através de centenas de vidas dedicadas a esta árdua luta; devemos estar dispostos a tudo. O discípulo que possui tal espírito alcança o êxito.
Em primeiro lugar, devemos averiguar se o mestre conhece o segredo das Escrituras. Todo o mundo lê as Escrituras, Bíblias, Vedas, Alcorão e outros; mas só são palavras, símbolos externos, sintaxes, a etimologia, a filologia, o esqueleto da religião. O mestre poderá determinar a idade de um livro qualquer, mas as palavras somente constituem um veículo e quem lhes dá demasiada importância, ou deixa arrastar-se por elas, perde o espírito.
O mestre deve conhecer o espírito das Escrituras. A teia de palavras é como um gigantesco bosque donde se extravia a mente humana, sem encontrar saída. Os diversos modos de enlaçar frases, as diferentes formas de expressão, os distintos métodos de explicar os ditos das Escrituras, só servem para o deleite dos eruditos, mas não conduzem a perfeição; e quem a isso recorre, só deseja exibir sua erudição para colher louvores e para demonstrar que são pessoas cultas.
Observai: nem um só dos grandes mestres detiveram-se a dar tão variadas explicações dos textos, nem intentaram, jamais, tortura-los para tergiversa-los, nem disseram “esta terminologia significa tal coisa e esta é a relação filológica entre este vocábulo e aquele outro”. Se estudardes a todos os grandes mestres que houve no mundo, vereis que nenhum deles procedeu desta maneira. E, contudo, eles ensinaram, enquanto que outros, que nada têm que ensinar, tomam uma palavra e escrevem uma obra em três volumes sobre sua origem e uso. Como costumava dizer meu mestre, que pensarias de quem penetrasse em sua plantação de mangas e se ocupasse em contar as folhas, observar sua cor, comparar o tamanho dos ramos, olhar em torno dos brotos, etc., enquanto que só um tivesse a sensatez de começar a comer os frutos? Deixai, pois, aos outros a contagem das folhas e dos ramos. Essa tarefa possui seu valor local, mas não aqui, no reino espiritual; não pode conferir espiritualidade, nem encontrareis gigantes espirituais entre os que “contam folhas”.
A religião, o desejo mais elevado do homem, a maior gloria, não requer “a contagem das folhas”. Para ser cristão, não há necessidade de saber se Cristo nasceu em Jerusalém ou em Belém, nem a data exata em que pronunciou o Sermão da Montanha; ao ler obras inteiras que expliquem quando foi essa pregação de pouco serve, exceto como passatempo dos sabichões; deixemos isto para eles; digamos “amém” e “comamos as mangas”.
A segunda condição de que necessita o instrutor, é de estar isento de pecados. Certa vez um amigo me perguntou, na Inglaterra: “Por que temos que levar em conta a personalidade de um mestre?... Só devemos julgar o que diz e aproveitar”. Não é assim. Se alguém deseja ensinar-me dinâmica, química ou qualquer outra ciência física, pode faze-lo embora seja um patife, porque as ciências físicas só requerem conhecimentos intelectuais, que dependem da potencialidade do intelecto; pode-se possuir gigantesca intelectualidade sem o menor desenvolvimento da alma. Porém coisa muito distinta ocorre com o espiritual; não pode, em absoluto, brilhar a luz da espiritualidade em uma alma impura. Que poderia nos ensinar um ser impuro, se nada sabe?
A verdade espiritual é pura. “Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus”. Esta única frase condensa o essencial de todas as religiões. Aprendeis-la e sabereis tudo o quanto foi dito no passado e quanto é possível dizer no futuro; nada necessitareis buscar, pois tudo está incluído nessa sentença e ela somente bastaria para salvar o mundo, se desaparecessem todas as demais Escrituras.
A visão de Deus, o vislumbre do mais além, nunca chega até que a alma seja pura. Por isso a pureza é requisito indispensável a um mestre espiritual; primeiro devemos ver quem é e depois o que diz. Não sucede o mesmo com os mestres intelectuais; levamos mais em conta o que dizem, do que quem são. Mas tratando-se de um instrutor religioso, devemos antes de tudo estuda-lo e, em segunda instância, suas palavras. Porque sendo ele transmissor, que poderia transmitir se carece de poder espiritual? Darei um exemplo: se este aquecedor está em alta temperatura, pode produzir vibrações caloríficas, mas caso contrário, é impossível que o faça.
O mesmo acontece com as vibrações mentais que o mestre religioso emite à mente do discípulo. É um assunto de transferência e não só um estímulo de nossas faculdades intelectuais. Certo poder real e tangível surge do mestre e começa a desenvolver-se na mente do discípulo. Por isso é imprescindível que o mestre seja sincero.
A terceira condição é o motivo. Deveis cuidar em não ensinar com um motivo ulterior, por adquirir fama ou por qualquer outra razão, senão simplesmente por amor, puro amor para com os outros. As forças espirituais só podem ser transmitidas do mestre ao discípulo por meio do amor; não existe outro veiculo. Qualquer outro motivo, tal como a ambição de dinheiro ou fama destruirá imediatamente o meio transmissor; por isso tudo deve ser feito por meio do amor. Só quem conheceu a Deus pode ser mestre. Quando observeis que o mestre reúne as condições necessárias, fiqueis tranqüilos; se não, será imprudente aceita-lo. Existe, às vezes, um grave risco, o de que o mestre, não podendo transmitir a bondade, transmita perversidade. Convém precaver-se. E de tudo isto se deduz que não podemos aceitar os ensinamentos de qualquer um, nem de todos.
Que os regatos e pedras preguem sermões pode admitir-se, como licença poética, mas ninguém pode pregar nem um átomo de verdade enquanto não o possa. A quem dirigem seus sermões, os regatos? Somente às almas humanas, cujo loto já se tenha aberto. Quando o coração está aberto, pode receber ensinamentos dos regatos ou das pedras, porém o coração que não está aberto, só verá regatos e seixos.
Um cego pode entrar em um museu, mas não fará nada senão entrar e sair; para que veja, é preciso que abra antes os olhos. Quem nos abre os olhos em questões religiosas, é o instrutor. Portanto nossa relação com o mestre é a de antepassado e descendente; o mestre é o antepassado espiritual e o discípulo, o descendente espiritual. Bom é falar de liberdade e independência, mas sem humildade, submissão, veneração e fé, não existirá religião alguma.
É um fato significativo que só onde ainda persiste a relação entre o mestre e o discípulo, se desenvolvem gigantescas almas espirituais; enquanto que os que estão despojados dessa relação, tomam a religião como um passatempo. As nações e igrejas que não mantêm essa relação entre o mestre e discípulo, desconhecem quase por completo a espiritualidade. Esta não se apresenta sem essa sensação; não há a quem transmitir, nem o que transmitir, porque todos são independentes. De quem eles podem aprender? E se vêm aprender, vêm para comprar o ensinamento. Dê-me um dólar de religião; não posso pagar um dólar por isso? A religião não pode ser alcançada desse modo!
Nada há de mais elevado, nem mais santo que o conhecimento que chega à alma, transmitido por um mestre espiritual. Ele, que se converteu em um perfeito yogui, não o alcançou isto por meio de livros. Embora quebreis a cabeça contra os quatro cantos do mundo buscando nos Himalaias, nos Alpes, no Cáucaso, no deserto de Gobi ou do Saara, e até no fundo do mar, não alcançareis o conhecimento até não achar um mestre. Buscastes ao mestre, atende-o como filhos, abristes vosso coração e vedes nele a manifestação de Deus. Fixemos nossa atenção no mestre considerando-o como suprema manifestação de Deus e na medida em que aumentar nossa concentração, se desvanecerá a imagem do homem, a envoltura externa, até que só fique o verdadeiro Deus.
A quem se aproxima da verdade com tal espírito de veneração e amor, o Senhor da verdade lhes dirige palavras maravilhosas. “Tire os sapatos, porque o lugar que estás pisando é sagrado”. Sagrado é todo lugar onde se pronuncia Seu nome e quanto mais continuamente O repetes, com maior veneração deve se aproximar de quem difunde as verdades espirituais. Assim devemos pensar, para que nos ensinem. Tais mestres são poucos, sem dúvida, mas o mundo nunca carece deles. Quando assim não for, deixará de ser o que é e se converterá em um horrível inferno, destruindo-se.
Os mestres enlevam a vida humana e mantém o mundo caminhando; a energia que flui desses corações é a que conserva intactos os laços da sociedade. Acima disto, existe outra espécie de mestres, os Cristos. Estes Mestres de mestres representam a Deus na forma de homem. São muito mais elevados; podem transmitir a espiritualidade com um toque, com um desejo, santificando em um segundo até aos seres mais ruins e degradados. Não lestes como costumavam faze-lo? Não são os mestres de quem estive falando; são os mestres de todos os mestres, as maiores manifestações de Deus para o homem. Não podemos ver a Deus, senão através deles, nem podemos deixar de adora-los; e são os únicos seres a quem verdadeiramente devemos adorar.
Ninguém viu a Deus, exceto tal como se manifesta no Filho. Nós não podemos ver a Deus. Se tratarmos de concebe-lo, só conseguimos caricatura-lo. Uma lenda hindu diz que se pediu a um ignorante que fizesse um esboço do deus Shiva e após longos dias de esforços, desenhou a imagem de um macaco. De igual modo, cada vez que quisermos representar a Deus, em lugar de Sua imagem, obteremos Sua caricatura. Sua caricatura porque somos incapazes de concebe-lo como algo superior ao homem, enquanto formos homens.
Chegará o momento em que transcenderemos nossa natureza humana e O conheceremos tal como É, mas enquanto formos homens, deveremos adora-lo como homem. Por mais que falemos, por muitas tentativas que realizemos, só podemos ver a Deus como um homem. Podemos fazer muitos discursos intelectuais, nos converter em grandes racionalistas e demonstrar que estes contos referentes a Deus são tolices, porém vamos ao sentido comum prático. Que há por detrás de tão notável intelecto? Zero, nada, pura ostentação. A próxima vez que ouvis um homem pronunciando grandes conferências intelectuais contra esta adoração de Deus, perguntes qual é seu conceito de Deus e que entende por “onipresença”, “onisciência” e “amor onipresente”, etc. Só conhece, destes termos, sua pronúncia; nada significa para ele; é incapaz de formular uma idéia e não vale mais que o homem da rua que nem sequer leu um só livro. Contudo, o homem da rua permanece tranqüilo e não incomoda o mundo, enquanto que os argumentos daquele causam perturbação. Não possui uma verdadeira percepção dos que se acham no mesmo plano.
A religião é a realização. Aprendeis a distinguir as falácias da realização. O que se percebe na alma é realização. Não podendo conceber o Espírito temos, por força, que recorrer, para imagina-lo, ao que temos ante os olhos: o imenso céu azul, as vastas campinas, o oceano ou algo gigantesco. De que outra maneira podemos pensar em Deus? Sabeis o que, em realidade, fazeis? Falar de onipresença e pensar no mar, acaso Deus é o mar? Necessita-se de algo mais de sentido comum. Nada é tão pouco comum como o sentido comum; o mundo está repleto de vãs palavras. Demos trégua a toda esta frívola argumentação mundana.
Nossa constituição física atual nos limita e obriga a ver a Deus como homem. Se os búfalos desejam adorar a Deus, o verão como um gigantesco búfalo; se um peixe quer adorar a Deus, pensará Nele como um enorme peixe. Vós e eu, o búfalo, o peixe, cada um representa diferentes vasilhas. Todos correm ao mar para serem cheios com água, esta adota a forma de cada recipiente, mas em cada uma só há água. O mesmo acontece com Deus. Quando os homens o vêm, o vêm como homem e os animais como animal, cada um segundo seu ideal. Este é o único modo de poder vê-lo: adorando-o como homem; não existe outra solução.
O que não adora a Deus como homem, ou é um ser primitivo carente de religião, ou um paramahamsa (o yogui supremo) que, despojando-se de sua mente e seu corpo, transcendeu a humanidade e a natureza; esta, inteira, se converteu em seu Eu. Não possui mente nem corpo e pode adorar a Deus como Deus, como pôde faze-lo Jesus e Buda, que não adoraram a Deus como homem. O ser primitivo constitui o pólo oposto. Já sabeis que os extremos se assemelham e isto ocorre justamente com o ignorante e o supremo conhecedor; nenhum dos dois adora a nada. Os muito ignorantes não adoram a Deus porque não estão suficientemente desenvolvidos para sentir a necessidade de faze-lo. Os que alcançaram o conhecimento mais elevado tampouco adoram a Deus por tê-lo realizado e estar unificados com Ele. Deus nunca adora a Deus. Se alguém situado entre esses pólos opostos pretende não adorar a Deus como homem, cuidem com ele. É um charlatão, um irresponsável e está equivocado; sua religião não passa de uma insensatez e só pode atrair a quem pensa em coisas ridículas.
Torna-se, pois, imprescindível adorar a Deus como homem. Bem-aventuradas as raças que possuem um Deus-homem para adorar! Vós, os cristãos, têm esse Deus-homem: Cristo; agarrem-se a Ele e, por conseguinte, Ele jamais os abandonará. Esta é a maneira natural de ver a Deus; vê-lo em um homem. Todas as nossas idéias de Deus se concentram ali. A grande limitação dos cristãos é que não consideram outras manifestações de Deus separadas de Cristo. Ele foi uma manifestação de Deus; mas também o foi Buda e vários outros e da mesma maneira haverá outras centenas mais.
Não limiteis a Deus. Rendei a Cristo o culto que lhes pareça próprio de Deus; é a única adoração que podemos nos permitir. Deus não pode ser adorado; é o Ser imanente do universo. Só podemos adorar a Sua manifestação como homem. Quando os cristãos rezam, seria conveniente que dissessem “Em nome de Cristo”. Seria prudente parar de rogar a Deus e rezar somente a Cristo. Deus compreende os defeitos humanos e converte-se em homem para ajudar a humanidade. “Quando decai a virtude e prevalece a imoralidade, corro a ajudar a humanidade”, disse Krishna. Também acrescenta: “Os incapazes, ignorando que Eu, o Onipotente e Onipresente Deus do universo, tomei esta forma humana, se riem de mim e pesam que isto não pode ser”. Têm a mente velada por demoníaca ignorância; os impede ver Nele o Senhor do universo. Estas grandes Encarnações de Deus merecem ser adoradas; melhor dizendo, são o único que podemos adorar e no aniversário de seu nascimento e de sua morte, devemos render-lhes um culto especial. Ao venerar a Cristo, é preferível adora-lo como Ele deseja; no dia de seu nascimento o adoraria melhor orando e jejuando, que comendo pomposamente. Se pensarmos nesses grandes seres, eles se manifestam em nossa alma e nos transformam, fazendo com que nos pareçamos com eles. Toda nossa natureza muda e acabamos por ser como eles.
Mas não devemos misturar Cristo ou Buda com espectros que cruzam o espaço e com outras tolices semelhantes. Sacrilégio! Cristo dançando em uma sessão de espiritismo! Vi tal simulação neste país. Não chegam assim, esses seres que são manifestações de Deus; o menor roçar de seus dedos transforma por completo um homem; quando Cristo toca uma alma, toda ela muda e se transfigura como Ele; a vida inteira se espiritualiza; de todos os poros de seu corpo, emana o poder espiritual. Que significa e que valor tem esses grandes poderes de Cristo mediante os quais realiza milagres e curas maravilhosas, se comparado com Sua tão sublime personalidade? Não podia deixar de fazer esses milagres tão baixos e vulgares, porque se acha entre os vulgares. Onde os efetuava? Entre os judeus e eles não o aceitaram. Onde não se realizavam? Na Europa. Os milagres foram para onde os judeus, que rechaçaram Cristo, e o Sermão da Montanha foi para a Europa, que O aceitou. O espírito humano aceitou o que era verdade e recusou o impuro. O grande poder de Cristo não reside em Seus milagres, nem em Suas curas. Qualquer idiota poderia ter feito essas coisas; os idiotas e os diabos podem curar aos demais. Vi horríveis seres demoníacos que faziam milagres assombrosos; pareciam extrair frutos da terra. Conheci homens ignorantes e diabólicos que adivinhavam o passado, o presente e o futuro. Vi insensatos que curavam por meio de sua força de vontade e com uma só olhada, as mais horríveis doenças. Esses são, indubitavelmente, poderes, mas com freqüência, poderes demoníacos.
Muito outro é o poder espiritual de Cristo, que sempre viveu e seguirá vivendo da mesma forma que seu gigantesco amor e as palavras de verdade que pregou. Esquecemos logo a quem cura com uma olhada, mas aquele provérbio “Bem-aventurados os limpos de coração” persiste até hoje e constitui uma inesgotável fonte de força que perdurará enquanto existir a mente humana. Enquanto não se esquece o nome de Deus, estas palavras continuarão vívidas e nunca cessarão de existir. Estes são os poderes que ensinou Jesus e os que Ele possuía.
O poder da pureza é um poder concreto; de modo que adorar a Cristo e ao rezar para Ele, devemos ter presente que coisas desejamos e não desejar essas ignorantes exibições de poderes milagrosos, senão os maravilhosos poderes do Espírito, que fazem o homem livre, lhe confere o domínio da natureza e lhe revela Deus.
“A NECESSIDADE DOS SÍMBOLOS”
Swami
Vivekananda
Bhakti divide-se em duas partes. A uma se chama vaidhi, ou seja, formal ou cerimonial; à outra se chama mukhya, que quer dizer suprema. A palavra bhakti abarca toda a compreensão entre a forma mais baixa de culto e a forma de vida mais elevada. Todo culto ou adoração que presenciastes em qualquer país do mundo ou em qualquer religião, está regulado pelo amor. Muitos são simples cerimônias; muitos existem, também, que sem ser cerimônias, não é tampouco amor, senão um estado inferior. Não obstante, tais cerimônias são necessárias. A parte externa de bhakti torna-se absolutamente necessária como ajuda para o progresso da alma.
O homem comete um grande erro ao pensar que pode ascender subitamente a um estado mais elevado. Se a criança crê que pode chegar a ser homem maduro em um dia, estaria equivocado. Espero que tenhais sempre presente esta única idéia, a saber: a religião não está em livros, nem depende do consentimento intelectual, nem de raciocínio. A razão, as teorias, os escritos, as doutrinas, os livros, as cerimônias religiosas, constituem outras tantas ajudas da religião. Esta, em si mesma, é realização. Todos dizemos: “Existe um Deus”. Mas por acaso vimos Deus? Esta é a questão. Se ouvir alguém afirmar “Existe Deus no céu”, pergunte-lhe se o viu. Se afirmar, rireis dele e direis que é um maníaco. Para muitas pessoas, a religião é uma espécie de assentimento intelectual e não tem mais alcance que um documento. Eu não chamo a isto de religião. É melhor ser ateu que religioso desta espécie. A religião não depende de nosso assentimento ou de desconformidade intelectual. Dizeis que há uma alma; vistes a alma? Como é que todos temos alma, se não a vemos? Tereis que contestar a pergunta e buscar a maneira de ver a alma; de outra modo não tereis objetivo em falar de religião.
Se uma religião é verdadeira, há de ser capaz de nos mostrar a alma, a Deus e a verdade de nós mesmos. Embora vós e eu discutamos por toda a eternidade sobre uma destas doutrinas ou escritos, nunca chegaremos a conclusão alguma. As pessoas discutem durante séculos e qual é o resultado? O intelecto não pode resolver a questão, em absoluto. Temos que transcender o intelecto; a prova da religião está na percepção direta. A prova da existência de uma parede, é que a vemos; se sentares e discutires durante séculos sobre a sua existência ou inexistência, nunca chegareis a conclusão alguma; mas ao vê-la diretamente, é suficiente. Embora todo os homens do mundo digam que não existe, não acreditareis, porque sabeis que a evidencia de vossos próprios olhos é superior a todas as doutrinas e escritos do mundo.
Para ser religioso, deveis começar por descartar todos os livros. Quantos menos livros lerdes, melhor para vós. Fazeis uma coisa de cada vez. Nestes tempos modernos, existe no Ocidente a tendência de fazer uma miscelânea no cérebro. Misturam-se todas as espécies de idéias mal assimiladas e se acredita num caos, sem chegar nunca a conseguir que se assente e cristalize uma forma precisa. Chega isto, em muitos casos, a converter-se em uma espécie de doença; por isso não é religião. Logo alguns buscam sensações. Falar de fantasmas e pessoas que vêm do Pólo Norte ou de qualquer outro lugar longínquo, voando ou de qualquer forma; dizer-lhes que estão presentes, embora invisíveis e os vigiando, de maneira que se sintam um pouco assustados. Com isto, ficam satisfeitos e vão para casa; mas estão prontos para outra sensação, as vinte e quatro horas do dia. A isto, alguns chamam de religião; mas é o caminho para o manicômio, não à religião. Ao Senhor não chegam os fracos; todas essas coisas misteriosas tendem a produzir debilidade. Portanto, não vos aproximeis delas, porque só servem para tirar a força das pessoas, para colocar o cérebro em desordem, para enfraquecer a mente e para desmoralizar a alma. O resultado não é outro que confusão sem remédio.
Haveis de ter em conta que a religião não consiste em palavras, doutrinas, nem livros, senão a realização; não é aprender, senão ser. Todo mundo conhece o mandamento: “Não roubar”; mas que há com ele? Só quem jamais roubou pode dizer que o sabe. Todo mundo conhece o mandamento: “Não prejudiqueis aos outros”; mas que valor tem? Quem não provocou nenhum dano, o compreende, o sabe e construiu seu caráter sobre essa base. Religião e realização; os chamarei adoradores de Deus, enquanto chegueis a compreender tal idéia. O que sabeis antes será, simplesmente, soletrar as palavras e nada mais. É o poder de realizar o que constitui a religião. A quantidade de doutrinas, filosofias ou livros sobre ética com que haveis regado vosso cérebro, pouco importa; o que importa é o que sois e o que realizastes. De modo que devemos realizar a religião e tal realização é um longo processo. Quando os homens ouvem algo muito elevado e maravilhoso, todos crêem que o conseguiram; mas não se detêm, nem por um momento, a considerar que para alcança-lo, terão que percorrer um longo caminho; todos querem chegar depressa. Contanto que seja o mais elevado, o queremos; mas como quase nunca nos detemos a considerar se contamos com as forças necessárias, o resultado é que chegamos a nada. Não podeis empurrar um homem com uma forquilha, para que ascenda; todos nós temos que ascender gradualmente. Do contrário, a primeira parte da religião é vaidhi-bhakti, a fase inferior do culto.
Estas fases inferiores do culto são várias. Para alcançar o estado em que sejamos capazes de realizar, temos que passar pelo concreto; da mesma maneira que as crianças aprendem primeiro o aspecto concreto das coisas para chegar, gradualmente, ao abstrato. Se disserdes a uma criança que cinco vezes dois são dez, não vos entenderá; mas se colocar diante dela dez objetos e lhe mostrar como é cinco vezes dois, compreenderá. A religião é um processo longo e lento. Neste sentido, todos nós somos crianças; podemos ser velhos, ter estudado todos os livros do universo; mas, espiritualmente, somos todos crianças. Temos aprendido as doutrinas e os dogmas, mas nada realizamos. Temos que começar agora, por coisas concretas; imagineis as palavras, orações, cerimônias que existem aos milhares, pois de uma mesma forma, não há de servir para todos. A uns, ajudam as imagens, a outros não; uns necessitam de uma imagem exterior, outras de uma dentro do cérebro. Aquele que situou sua imagem dentro, disse: “Sou homem superior; quando está dentro, está bem; o que está fora é idolatria; vou combate-lo”. Quem constrói uma igreja ou templo, o considera santo; mas se vê uma imagem com forma humana, põe defeitos.
De maneira que há várias formas para que a mente pratique este exercício concreto; logo, passo a passo, chega à compreensão ou realização abstrata. Ademais, a mesma forma não se adapta a todos; uma será boa para vós, outra será para outros, etc. Enquanto todas as formas conduzem à mesma meta, não servem para todos nós. Há aqui outro erro muito comum. Se meu ideal não é adequado para vós, por que o quer impor? Se minha maneira de construir igrejas ou de ler hinos não é adequada a vós, por que a impões a mim? Ide pelo mundo e qualquer idiota os dirá que sua forma é a única correta; que todas as demais são diabólicas; que ele é o único eleito no universo. Contudo, todas estas formas são boas e ajudam.
Assim como existem múltiplas variedades na natureza humana, é necessário que haja numerosas formas de religião; quantas mais houver, melhor. Se temos no mundo vinte formas de religião, bom; se temos quatrocentas, muito melhor, porque haverá mais para escolher. De maneira que devemos nos alegrar de que aumente e multiplique-se o número de religiões e de idéias religiosas porque, desta maneira, incluirão todos os homens e ajudarão melhor a humanidade. Queira Deus que as religiões se multipliquem até que cada homem tenha a sua própria, separada das demais! Este é o ideal do bhakti-yogui.
Chegamos, pois, a seguinte conclusão: minha religião não pode ser vossa, nem a vossa a minha. Embora tenhamos a mesma meta e idêntico propósito, cada um há de tomar um caminho diferente, de acordo com as tendências de sua mente; apesar de serem distintos estes caminhos, todos são verdadeiros, porque todos conduzem à mesma meta. Não pode um ser verdadeiro e os demais não. A eleição do próprio caminho se chama, em linguagem bhakti, Ishtam, o caminho escolhido.
Logo temos as palavras. Todos vós haveis ouvido falar do poder das palavras; de quão maravilhosas são. Todo livro, a Bíblia, o Corão e os Vedas, estão cheios do poder das palavras. Algumas delas exercem uma influência maravilhosa sobre a humanidade. Por outro lado, existem outras formas conhecidas como símbolos, de grande influência sobre a mente humana, mas os grandes símbolos da religião foram criados em forma indefinida, senão que são expressão natural do pensamento. Pensamos simbolicamente. Todas nossas palavras são somente símbolos do pensamento; pessoas diferentes têm empregado símbolos diferentes, sem saber a razão para isso. Estes símbolos estão associados com os pensamentos; o pensamento manifesta o símbolo; este, por sua vez, faz nascer o pensamento na mente.
De maneira que uma parte do bhakti nos fala destes diferentes temas, relacionados com os símbolos, as palavras e as orações. Toda religião tem pregações, mas saber orar pedindo saúde ou riqueza não é bhakti, mas karma ou ação meritória. O rezar pedindo qualquer beneficio físico, é simplesmente karma; tal é a oração para ir ao céu, etc. Quem quer amar Deus, ser bhakta, deve abandonar todas essas orações. Quem quer penetrar nas religiões da luz, deverá abandonar esta compra e venda, esta religião “comercial”, antes de transpor os umbrais. Na é que não se consiga o que se pede na oração; tudo se consegue, mas tal maneira de orar é a religião do mendigo. “Idiota é aquele que, vivendo as margens do Ganges, põe-se a cavar a terra a procura de água. Tolo é, certamente, o homem que, ao chegar a uma mina de diamantes, busca contas de vidro”. Este nosso corpo há de morrer, um dia; de que serve, pois, orar por sua saúde uma ou outra vez? De que valem a saúde e a riqueza? O homem mais rico só poder empregar e desfrutar de uma pequena porção de sua riqueza. Nunca podemos conseguir todas as coisas deste mundo; sendo assim, que importa? Já que esse corpo há de desaparecer, por que tomar a peito tais coisas? Se nos chegam as coisas boas, bem-vindas sejam; se afastam-se, deixem-nas ir; benditas quando vêm e benditas quando se vão. Estamos lutando por chegar a presença do Rei dos reis, mas não podemos nos apresentar ante Ele em traje de mendigo. Se quiséssemos chegar na presença de um imperador, seriamos admitidos? Certamente que não; nos lançariam fora. Este é o Imperador dos imperadores e com estes farrapos de mendigos não podemos entrar. Os mercadores nunca serão admitidos ali; a compra e venda não cabem. Segundo lemos na Bíblia, Jesus arrancou os mercadores do templo. Não oreis por coisas pequenas. Se buscardes unicamente comodidades para o corpo, que diferença fará entre os homens e os animais? Tendes uma concepção mais elevada de vós mesmos.
Por conseguinte, o primeiro passo para chegar a ser um bhakti consiste em abandonar todo o desejo de céu e outras coisas. A questão está em como se desprender de tais desejos. Que fazem os homens miseráveis? O fato de que são escravos; estão sujeitos às leis; são bonecos nas mãos da natureza, manipulados como joguetes. Cuidamos constantemente do corpo, que pode tombar por qualquer coisa; assim vivemos num estado de permanente temor. Li que o cervo corre de sessenta a setenta milhas por dia, quando o espantam. Deveríamos saber que estamos em pior situação que o cervo. Este tem algum descanso, mas nós nenhum. Se achar pasto suficiente, o cervo fica satisfeito; mas nós multiplicamos continuamente nossas necessidades, movidos por um desejo mórbido. Chegamos a ser tão desarticulados e artificiais, que nada de natural nos satisfaz. Sempre vamos atrás de coisas mórbidas; necessitamos de excitantes artificiais, alimentos, bebidas, ambiente e vida antinaturais. E quanto ao temor, que são nossas vidas senão feixes de temores? O cervo só tem um temor, o que lhe infunde os tigres, lobos, etc. O homem teme o universo inteiro.
A questão está em como nos livrar disso tudo. O materialista diz: “Não faleis de Deus, nem do mais além; nada sabemos dessas coisas; procuremos viver felizes neste mundo”. Eu seria o primeiro a fazer assim, se pudesse; mas o mundo não nos deixa. Como podemos faze-lo, enquanto somos escravos da natureza? Quanto mais se luta, mais envolvidos ficamos; faz plano para ser feliz, quem sabe por quantos anos; mas a cada ano, as coisas ficam piores. Há duzentos anos, as pessoas do velho mundo tinham poucas necessidades. No entanto, seus conhecimentos aumentaram em progressão geométrica. Acreditamos que pelo menos nossos desejos ficariam satisfeitos, se nos salvássemos; por isso, aspiramos ir ao céu. Que sede eterna, insaciável! Sempre desejamos algo. Quando o homem é um mendigo, quer dinheiro, mas uma vez que o possui, deseja outras coisas, quer sociabilidade, depois algo mais, nunca descansa, como podemos saciar isto?
Se chegarmos ao céu, nossos desejos aumentarão. Se um pobre se faz rico, não sacia seus desejos; é o mesmo que jogar manteiga ao fogo, o que faz o fogo aumentar. Ir ao céu é como se fazer imensamente rico; mas, então, o desejo se torna mais e mais forte. Lemos em diferentes bíblias do mundo que no céu há muitas coisas humanas. Estas, nem sempre, são muito boas; depois de todo esse desejo de ir ao céu, não é mais que desejo de desfrutar e tereis que abandona-lo. É demasiado pobre, mesquinho. Querer ir ao céu é algo demasiado vulgar; é o mesmo que pensar “serei milionário e dominarei as pessoas”. Existem muitos desses céus; porém, nenhum deles confere o direito de transpor os portais da religião e do amor.
“SOBRE ESPIRITUALIDADE
PRÁTICA”
Swami
Vivekananda
(Conferência dada no “Lar da Verdade”, Los Angeles, Califórnia).
Proponho-me, nesta manhã, a lhes dar algumas idéias sobre a respiração e outros exercícios. Temos nos ocupado tanto de teorias, que não será demais que agora tratemos um pouco do aspecto prático. Na Índia se escrevem muitos livros sobre este tema. Assim como em vosso país as pessoas são práticas em muitas coisas, também o é no nosso, neste assunto. Por exemplo, se cinco pessoas deste país se unem e dizem: “Vamos formar uma sociedade por ações”, cinco horas depois terão realizado seu propósito. Na Índia não seriam capazes de faze-lo nem em cinqüenta anos; são carentes de sentido prático para tais questões. No entanto, se um homem inicia ali um sistema filosófico, não importa quanto disparate haja nessa teoria, terá adeptos. Por exemplo: ao se fundar uma seita para ensinar que, mantendo-se sobre uma só perna durante doze anos, dia e noite, se alcançará a salvação, centenas estarão dispostos a manter-se em tal posição e agüentarão estoicamente todo o sofrimento que isso implica. Há quem se mantém com os braços no alto durante anos, para alcançar méritos de caráter religioso. Eu vi centenas deles. Tenhamos em conta que nem todos são ignorantes, nem tolos; entre eles, há homens que os surpreenderiam, pela amplitude e profundidade de seu intelecto. Sabereis, portanto, que a palavra “prática” é também relativa.
Constantemente cometemos erros ao julgar os outros. Nos inclinamos a crer que nosso limitado universo mental é tudo quanto existe; que nossa ética, nosso moral, nosso sentido de dever e de utilidade, são as únicas coisas dignas de possuir. Não faz muito tempo, em uma viagem à Europa, passei por Marselha, onde se celebrava uma corrida de touros. Todos os ingleses que viajavam no mesmo vapor estavam loucamente excitados, criticando e demonstrando a crueldade de tal ato. Ao chegar a Inglaterra, me inteirei de que um grupo de boxeadores profissionais tinha ido a Paris e foram expulsos, sem cerimônia, pelos franceses, que consideravam o boxe como algo brutal. Ao ouvir tais coisas em diversos países, comecei a compreender as maravilhosas palavras de Cristo: “Não julgais, para que não sejais julgados”.
Quanto mais aprendemos, mais descobrimos os ignorantes que somos; quão inumeráveis são as formas e as facetas da mente humana. Quando era menino, eu criticava as práticas ascéticas de meus compatriotas; grandes pregadores de nosso próprio país as criticaram também; Buda, o maior dos homens nascidos, igualmente as criticou. Contudo, a medida em que avançaram os anos, me convenci de que não tenho o direito de julgar. Às vezes quis, apesar de todas as incongruências, possuir um fragmento do poder de atuar e sofrer desses ascetas. Penso, com freqüência, que meus juízos e críticas não provêm de que a tortura me desgoste, mas de pura covardia, por ser incapaz de fazer o mesmo, porque não me atrevo a faze-lo.
Podeis ver, pois, que a fortaleza, o poder e o valor são coisas muito peculiares. Falamos em termos gerais do homem valente, bravo e atrevido; mas temos que ter em conta que o valor ou a bravura, ou qualquer outro predicado, nem sempre caracteriza o homem. O mesmo homem capaz de se atirar na boca de um cânion, se encolhe a vista de um bisturi de cirurgião; outro, que jamais se atreveria a ficar frente a um cânion, agüentaria estoicamente uma grave cirurgia. De maneira que, ao julgar aos outros, poderemos definir o significado que damos aos termos: valor e grandeza. O homem a quem censuro como mau, pode muito bem ser excelente em aspectos em que estou longe de ser.
Vejamos outro exemplo: com freqüência observamos o mesmo erro quando se trata do que o homem e a mulher podem fazer. Quer-se demonstrar que o homem é melhor para a luta e para submeter-se a tremendos esforços físicos, comparando com a debilidade física e a falta de combatividade da mulher. Isto é injusto. Ambos são igualmente bons, ao seu modo. Que homem é capaz de criar uma criança com a paciência, a fortaleza e o amor de uma mulher? A um é desenvolvido o poder de fazer; a outra, o poder de sofrer. Se a mulher não pode agir, tampouco o homem pode sofrer. O universo inteiro está perfeitamente equilibrado. Não sei, mas algum dia despertaremos para descobrir que até o simples verme possui algo que contrabalança nossa humanidade. A pessoa mais perversa pode possuir algumas boas qualidades das quais eu careço. Descubro isso todos os dias. Ao contemplar o selvagem, quisera possuir seu esplêndido físico; come e bebe quando o apraz, sem saber, talvez, o que é enfermidade; por outro lado, eu sofro a cada minuto. Quantas vezes troquei meu cérebro pelo corpo! O universo inteiro é só uma onda e uma depressão; não pode haver onda sem depressão. Equilíbrio em todas as partes! Tendes uma coisa boa; vosso vizinho tem outra coisa igualmente grande.
Ao julgar o homem e a mulher, haveis de julga-los de acordo com a norma de sua respectiva grandeza. O primeiro não pode usar os sapatos da segunda. Um não tem o direito de dizer que o outro é mau. Segundo a antiga superstição: “Se fizeres isto, o mundo irá à ruína”. Contudo, o mundo está em ruínas. Neste país (América do Norte) se dizia, em um tempo, que se fosse dada a liberdade aos negros, o país se arruinaria. Arruinou-se? Também se dizia que fosse dada educação às massas, o mundo iria a ruína; no entanto, isso não fez senão melhorar.
Há alguns anos publicou-se um livro que expunha o pior que poderia ocorrer na Inglaterra. O autor mostrava que os jornais dos trabalhadores aumentavam e que o comercio inglês declinava. Elevou-se um clamor sobre as demandas dos trabalhadores ingleses, dizendo que eram exorbitantes, enquanto os alemães trabalhavam com jornais mais baixos. Enviou-se a Alemanha uma comissão investigativa; o informe desta manifestou que os jornais eram superiores na Alemanha. Por que era assim? Graças à educação das massas. Na Índia, especialmente, encontramos por todas as partes idosos que são mantidos secretamente das massas. Estas pessoas chegaram a conclusão (satisfatória para eles) de que são crema de la crema deste universo. Crêem que nenhum dano podem ser causar-lhes tão perigosos experimentos; que só podem causar danos as massas.
Agora, voltando ao prático. Ao tema da aplicação prática da psicologia tem sido tratada na Índia, desde tempos muito remotos. Uns mil e quatrocentos anos antes de Cristo, floresceu na Índia um grande filosofo de nome Patanjali, que recolheu todos os fatos, provas e investigações sobre a psicologia e utilizou todas as experiências acumuladas do passado. Recordem que este mundo é muito velho; que não foi criado há só dois ou três mil anos. No Ocidente se ensina que a sociedade iniciou-se faz mil e oitocentos anos, com o Novo Testamento e que, antes disto, não existia a sociedade. Pode ser que isto esteja certo quanto ao Ocidente, mas não é com respeito ao mundo inteiro. Com freqüência, ao dar conferências em Londres, discutíamos com um amigo muito intelectual e inteligente. Um dia, depois de descarregar todas as suas armas contra mim exclamou, repentinamente: “Então, por que vossos rishis não vieram a Inglaterra para nos ensinar?”; ao que respondi: “porque não havia Inglaterra, iriam pregar para as selvas?”.
Faz cinqüenta anos – disse-me uma vez Ingersol – o haveriam enforcado neste país, se tivessem vindo pregar; os queimaria vivo ou as pessoas do povo o expulsaria com pedradas”.
De maneira que não está fora da razão a idéia de que a civilização existia mil e quatrocentos anos antes de Cristo. No entanto, não está decidido que a civilização vem sempre do inferior para o superior. Os mesmos argumentos e provas que se aduzem para demonstrar tal proposição, se pode utilizar igualmente para demonstrar que o selvagem é um homem civilizado degradado. Os chineses, por exemplo, não podem nunca acreditar que civilização surgiu de um estado selvagem, enquanto sua experiência lhes diz o contrário. Mas quando falais da civilização da América, o que quereis dar a entender é a perpetuidade e crescimento de vossa própria raça.
É muito fácil crer que os hindus, que têm decaído durante setecentos anos, foram altamente civilizados no passado; pois não podemos provar que assim seja.
Não se conhece um só caso de civilização espontânea. Não sabe o mundo de uma só raça que se achou civilizada, sem que outra, mais avançada, se misturasse com ela. A origem da civilização corresponde, por assim dizer, a uma ou duas raças que se espalharam, difundiram suas idéias e se misturaram com outras raças e, desta maneira, a civilização expandiu-se.
Para fins práticos, falemos na linguagem da ciência moderna. Mas hei de pedir-lhes que levais em conta que, assim como há superstição em questões religiosas, há também em coisas que pertencem à ciência. Há sacerdotes que empreendem o labor religioso como especialidade; assim mesmo temos sacerdotes da lei física, os cientistas. Enquanto ouvimos um grande nome cientifico, como Darwin ou Huxley, aceitamos tudo às cegas. É a moda do dia. Noventa e cindo por cento do que chamamos conhecimento cientifico, é pura teoria. Muitas dessas teorias não são melhores que as velhas superstições que nos falam de fantasmas de múltiplas cabeças e braços; mas com a diferença de que nestas últimas, se faz uma pequena distinção entre homens, troncos e pedras. A verdadeira ciência recomenda cautela; a mesma que devemos ter com os sacerdotes, devemos ter também com os cientistas. Começa-se por ser incrédulo; logo se analisa, prova-se todas as coisas e logo se aceita ou se descarta. Todavia, algumas das asseverações mais correntes da ciência não têm sido provadas. Incluso as matemáticas, as muitas de suas teorias são somente hipóteses práticas; com o advento do conhecimento mais amplo, serão descartadas.
Em 1400 anos antes de Cristo, um grande sábio intentou ordenar, analisar e generalizar certos feitos psicológicos. Depois dele, muitos outros tomaram porções do que aquele havia descoberto e fizeram estudos especiais. Dentre todas as raças antigas, só os hindus empreenderam, com verdadeiro interesse, o estudo desse ramo do saber. Eu os estou ensinando agora; mas quantos de vós a poreis em prática? Quantos dias, quantos meses levareis para abandona-la? Falta-lhes experiência no assunto. Na Índia perseveram durante séculos. Os surpreenderá saber que ali não tem igrejas, nem devotos, nem coisa parecida; contudo, praticam a respiração e a concentração da mente, o que constitui a parte principal de suas devoções. Isso é o essencial e todo hindu o pratica; posto que constitui a religião do país. Só que cada um é livre para adotar um método particular; um sistema especial de respiração; uma forma especial de concentração. Ninguém conhece o método particular de cada um; nem a esposa do marido, nem o pai do filho, mas todos praticam e nada há de oculto nestas coisas.
A palavra oculto não tem significado para eles. Diariamente pode-se ver milhares e milhares de pessoas sentadas, com os olhos fechados, às margens do Ganges, praticando a respiração e a concentração. Pode haver duas razões para que certas práticas não sejam recomendadas para o gênero humano em geral. Uma é que os instrutores sustentam que a pessoa comum não está preparada para elas. Pode ser que haja algo de verdade nisso; mas é mais uma questão de orgulho. A segunda razão é o temor de ser perseguido. Por exemplo, ninguém neste país, está disposto a praticar exercícios respiratórios em público, porque o consideraria extravagante; não é moda aqui. Por outro lado, se alguém na Índia orar dizendo: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”, as pessoas se ririam dele. Nada pareceria tão tolo para a mente do hindu como dizer: “Pai nosso que estás nos céus”. O hindu quando ora, pensa que Deus está dentro de si mesmo.
Segundo os yoguis, existem três correntes nervosas principais; chamam a uma de “ida”, a outra “pingala” e a intermediária “sushumna”; as três estão dentro da coluna vertebral. Ida e pingala são feixes de nervos situados a esquerda e direita, respectivamente; sushumna, no meio, não é um feixe de nervos, mas um canal oco. O sushumna está fechado e não tem utilidade para o homem comum, porque este atua unicamente por meio de ida e pingala. As correntes circulam continuamente para baixo e para cima desses nervos, transmitindo ordens por todo o corpo, por meio de outros nervos que chegam dos diferentes órgãos.
A grande finalidade da respiração é regular e impor ritmo à ida e pingala. Ele, no entanto, nada significa em si mesmo, é só a admissão de maior ou menor quantidade de ar nos pulmões, afora purificar o sangue, não tem outro objetivo. Nada de oculto há no ar que aspiramos e assimilamos para purificar o sangue; a ação é mero movimento, ao qual podemos reduzir ao movimento unitário que chamamos “prana”, uma vez que em todas as partes, todos os movimentos são as diversas manifestações desse prana; o qual é eletricidade, é magnetismo e o cérebro o irradia como pensamento. Tudo é prana; este move o sol, a lua e as estrelas.
Dizemos que tudo o que existe no universo foi projetado pela vibração de prana. O resultado mais elevado da vibração é o pensamento. Se existe algo mais elevado, não podemos conceber. Os nervos ida e pingala funcionam por meio do prana; este é o que move cada porção do corpo, transformando-se em forças diferentes. Abandone a idéia de que Deus é alguém que produz o efeito, sentado em um trono administrando justiça. Ao trabalhar, nos esgotamos porque consumimos demasiada quantidade de prana.
Mediante os exercícios respiratórios chamados “prana-yama”, se consegue regular a respiração e a ação rítmica do prana. Uma vez que se alcança este ritmo, tudo funciona adequadamente. Enquanto os yoguis dominam seus próprios corpos, se há manifestação de alguma doença em qualquer um de seus órgãos, sabem que o prana não é o ritmo nessa parte e o dirigem à parte afetada até que conseguem restabelecer o ritmo.
Da mesma maneira que se regula o prana em seu próprio corpo, pode, se possuir poder suficiente, regular daqui, o prana de outra pessoa na Índia, porque prana é um, não há solução de continuidade, a unidade é a lei; física, psíquica, mental, moral e metafisicamente tudo é uno. Vida é só vibração; o que faz vibrar este oceano de éter, faz vibrar a cada um de vós. Assim como em um lago se formam várias camadas de gelo a diversos graus de densidade, ou como num oceano de vapores se encontram diferentes graus de saturação, o mesmo ocorre neste universo, o qual é um oceano de matéria; um oceano de éter no qual se encontra o sol, a lua e nós mesmos, em diferentes graus de solidez; mas a continuidade não se rompe e é a mesmo em todas as partes.
Agora, no estudo da metafísica, aprendemos que o mundo é uno, que não existe separação entre o espiritual, o físico, o mental e o mundo de energias. Tudo é uno, mas visto de pontos de vista diferentes. Quando pensais em vós como corpos, esqueceis que sois mente; quando pensais em vossa mente, esquecereis o corpo. Sois uma só coisa; o que podeis perceber como matéria ou corpo, ou como mente ou espírito. Nascimento, vida ou morte são somente velhas superstições. Nada nasceu nunca, nada morrerá jamais, é uma mudança de posição; isso é tudo. Lamento observar no Ocidente a importância que dão a morte; tratam sempre de captar um pouco de vida. “Dá-nos vida depois da morte! Dá-nos vida!”. Sentem-se muito felizes quando alguém lhes diz que vão viver depois. Como posso duvidar de tal coisa! Como posso imaginar que estou morto! Trates de imaginar que estais morto e que estais presentes para ver vosso próprio corpo morto. A vida é uma realidade tão maravilhosa que não se pode esquece-la nem por um momento. É como duvidar que existimos. O primeiro fato que nos apresenta a consciência é: eu sou. Quem é capaz de imaginar um estado de coisas que nunca existiu? A existência é a verdade mais evidente por si mesma. De maneira que a idéia da imortalidade é inerente ao homem. Como se pode discutir sobre uma coisa que é inimaginável? Que objetivo tem discutir os prós e contras de um tema que é evidente por si mesmo?
Por conseguinte, o universo é uma unidade de qualquer ponto de vista que se o considere. Neste momento, para nós, é a unidade de prana e akasha, força e matéria. Tenha-se em conta, contudo, que este, como todos os demais princípios básicos, é também contraditório. Por que, que é força? O que move a matéria. Que é matéria? O que a força move. É uma espécie de balancim. Alguns dos fundamentos de nossa razão são muito curiosos, apesar de nossa pretendida ciência e conhecimento. Parafraseando o provérbio sânscrito, é “uma dor de cabeça sem cabeça”. A este estado de coisas se chama “maia”. Não existe, nem deixa de existir. Não se pode chamar de existente, porque só existe o que está mais além do tempo e do espaço, o qual é auto-existente. Não obstante, este mundo satisfaz, até certo ponto, nossa idéia de existência; por tanto, tem existência aparente.
No entanto, há uma existência real em tudo e através de tudo; a realidade está, por assim dizer, envolta nas redes do tempo, espaço e causa. Está o homem real, o infinito, o sem princípio, o sem fim, o sempre bendito, o sempre livre; o qual fica sujeito às redes do tempo, espaço e causa. O mesmo se pode dizer de tudo deste mundo, a realidade de tudo é o mesmo infinito. Isto não é o idealismo, não é que o mundo não exista; este mundo tem existência relativa e preenche todos os requisitos, mas não tem existência independente. Existe em virtude da Realidade Absoluta, mas além do tempo, espaço e causa.
Fiz uma longa preleção. Voltemos, agora, a nosso tema principal.
Todos os movimentos automáticos e todos os movimentos conscientes respondem à ação de prana, pelo conduto dos nervos. Os dareis conta, agora, do quão bom é ter domínio sobre todas as ações inconscientes.
Em uma ocasião, dei-lhes a definição de Deus e do homem. O homem é um círculo infinito, cuja circunferência não está em parte alguma, mas cujo centro está situado em um ponto; Deus é um círculo infinito, cuja circunferência não está em parte alguma, mas cujo centro está em todas as partes. Deus trabalha com todas as mãos, vê por todos os olhos, caminha com todos os pés, fala por todas as bocas e pensa por meio de todos os cérebros. O homem pode ser como Deus e adquirir domínio sobre o universo, se multiplicar ao infinito seu centro de autoconsciência. Portanto, a consciência é a coisa principal que se há de entender. Suponhamos que há aqui uma linha infinita em meio à obscuridade; não vemos a linha, mas nela há um ponto luminoso em movimento. A medida em que o ponto se move sobre a linha, vai iluminando sucessivamente as diferentes partes e tudo o que fica atrás volta novamente à obscuridade. Nossa consciência pode, muito bem, se assemelhar o dito ponto luminoso; as experiências passadas têm sido representadas pelas presentes e se submergem no subconsciente. Não nos damos conta de sua presença em nós, mas estão ali, influindo inconscientemente sobre nosso corpo e mente. Todo movimento que se faz agora, sem ajuda da consciência, foi antes consciente. Recebeu ímpeto suficiente para que trabalhe por si mesma.
O grande erro de todo sistema de ética, sem exceção, está em não haver ensinado os meios pelos quais o homem pode abster-se de fazer o mal. Todos os sistemas de ética ensinam: “Não roubar”. Muito bem; mas por que roubar o homem? Porque furtar, roubar e outras más ações, por regra geral, são automáticas. O ladrão, o gatuno, o mentiroso, o injusto sistemático, seja homem ou mulher, o são, apesar deles mesmos. É realmente um tremendo problema psicológico, o qual deveríamos considerar sob a luz mais benévola. Não é fácil ser bom. Que sois senão meras máquinas até que sejais livres? Deveis vos orgulhar porque sois bons? Certamente que não, sois bons porque não podeis ser outra coisa. Outro é mau porque não pode ser de outra maneira. Se vos encontrasses em sua situação, quem sabe terias sido?
A mulher pública, o ladrão no cárcere, são Cristo que está sendo sacrificado para que os demais sejam bons. Tal é a lei do equilíbrio. Todos os ladrões, todos os assassinos, todos os injustos, os fracos, os malvados, os endemoniados, todos eles são meu Cristo. Devo adoração a Deus Cristo e ao demônio Cristo. Tal é minha doutrina e não posso evita-lo. Inclino-me ante o bem, o santo e ante o malvado e o endemoniado. Todos eles são meus instrutores, todos são meus pais espirituais, todos são meus salvadores. Poderei maldizer a um e, contudo, beneficiar-me com suas debilidades; posso bendizer a outro e beneficiar-me de suas boas ações. Isto é tão verdade como estou diante de vós. Hei de olhar com desprezo a rameira porque a sociedade o quer; a ela, minha salvadora, a ela, cujo andar pelas ruas é a razão da castidade de outras mulheres! Pensais nisto. Gravais, homens e mulheres, estas idéias em vossas mentes, porque são a nua e pura verdade. Esta convicção se afirma mais e mais em mim, a medida em que conheço melhor o mundo, a medida em que conheço mais homens e mais mulheres. A quem hei de culpar? A quem hei de louvar? Se há de considerar ambos os lados da moeda.
A tarefa ante nós é imensa; em primeiro lugar, temos principalmente que procurar controlar a grande massa de pensamentos submersos, que são automáticos em nós. É indubitável que a má ação se encontra no plano consciente, mas a causa que a produziu está muito mais dentro, no subconsciente, no invisível; por conseguinte, é mais potente.
A psicologia prática exige suas energias, ante tudo, em controlar o subconsciente e sabemos que podemos faze-lo. Por que? Porque sabemos que a causa do inconsciente é o consciente; os pensamentos inconscientes são os milhões de velhos pensamentos conscientes submersos; velhas ações conscientes que estão petrificados; não nos enxergamos, não nos reconhecemos, os temos esquecido. Tenha-se presente, no entanto, que se o poder do mal está no subconsciente, também o está o poder para o bem. Em nós há muitas coisas armazenadas como em um bolso; as temos esquecido, nem sequer pensamos nelas e muitas delas estão apodrecendo e tornando-se positivamente perigosas. A grande tarefa consiste, por assim dizer, em revitalizar o homem em todos seus aspectos, a fim de fazer-se dono completo de si mesmo. Até o que chamamos função automática dos órgãos do corpo, tais como o fígado, etc., podemos fazer com que nos obedeça.
O domínio do subconsciente é a primeira parte do estudo; a este segue transcender o consciente. Assim como o subconsciente atua por debaixo da consciência, também há algo que atua acima desta. Quando se alcança esse estado supraconsciente, o homem é livre e divino, a morte se transforma em imortalidade, a debilidade torna-se poder infinito, a sujeição férrea se converte em liberdade. Tal é a meta; a região infinita do superconsciente.
Vemos, pois, que a obra tem dois aspectos. Os livros dizem que somente é yogui aquele que, depois de praticar por longo tempo a concentração, realiza esta verdade. Então se abre o sushumna e penetra nele uma corrente que nunca havia penetrado na nova passagem; esta corrente ascende gradualmente ao que (em linguagem figurada) chamamos das diferentes flores de loto, até que, por fim, chega ao cérebro. Então o yogui torna-se o que ele verdadeiramente é, Deus.
Cada um de nós, sem exceção, pode alcançar esta culminação da yoga. Porém, é uma tarefa tremenda. A pessoa que aspire realizar esta verdade há de fazer algo mais que escutar conferências e praticar uns poucos exercícios respiratórios. Tudo depende da preparação. Quanto tempo demanda acender a luz? Só um segundo; mas quanto tempo se necessita para fazer a vela! Quanto tempo empregamos para comer? Talvez meia hora. Mas quantas horas para preparar a comida! Queremos acender a luz em um segundo, mas esquecemos que o principal é preparar a vela.
No entanto, embora seja tão difícil alcançar a meta, os intentos, até os menores, não são em vão. Sabemos que nada se perde. No Gita, Aujurna pergunta a Krishna: “Quem não alcança a perfeição na yoga nesta vida é destruído como as nuvens de verão?”. Ao que Krishna responde: “Nada, amigo meu, se perde nesse mundo. Quando alguém fica como de sua propriedade e se o fruto do yoga não vem nesta vida, se obterá em um novo nascimento”. De outra maneira, como explicais a maravilhosa infância de Jesus, de Buda, de Sankara?
A respiração, as posturas, etc., ajudam, sem dúvida, na prática do yoga; mas são meramente físicas. As grandes preparações têm de ser mentais. Necessitamos, antes de tudo, de uma vida tranqüila e pacifica.
Se quiserdes ser yoguis, tereis de ser livres e situardes em circunstâncias em que possais estar sós e livres de toda ansiedade. Quem deseja uma vida cômoda e agradável e, ao mesmo tempo, quer realizar o Eu, se parece a um tolo que, querendo cruzar o rio, se agarra a um crocodilo, acreditando que é um tronco. “Buscais primeiro o reino de Deus e tudo o demais se os dará por acréscimo”. Este é o único grande dever, isto é renúncia. Viver por um ideal e não deixar na mente lugar para outra coisa. Dediquemos todas as nossas energias a adquirir o que nunca falha, nossa perfeição espiritual. Se desejarmos verdadeiramente a realização, haveremos de nos esforçar e, mediante o esforço, o crescimento se aprofundará. Cometeremos erros, mas estes serão como anjos disfarçados.
A ajuda mais efetiva para a vida espiritual é a meditação (dhyana). Na meditação nos despojamos de todas as condições materiais e sentimos nossa natureza divina; não dependemos de nada externo, na meditação. O contato com a alma pode fazer resplandecer as mais vivas cores nos lugares mais lúgubres, pode espargir fragrâncias sobre as coisas mais depreciáveis, pode fazer divino o malvado e desvanecer toda inimizade, todo o egoísmo. Quanto menos se pensa no corpo, tanto melhor; porque o corpo é o que nos atira para baixo, o apego e a identificação com o mesmo são a causa de nosso sofrimento. Este é o segredo: pensar que sou o espírito e não o corpo e que neste universo inteiro, com todas as sua relações, com todo o bem e o mal, só é uma série de quadros, de pinturas sobre uma tela, da qual sou eu o expectador.
“A FILOSOFIA VEDANTA”
Swami
Vivekananda
(Conferência ante a Sociedade Filosófica de Graduados da Universidade de Harvard, em 25 de março de 1896)
A filosofia vedanta, como atualmente se costuma chamá-la, compreende, na realidade, todas as diversas seitas existentes hoje em dia na Índia. Assim, pois, tem havido varias interpretações, às quais, no meu modo de ver, têm sido progressivas, começando pela dvaita ou dualista e terminando pela advaita ou monista. A palavra “vedanta” significa, literalmente, a finalidade dos Vedas, que são as escrituras dos hindus 1. No Ocidente, às vezes, por Vedas se quer dar a entender unicamente os hinos e os rituais, mas na atualidade estas partes já não se usam e correntemente na Índia, ao dizer Vedas, se subtende a vedanta. Todos nossos comentadores quando querem citar alguma passagem das escrituras, em geral, citam a vedanta, a qual tem para eles outro nome técnico: “srutis” 2. Agora, todos os livros conhecidos sob o nome de vedanta, não foram escritos inteiramente depois das partes ritualistas dos Vedas. Por exemplo, um deles, o Isha Upanishad, constitui o capitulo quadragésimo do Vada Yajur, uma das partes mais antigas dos Vedas. Outros Upanishads 3, formam as partes dos brahmanas ou escritos rituaistas e os demais são independentes, pois não estão compreendidos em nenhum dos brahmanas nem em outras partes dos Vedas; mas não há razão para supor que foram completamente independentes de outras partes, porque como bem sabemos, muitas destas se perderam totalmente e muitos dos brahmanas desapareceram. Portanto, é bem possível que os Upanishads independentes pertenceram a algum dos brahmanas que, no transcorrer do tempo, ficaram fora de uso, enquanto que se conservaram os Upanishads. Estes se chamam, também, livros da selva ou aranyakas.
1. Os Vedas se dividem em duas
partes, a saber: karma-kanda e jnana-kanda; ou seja, a parte prática e a de
conhecimento. Pertenceu a karma-kanda os famosos hinos e os rituais ou
brahmanas. Os livros que tratam de questões espirituais, excluindo as cerimônias,
se chamam Upanisjads e pertencem a jnana-kanda, aparte do conhecimento. Não é
que todos os Upanishads foram compostos como parte separada dos Vedas, senão
que alguns estão misturados com os rituais e ao menos um está no “samhita” ou
parte dos hinos. Às vezes se aplica o termo Upanishads a livros não incluídos
entre os Vedas; por exemplo, o Gita; mas em regra geral, se aplica aos tratados
filosóficos disseminados entre os Vedas. Estes tratados têm sido colecionados e
é chamado vedanta.
2. O termo sruti significa “o
que se vê” e embora inclua a totalidade da literatura védica, é aplicado pelos
comentadores principalmente aos Upanishads.
3. Se diz que os Upanishads
são cento e oito. Não se conhecem, com certeza, suas datas; a única certeza é
que são mais antigos que o movimento budista. Embora alguns Upanishads menores
contenham alusões que indicam sua data posterior, ele não prova que o tratado
seja de data mais recente, pois em muitíssimos casos ocorre, na literatura
sânscrita, que a substância de um livro, embora de data muito antiga, receba um
revestimento, por assim dizer, de sucessos posteriores, em mãos de sectários,
para exaltar a sua seita particular.
Por conseguinte, a vedanta constitui praticamente as escrituras dos hindus e todos os sistemas ortodoxos de filosofia hão de aceita-la como fundamento. Até os budistas e os jainos, quando convém a seu propósito, citam como autoridades passagens da vedanta. Na Índia, todas as escolas de filosofia, embora pretendam estar fundadas nos Vedas, têm dado diferentes nomes a seus sistemas. A última, o sistema de Vyasa, se baseou nas doutrinas dos Vedas mais que nos sistemas anteriores e intentou harmonizar as filosofias precedentes, tais como a sankhya e a nyaya,com as doutrinas da vedanta. De maneira que chamam-na especialmente filosofia vedanta; e os sutras ou aforismos de Vyasa, representam, na Índia moderna, a base da filosofia vedanta.
Por outro lado, os aforismos de Vyasa têm sido diversamente explicados por diferentes comentadores. Em geral, há na Índia três tipos de comentadores 4, e de suas interpretações têm surgido três sistemas de filosofia e três seitas, uma é dualista ou dvaita; a segunda é a parcialmente monista ou vishishtadvaita, e a terceira, a monista, ou advaita. Destas, a dualista e a parcialmente monista, são as preferidas. Em troca, a monista absoluta tem relativamente poucos adeptos.
4. Os comentários pertencem a
várias classes, tais como o Bhashya, o Tika, o Tippani, o Churni, etc.; dos
quais todos, exceto o Bhashya, são explicações do texto ou de palavras difíceis
nele mesmo. O Bhashya não constitui propriamente um comentário, senão a
elucidação de um sistema de filosofia extraído dos textos, cujo objetivo não
consiste em explicar as palavras, senão de extrair uma filosofia. Assim, o escritor
de um Bhashya expande seu próprio sistema, tomando os textos como autoridade
para ele mesmo.
Muitos comentários foram feitos sobre a vedanta e suas doutrinas acham sua expressão final nos aforismos filosóficos de Vyasa. Este tratado, chamado “Uttara Mimansa”, constitui a autoridade normal do vedantismo, mais até, a exposição mais autorizada das escrituras hindus. As seitas mais antagônicas se viram obrigadas, por assim dizer, a tomar os textos de Vyasa e harmoniza-los com sua própria filosofia. Até em tempos muito antigos, os comentadores da filosofia vedanta, constituíram três celebradas seitas hindus de “dualistas”, “parcialmente monistas” e “monistas”. Talvez os antigos comentários se perderam, mas em tempos modernos, têm sido restabelecidas por comentadores pós-budistas como Shankara, Ramanuja e Madhava. Shankara restabeleceu a forma monista; Ramanuja, a forma parcialmente monista do antigo comentador Bodhayana, e Madhava a forma dualista. Na Índia, as seitas diferem principalmente em sua filosofia; a diferença entre os rituais é ligeira, já que têm todas a mesma base filosófica e uma mesma religião.
Tratarei de explicar-lhes as idéias sustentadas por estas três seitas, porém, antes de prosseguir, quero fazer presente que estes diferentes sistemas da vedanta têm uma psicologia comum, a psicologia do sistema sankhya, muito parecida à dos sistemas nyasa e vaisheshika, salvo pequenos detalhes.
Todo os vedantistas coincidem em três pontos: crêem em Deus, nos Vedas como revelados e nos ciclos. Já consideramos os Vedas. O conceito dos ciclos é o seguinte: A matéria do universo inteiro é resultado de uma matéria principal chamada akasha e toda força, seja de gravitação, de atração ou de repulsão ou de vida, é o resultado de uma força principal chamada prana. Prana atuando sobre akasha, cria ou projeta o universo 5. No princípio de um ciclo, akasha está imóvel, imanisfestado. Logo prana começa a atuar, criando de akasha formas mais e mais densas, tais como as plantas, animais, homens, estrelas, etc. Depois de um incalculável período de tempo, cessa esta evolução e se inicia a involução, tornando tudo, através de formas cada vez mais finas e sutis, ao akasha e prana originais, ao que segue um novo ciclo. No entanto existe algo mais que akasha e prana; pois ambos podem resolver-se em um terceiro chamado “mahat”, ou mente cósmica. Esta não cria a akasha nem a prana, senão que se transforma neles.
5. A palavra “criação”, em
espanhol, significa exatamente, em sânscrito, “projeção”, pois não há seita
alguma na Índia que dê à criação, o mesmo sentido que no Ocidente, ou seja,
algo que procede do nada. O que entendemos por criação, é a projeção de algo
que já existia.
Trataremos agora dos conceitos de mente, alma e Deus. Segundo a psicologia sankhya, universalmente aceita, em percepção (por exemplo, no caso da visão), existem ante todos os instrumentos da visão, ou seja, os olhos. Por detrás dos instrumentos, os olhos, está o órgão da visão ou “indriya” (o nervo ótico e seus centros), que não é um instrumento externo, mas sem o qual os olhos não vêem. Para a percepção se necessita de algo mais. A mente ou “manas”, precisa agregar-se ao órgão; além disto, a sensação leva ao intelecto ou “buddhi”, o estado determinativo e reativo da mente. Ao proceder a reação de buddhi, brilha com ela o mundo externo e o egoísmo. Aqui está, então, à vontade; mas ainda falta algo. Da mesma maneira que em um quadro, por estar composto de sucessivos motivos de luz, estes hão de estar unidos em algo fixo para formar um todo, assim também todas as idéias da mente se hão de reunir e projetar-se sobre algo fixo, relativamente ao corpo e a mente, ou seja, no que se chama alma, purusha ou Atman.
Segundo a filosofia sankhya, o estado reativo da mente, chamado buddhi ou intelecto, é o resultado, a mudança ou certa manifestação de mahat ou mente cósmica. Mahat modifica em pensamento vibrante; este, por sua vez, se transforma parcialmente em órgãos e parcialmente em partículas finas de matéria. Da combinação de tudo isto, se produz o universo inteiro. A sankhya concebe até depois de mahat, um estado chamado “avyaktam” ou imanifestado, no qual a manifestação da mente não está presente, senão que sé existem as causas. É chamado também de “prakriti”; além deste prakriti e eternamente separado do mesmo, está purusha, a alma de sankhya, a qual carece de atributos e é onipresente. Purusha não é quem atua, é o expectador. Para explicar a pusha, se emprega o exemplo do cristal; diz-se que é como o cristal incolor, por detrás do qual se colocam objetos de diferentes cores; então aparece como colorido, embora, na realidade, não esteja.
Os vedantistas rechaçam as idéias da sankhya sobre a alma e a natureza. Declaram que existe entre estas um abismo, sobre o qual há uma ponte. Por um lado, o sistema sankhya chega à natureza e logo, prontamente, saltará para o outro lado e chegará à alma, que está inteiramente separada da natureza. Como pode estas diferentes cores, como a sankhya as chama, atuar sobre a alma, a qual, por natureza, é incolor? Por isso os vedantistas afirmam, desde o princípio, que esta alma e esta natureza são uma 6. Até os vedantistas dualistas admitem que Atman ou Deus é não somente a causa eficiente deste universo, mas também a causa material do mesmo. Porém só o dizem em palavras, pois na realidade não o entendem assim e tratam de escapar de suas próprias conclusões dizendo: neste universo há três existências; Deus, alma e natureza. A natureza e a alma são, por assim dizer, o corpo de Deus e neste sentido se pode afirmar que Deus e o universo inteiro são um. Mas esta natureza e todas estas várias almas se mantêm diferentes umas das outras por toda a eternidade. Se manifestam unicamente no princípio do ciclo; ao terminar este, voltam ao estado puro e se mantêm no mesmo. Os advaitistas, monistas, rechaçam esta teoria da alma e como têm como apoio quase toda série dos Upanishads, constroem sobre eles sua filosofia inteira. Todos os livros contidos nos Upanishads têm um só objetivo, uma só tarefa, demonstrar o seguinte tema: “Assim como pelo conhecimento de um torrão de argila conhecemos toda a argila, conhecemos toda a argila do universo, que quer dizer, conhecendo-o, nos permite conhecer todo o universo?”. A idéia do advaitista é generalizar o universo inteiro em uma única coisa; essa coisa que é, na realidade, a totalidade do universo. Afirmam que todo este universo é um só ser que se manifesta por meio de todas estas múltiplas formas. Admitem que existe o que a sankhya chama natureza; mas dizem que a natureza é Deus. Este Ser, “Sat”, é o que se converteu em tudo isto, o universo, o homem, a alma e tudo o que existe. A mente e mahat não são senão manifestação de Sat. Mas aqui surge uma dificuldade: tal conceito equivale ao panteísmo. Como pode ocorrer que Sat, que é imutável, como eles mesmos admitem (pois todo o absoluto é imutável), se transforme em algo mutável ou perecível?
6. A vedanta e a filosofia
sankhya se opõe uma a outra. O Deus da vedanta se desenvolveu do purusha e da
sankhya. Todos os sistemas tomam a psicologia desta última. Tanto a vedanta
como a sankhya crêem na alma infinita, só que a última crê na existência de
muitas almas. Segundo a sankhya, este universo não requer explicação alguma do
exterior. A vedanta crê que existe a alma única, que aparece como muitas; e nós
construímos sobre a análise da sankhya.
Os advaitistas têm uma teoria que chamam “vivarta vada” ou manifestação aparente. Segundo os dualistas e os sankhyas, a totalidade deste universo é a evolução da natureza primária. Segundo os advaitistas e alguns dualistas, a totalidade deste universo evolui de Deus; e de acordo com os verdadeiros advaitistas, os seguidores de Shankaracharya, o universo inteiro é a evolução aparente de Deus. Deus é a causa material deste universo, não em realidade, mas só de aparência. A célebre ilustração empregada é a corda e a serpente; a corda parece uma serpente, mas, na realidade, não é. A corda não se transformou em serpente. De igual modo, este universo, tal qual existe, é esse Ser. Não muda; todas as mudanças que vemos são só aparentes e causados por “desha”, “kala” e “nimita” (espaço, tempo e causa) ou, de acordo com uma generalização mais elevada, por “nama” e “rupa” (nome e forma). O nome e a forma de uma coisa são o que a diferencia de outra. Nome e forma são a única causa da diferença; na realidade, são uma e a mesma coisa.
Por outro lado os vedantistas dizem: não é que haja algo como fenômeno e algo como número. A corda se transforma em serpente só aparentemente; uma vez que cessa essa ilusão, a serpente desaparece. Quando alguém é ignorante, vê o fenômeno e não vê a Deus. Enquanto vê a Deus, o universo se desvanece inteiramente. A ignorância ou maia, segundo se a chama, é a causa desse fenômeno em que o Absoluto, o Imutável, confundem-se com o universo manifestado. Maia não é zero absoluto, nem tampouco inexistência. Não é inexistência porque isto só pode se dizer do Absoluto, do Imutável e neste sentido, maia é inexistência. Assim mesmo, tampouco se pode dizer que seja inexistência, porque, se o fosse, não poderia produzir o fenômeno. De maneira que não é uma coisa nem outra; na filosofia vedanta se chama “anirvachaniya”, o inexpressável.
Maia, portanto, é a causa real deste universo. Maia dá nome e forma a matéria que ministra Brahman ou Deus e aparece logo que este último se transforma em tudo isto. Os advaitistas, portanto, não aceitam a alma individual; dizem que as almas individuais são criadas por maia e que na realidade, não podem existir. Se a existência é uma só, como pode ser que eu seja um, cada um de vós um e assim por diante? Todos somos um e a causa do mal é a percepção da dualidade. Tão logo como começo a me sentir separado deste universo chega, em seguida, o temor e a dor. “De onde um olha o outro, um vê o outro; isso é pequenez. Onde um não vê o outro, não olha o outro, isto é maior, isso é Deus; ali está a felicidade perfeita. Nas coisas pequenas não há felicidade”.
De maneira que, de acordo com a filosofia advaita, esta diferenciação da matéria, estes fenômenos, ocultam por um tempo, digamos assim, a verdadeira natureza do homem; mas este, na realidade, não muda o mínimo. O verme mais vil, ou mesmo o ser humano mais elevado estão presentes na mesma natureza divina. A forma do verme é a mais inferior e nela maia encobre mais a divindade; a forma mais elevada é aquela em que a divindade está menos oculta. Por detrás de todas as coisas existe a mesma divindade e isto nos dá a base da moralidade. Não prejudiqueis a outro; ama a todos como a ti mesmo. Disto nasce também o princípio da moralidade advaita, que tem sido compendiado na expressão: própria abnegação. O advaita diz: este pequeno eu personalizado é a causa de toda minha desgraça; este pequeno eu individualizado que me faz diferente dos demais seres, traz ódio, ciúmes e desgraças, lutas e todos os demais males; quando abandonarmos tal idéia, toda luta cessará e se desvanecerá todo mal-estar. Portanto, devemos abandona-la; temos de estar dispostos a dar nossas vidas pelos seres mais inferiores.
Quando o homem está disposto a dar sua vida até por um mísero inseto, alcançou a perfeição a qual aspira o advaita; nesse instante o véu da ignorância cai e sente sua própria natureza. Até nesta vida sentirá que é uno com o universo. Por um tempo, por assim dizer, a totalidade deste mundo fenomenal desaparecerá para ele e realizará o que ele é. Não obstante, enquanto se mantiver o carma desse corpo, terá que viver. Nesse estado em que o véu se desvaneceu e, contudo, se conserva o corpo por algum tempo, é o que os vedantistas chamam “jivanmukti”, a liberdade em vida. Quem se deixa enganar durante algum tempo por uma miragem, se um dia esta se desvanecer, quando se produzir novamente no dia seguinte ou no futuro, já não se iludirá mais.
Antes que a miragem se produza pela primeira vez, o homem não poderá distinguir entre a realidade e a decepção; mas uma vez desvanecida, enquanto possuir órgãos e olhos verá a imagem, mas já não será iludido. Terá captado a sutil distinção entre o mundo atual e a miragem. Assim, enquanto o vedantista compreende sua própria natureza, o mundo inteiro se desvanece para ele; voltará de novo, mas há não será o mesmo mundo de sofrimento. A prisão dolorosa terá se transformado em Sat, Chit, Ananda; ou seja, Existência absoluta, Conhecimento absoluto, Bem-aventurança Absoluta. Consegui-lo é o que procura a filosofia advaita.
“MAIA E ILUSÃO”
Swami
Vivekananda
(Conferência dada em Londres)
Quase todos vós tereis ouvido a palavra maia. Em geral, embora incorretamente, é empregada para significar ilusão ou engano ou algo dessa espécie. Mas a teoria de maia constitui um dos pilares em que se apóia a vedanta; portanto, é necessário compreende-la devidamente. Peço-lhes que tenhais paciência enquanto explico esta teoria que, com tanta freqüência, se interpreta erroneamente.
Achamos na literatura védica o mais antigo conceito de maia, equivalente a uma ilusão enganosa; mas então não se havia chegado à teoria verdadeira. Encontramos passagens tais como: “Indra, por meio de sua maia, assumiu várias formas”. É certo que em tal expressão, maia significa algo parecido com magia; e existem outras várias passagens em que tem o mesmo significado. Então a palavra maia se perdeu completamente de vista; entretanto a idéia foi se desenvolvendo. Mais tarde surgiu a pergunta: “Por que não podemos conhecer este segredo do universo?”. A contestação dada foi muito significativa. “Porque falamos em vão; porque ficamos satisfeitos com as coisas dos sentidos; porque corremos atrás dos desejos: porque, por assim dizer, envolvemos a Realidade em uma neblina”. Sem recorrer a palavra maia, se sugere a idéia de que nossa ignorância tem sua origem em uma espécie de neblina que se interpôs entre nós e a verdade.
Muito mais tarde, em um dos últimos Upanishads, a palavra maia reaparece, mas transformada e com novos agregados. Assim tem sido apresentada, defendendo e eliminando teorias até que se chegou a fixar definitivamente o conceito de maia. Lemos no Upanishad Shvetashvatara: “Sabe que natureza é maia e o regente desta maia é o Senhor mesmo”. Acompanhando nossos filósofos, vimos que a palavra maia havia sido manipulada de várias maneiras, até que chegamos ao grande Shankaracharya. A teoria sobre maia foi também manipulada um pouco pelos budistas, mas em mãos destes veio a ser melhor do que chamamos idealismo, significado este que é o que agora se dá geralmente a palavra maia. Quando o hindu diz que a vida é maia, as pessoas, em seguida, entendem que o mundo é uma ilusão. Tal interpretação tem algum fundamento, já que certos filósofos budistas não acreditam, em absoluto, no mundo externo. Mas a maia da vedanta, em sua forma ultimamente desenvolvida, não é nem idealismo, nem realismo, nem sequer uma teoria, mas simplesmente uma exposição de fatos do que somos e do que vimos a nosso redor.
Como lhes disse antes, o povo do qual surgiram os Vedas tinham uma idéia fixa: obedecer e descobrir princípios. Não tinham tempo para desenvolver detalhes, nem para espera-los; queriam penetrar no coração das coisas. Atraía-lhes algo mais além, por assim dizer e não podiam esperar. Disseminados nos Upanishads, encontramos detalhes de temas que hoje chamamos ciências modernas, com freqüência muito erradamente; contudo seus princípios são corretos. Por exemplo, a idéia de éter, que é uma das ultimas teorias da ciência moderna, se acha em nossa literatura antiga muito mais desenvolvida do que está a moderna teoria cientifica do éter, mas só em principio. Ao tratar de demonstrar como operava este principio, cometeram muitos erros.
A teoria do princípio vital que tudo penetra, do qual toda a vida neste universo é só uma manifestação diversa, era conhecida em tempos védicos e se encontra nos brahmanas. Os samhitas contêm um longo hino em louvor de prana, do qual toda a vida é senão uma manifestação. E a propósito, pode ser que vos interesse saber que a filosofia védica, sobre a origem da vida nesta terra, apóia teorias muito similares às apresentadas por alguns dos cientistas europeus modernos. Todos vós sabeis, supostamente, é a teoria segundo a qual a vida veio de outros planetas. É a doutrina assentada, para alguns filósofos védicos, em que a vida vem, desta maneira, da lua.
Voltando aos princípios, vemos que estes pensadores védicos foram muito valentes e admiravelmente atrevidos ao propagar grandes e generalizantes teorias. A solução que deram ao mistério do universo, desde o ponto de vista do mundo externo, foi tão satisfatória como pode ser. A detalhada atuação da ciência moderna não nos aproximou nenhum passo a mais da solução, devido a que os princípios têm falhado. Se a teoria sobre o éter não conseguiu dar, na antiguidade, a solução do mistério do universo, o desenvolvimento dos detalhes de tal teoria não nos aproximará muito da verdade. Se o conceito do principio vital que tudo penetra fracassara como teoria deste universo, de nada serviria desenvolve-lo, porque os detalhes não alteram o princípio. O que quero dizer é que, ao investigar os princípios, os pensadores hindus foram tão atrevidos e em alguns casos mais que os modernos. Apresentaram algumas das generalizações mais notáveis conseguidas até agora, várias das quais são mesmo teorias, pois a ciência moderna, todavia, não chegou a tanto.
Por exemplo, os pensadores hindus não só formularam a teoria do éter, senão que foram mais além e classificaram a mente como um éter mais raro; e até mais além encontraram outro éter mais raro ainda; contudo, isso não era uma solução, nem resolvia o problema. Por muito que se conheça o mundo externo, não se consegue resolver o problema. “Porém”, disse o cientista, “estamos recém começando a conhecer algo; espera alguns milhares de anos e encontraremos a solução”. “Não”, contesta o vedantista, por haver demonstrado fora de qualquer dúvida, que a mente é limitada, que não pode ir mais além de certos limites, nem mais além do tempo, espaço e causa.
Assim como nenhum homem pode sair de si mesmo, tampouco homem algum pode transcender as limitações que lhe impõe as leis do tempo e espaço. Toda intenção de resolver as leis de causa, tempo e espaço, resultariam vãs, porque a intenção se fará aceitando a existência destes três fatores. Que significa, então, a afirmação da existência do mundo? “Este mundo não tem existência”. O que se quer dar a entender com isso? Quer dizer que não tem existência absoluta. Existe unicamente em relação a minha mente, a vossa mente, a mente de todos os demais. Vemos este mundo com os cinco sentidos, mas se puséssemos seis sentidos, perceberíamos algo mais nele e se tivéssemos sete, nos pareceria de forma diferente. Portanto, não tem existência real, não tem uma existência imutável, imóvel, infinita. Tampouco se pode chamar de inexistente, porque existe e temos de trabalhar nele e por meio dele. É uma mescla de existência e não-existência.
Passando das abstrações e dos detalhes comuns e cotidianos de nossas vidas, descobrimos que nossa vida inteira é uma mescla contraditória de existência e inexistência. Esta contradição se encontra também no conhecimento. Ao que parece, o homem pode saber tudo, contanto que queira sabe-lo; mas no pouco que anda, encontra um mundo impenetrável que lhe impede o passo. Todo seu trabalho se efetua em um círculo e não pode sair desse círculo. Os problemas mais íntimos e mais queridos o torturam dia e noite em demanda da solução; mas não pode resolve-los porque é incapaz de transcender seu intelecto, apesar de seu imenso desejo. Sabemos, no entanto, que unicamente dominado e detendo tais desejos, conseguiremos algo. Cada alento, cada impulso de nosso coração, nos pede para ser egoístas. Ao mesmo tempo, algum poder mais além de nós nos diz que só o altruísmo é bom.
Toda criança é otimista por natureza; tem sonhos dourados e na juventude, torna-se mais otimista ainda. Custa ao jovem crer que exista coisa tal como a morte; coisa tal como a derrota ou a degradação. Vem a velhice e a vida se converte em um montão de ruínas; os sonhos se desvanecem no ar e o homem se torna pessimista. Passamos, assim, de um extremo a outro, arrastados pela natureza, sem saber aonde vamos. Isto me lembra um celebrado canto de Lalita Vistara, a biografia de Buda. Buda nasceu, diz o livro, como salvador do gênero humano, mas esqueceu de si mesmo no luxo do palácio. Vieram alguns anjos e cantaram um cântico para despertá-lo. O tema do dito cântico é que mergulhamos, arrastados pela corrente do rio da vida, que muda constantemente e não tem parada, nem descanso. Assim são nossas vidas; marchar adiante e adiante, sem encontrar repouso. Que temos que fazer? O homem que tem o suficiente para comer e beber é um otimista e evita mencionar a miséria, porque esta o assusta. Não lhe faleis das dores e sofrimentos do mundo; aproxima-se dele e decide que o mundo é bom. “Sim, vivo seguro”, responderá. “Veja, tenho uma boa casa onde viver, não temo nem o frio, nem a fome; assim que, não me apresenteis esses horríveis quadros”. Mas, por outro lado, há os que morrem de frio e de fome; se lhes disser que tudo está bem, não o escutarão. Como podem desejar que outros sejam felizes quando eles estão na miséria? Assim oscilamos entre o otimismo e o pessimismo.
Logo, temos o tremendo fato da morte. O mundo inteiro marcha para a morte; tudo morre. Todo nosso progresso, nossas vaidades, nossas reformas, nossos luxos, nossa riqueza, nosso conhecimento, tem esse único fim; a morte. Esta é a única certeza. As cidades surgem e desaparecem, os impérios se levantam e caem, os planetas se fazem em pedaços e se convertem em pó, para ser expulsos pelas atmosferas de outros planetas. Assim ocorre desde o tempo sem começo. A morte é o fim de todas as coisas: da vida, da beleza, da riqueza, do poder e da virtude também. Os santos morrem, o mesmo com os pecadores; os reis tanto quanto os mendigos. Todos marcham para a morte e, contudo, temos tremendo apego à vida. De alguma maneira, sem saber porque, nos aferramos à vida, não podemos renunciar a ela. Isto é maia.
A mãe cria o filho com grande cuidado; tem toda sua alma, sua vida inteira posta na criança. Esta cresce, se faz homem, talvez se torne um canastrão e um bruto que a maltrata e a castiga todos os dias; contudo, a mãe continua apegada ao filho e quando sua razão desperta, a encobre com a idéia de amor. Não lhe ocorre que isso não é amor, senão algo que domina seus nervos e que não pode dominar; por mais que se prove, não pode livrar-se de tal sujeição. Isto é maia.
Todos nós procuramos conseguir o xale de ouro; cada um crê que será seu e embora todo ser racional compreenda que só tem uma probabilidade, talvez, entre vinte milhões, todos, no entanto, lutam para consegui-lo. Isto é maia.
A morte nos está espreitando dia e noite nesta terra e apesar disso, cremos que temos de viver eternamente. Certa vez perguntaram ao rei Yudhishthira: Qual é a coisa mais surpreendente na terra? Ao que o rei respondeu: “Todos os dias morre gente ao nosso redor e, contudo, os homens crêem que nunca morrerão”. Isto é maia.
Tais e tão tremendas contradições de nosso intelecto, de nosso conhecimento e até dos conhecimentos de nossas vidas, se apresentam por todos os lados. Surge um reformador e quer remediar todos os males de uma nação, mas antes que o faça, aparecem em outro lugar mil outros males. É como uma casa velha que está se destruindo; se a repara por um lado e cai em ruínas de outro. Na Índia, nossos reformadores clamam e pregam contra os males da viuvez forçada. No Ocidente, se considera o celibato como um grande mal. Se ajuda aos celibatários em um lado, eles sofrem; se ajuda os viúvos por outro, também eles sofrem. É como um reumatismo crônico; o eliminam da cabeça e vai ao tronco, o tiram dali e passa para os pés.
Aparecem os reformadores e pregam que o saber, a riqueza e a cultura não deveriam estar nas mãos de uns poucos eleitos e fazem o que podem para pôr esses benefícios ao alcance de todos. Pode ser que tais benefícios proporcionem felicidade a alguns; mas também pode ocorrer que, a medida em que se adquire cultura, diminua a felicidade física. O conhecimento da felicidade traz o conhecimento da infelicidade. Que caminho devemos tomar, então? Por pouca que seja a prosperidade material de que desfrutamos, ocasiona em outra parte essa mesma quantidade de miséria. Esta é a lei. Os jovens talvez não vejam claramente, mas quem viveu o bastante e os que tem lutado, o compreenderá. E isto é maia. Estas coisas ocorrem dia e noite e não tem solução. Porque? É impossível responder, porque a pergunta não pode ser formulada logicamente. Com efeito, não há “como”, nem “por que”; só sabemos que “é” assim e não podemos remedia-lo. Até compreende-lo e traçar uma imagem exata disso em nossa mente, está além de nossos poderes. Como podemos resolve-lo, então?
Maia é uma declaração de que o universo existe e de como se desenvolve. As pessoas se assustam, geralmente, quando lhe dizem estas coisas, mas devemos nos atrever; ocultar os fatos não é a maneira de remedia-los. Como todos sabeis, quando a lebre se vê perseguida pelos cães, oculta sua cabeça e sente-se segura; similarmente, quando nos sentimos otimistas, fazemos como a lebre; mas este não é o remédio. Alguns apresentam objeções, mas são pessoas que possuem muitas coisas boas da vida. Neste país (Inglaterra) é muito difícil ser pessimista. Todos me dizem como bem marcha o mundo e quanto progride. Mas o que cada um é em si mesmo, constitui seu próprio mundo.
Surgem velhas questões. O cristianismo deve ser a única religião verdadeira, porque as nações cristãs gozam de prosperidade. Mas tal afirmação se contradiz a si mesma, porque a prosperidade da nação cristã depende da má fortuna das nações não-cristãs. Deve haver alguém a quem oprimir. Suponhamos que todo o mundo se convertesse ao cristianismo; então as nações cristãs empobreceriam porque não haveria nações não cristãs sobre as quais fazer pressão. De maneira que o argumento se destrói a si mesmo. Os animais vivem das plantas, os homens dos animais e pior ainda, uns dos outros, os fortes dos fracos. Isto ocorre em todas as partes e é maia. Que solução encontrareis para isto? A cada dia ouvimos muitas explicações e nos dizem que no final, tudo estará bem. Supondo que isso seja possível, por que temos de empregar esta satânica maneira de fazer o bem? Por que não se pode fazer o bem com o bem, em vez de empregar métodos tão diabólicos? Os descendentes dos seres humanos atuais serão felizes, mas por que há de haver todo este sofrimento agora? Não há solução. Isto é maia.
Assim mesmo, com freqüência ouvimos que uma das características da evolução consiste em eliminar o mal; ao ser este eliminado constantemente do mundo, chegará um momento em que só haverá o bem. É agradável ouvir isso; iça a vaidade de quem possui muitos bens e não tem que fazer frente a dura luta cotidiana, nem estar esmagado sob as rodas da chamada evolução. É muito cômodo e consolador a estes afortunados. Embora a massa sofra, a eles não importa: “deixem que morram”, dizem; “não tem muita importância”. Muito bem; mas o argumento é enganoso do principio ao fim. Em primeiro lugar, se aceita que o bem e o mal manifestos neste mundo são duas realidades absolutas. Em segundo lugar, se faz uma suposição pior, ou seja, que a quantidade de bem aumenta e que a do mal diminui. De forma que está se eliminando o mal desta maneira, com o que chamam de evolução, virá um tempo que este mal ficará eliminado e o que ficar será todo bem.
É muito fácil dizer isto; mas se pode provar que o mal vai diminuir? Tomemos, por exemplo, o homem que vive numa selva; que ignora como cultivar a mente, que não sabe ler, nem ouviu jamais que existem escritos. Se ferir-se gravemente, logo sara; em troca, nós morremos por causa de um raspão. As máquinas elaboram artigos baratos, contribuem para o progresso e a evolução, mas milhões de são esmagados para que um se faça rico; enquanto um enriquece, milhares se tornam cada vez mais pobres e massas inteiras se seres humanos ficam escravizados. É assim que acontece. O homem animal vive dos sentidos; se não consegue o suficiente para comer, se sente miserável; se acontecer alguma coisa a seu corpo, se sente desgraçado. Tanto sua miséria como sua felicidade começam e terminam nos sentidos. Assim como esse homem progride, assim como seu horizonte de felicidade se alarga, seu horizonte de infelicidade proporcionalmente engrandece.
O homem da selva não sabe o que é sentir ciúmes. Nem se enfrentar com os tribunais de justiça, nem pagar impostos, nem ser acusado pela sociedade, nem estar dia e noite sob a mais terrível tirania inventada pela diabólica humanidade, que se intromete nos segredos de todo coração humano; não se explica como o homem se torna mil vezes mais diabólico que qualquer outro animal, com todo seu vão conhecimento, com todo seu orgulho. Assim, a medida em que nos elevamos sobre os sentidos, desenvolvemos um poder superior de ter prazer, mas ao mesmo tempo, temos que desenvolver maior poder de sofrer. Os nervos se tornam mais sensíveis e mais suscetíveis ao sofrimento. Em toda a sociedade observamos, com freqüência, que o homem comum, o ignorante, ao ser injuriado, não manifesta sentir grande coisa, mas sente uma boa surra. Por outro lado, o cavalheiro, o homem educado, não pode agüentar a mínima palavra injuriosa, seus nervos são muito sensíveis, sua infelicidade aumenta com sua suscetibilidade à felicidade. Tais fatos pouco evidenciam a favor do evolucionismo. A medida em que aumenta nosso poder de nos sentirmos felizes, aumenta nossa capacidade de sofrer. Às vezes me inclino a pensar que, se aumentarmos nosso poder de nos sentirmos felizes, em progressão geométrica, aumentaremos nossa faculdade de nos sentirmos infelizes. Nós que progredimos, sabemos que quanto mais avançamos, mais avenidas se abrem à dor, o mesmo com o prazer. E isto é maia.
Vemos, pois, que maia não é uma teoria para explicar o mundo, mas simplesmente uma exposição de fatos tais como são. A mesma base de nossa existência é contraditória; onde estiver este bem, há de estar também o mal, e onde quer que haja mal, há de haver algo bom; onde quer que haja vida, a morte há de seguir como sua sombra e quem sorrir, há de também chorar. E vive-versa. Este estado não tem remédio. Podemos muito bem imaginar um lugar onde só haja bem e não exista o mal, onde só sorrimos e nunca choramos, mas tal fantasia é absurda, por causa da natureza das coisas. As condições sempre são as mesmas; onde existe o poder de produzir um sorriso, se oculta o poder de produzir lágrimas; onde quer que haja poder de produzir felicidade, se esconde, em alguma parte, o poder de nos fazer infelizes.
De maneira que a filosofia vedanta não é nem otimista, nem pessimista. Expressa ambos pontos de vista e toma as coisas tal como são. Reconhece que este mundo é uma mescla de bem e de mal, de felicidade e infelicidade e que, aumentando um, aumenta, necessariamente o outro. Não haverá nunca um mundo perfeitamente bom ou perfeitamente mal; tal conceito é contraditório. Nos revela essa análise um grande segredo: que o bem e o mal não constituem duas existências precisas e separadas. Nada há neste mundo, que possamos classificar como bom e só bom, nem tampouco há coisa alguma neste universo que se possa classificar de mal e só mal. O mesmo fenômeno que hoje parece bom, pode ser que pareça mal amanhã. O que a alguns causa infelicidade, a outros pode produzir felicidade. O fogo que queima a mão da criança, aquece uma boa comida para quem morre de fome. Os mesmos nervos que transmitem a sensação de mal-estar, transmitem a de bem-estar.
Por conseguinte, a única maneira de acabar com o mal, é acabar também com o bem. Vida sem morte e felicidade sem infelicidade são contradições, pois nenhuma delas pode encontrar-se sozinha, porque cada uma delas são somente manifestações de uma mesma coisa. O que acreditei ontem ser bom, não me parece assim hoje. Ao contemplar minha vida em retrospectiva e o que foram meus ideais em épocas diferentes, me dou conta de que foi dito a verdade. Em um tempo, meu ideal foi manejar uma boa junta de cavalos; logo acreditei que se conseguisse confeccionar certa espécie de guloseima, me sentiria perfeitamente feliz; mais tarde, imaginei que estaria inteiramente satisfeito se tivesse esposa e muito dinheiro. Hoje me rio de todos esse ideais, considerando-os infantis e sem sentido.
A vedanta diz que há de chegar um tempo em que, ao olhar para trás, nos riremos dos ideais que nos fazem tremer ao ter que abandonar nossa individualidade. Todos nós queremos conservar este corpo por tempo indefinido, crendo que nos sentiremos muito felizes, mas chegará um momento em que nos riremos de tal idéia. Agora, se esta é a verdade, nos encontraremos em um estado de irremediável contradição: nem existência, nem inexistência; nem felicidade, nem infelicidade, senão uma mescla delas. Qual é, então, a utilidade da vedanta e de outras filosofias e religiões? E, sobretudo, de que serve fazer o bem? Estas são perguntas que acorrem à mente. Se for verdade que não se pode fazer o bem sem fazer o mal e que por mais que tratemos de criar felicidade, haverá sempre infelicidade, cabe a pergunta: que utilidade tem fazer o bem? Respondo, em primeiro lugar, que temos que trabalhar para diminuir a infelicidade, por ser a única maneira de nos sentirmos felizes. Cada um de nós descobre, cedo ou tarde, em sua própria vida. Os inteligentes descobrem um pouco antes e os torpes um pouco depois. Estes últimos pagam muito caro o descobrimento; os primeiros, um pouco menos. Em segundo lugar, temos que cumprir com nossa tarefa, porque não existe outra maneira de escapar desta vida de contradição. Tanto as forças do bem como as do mal, manterão vivo este universo até que despertemos de nossos sonhos e deixemos de fazer tortas de barro 1. Tal a lição que temos de aprender e para tal necessitamos de muito, mas de muitíssimo tempo.
1.
Fazer tortas de barro, alusão a um entretenimento infantil equivalente
a “fazer castelos de areia”.
Na Alemanha procuraram criar um sistema de filosofia embasado em que o Infinito se converteu em finito. Tais intentos aconteceram também na Inglaterra. Analisando a exposição de tais filósofos, deduzimos que o Infinito está tratando de expressar-se neste universo e que chegará um tempo em que o alcançará. Está bem isso de empregar as palavras “Infinito”, “manifestação” e “expressão”, etc., mas os filósofos pedem, naturalmente, uma base fundamental lógica para a afirmação de que o finito pode expressar o Absoluto ou o Infinito converterem-se neste universo. Tudo o que chega pelos sentidos, pela mente ou pelo intelecto, há de estar limitado; que o limitado seja o ilimitado, resulta simplesmente absurdo e jamais pode ocorrer.
A vedanta, por seu lado, diz que é verdade que o Absoluto ou o Infinito trata de expressar-se no finito, mas chegará um momento em que se dará conta de que isso é impossível e terá que bater-se em retirada; esta retirada significa renúncia, que é o verdadeiro começo da religião. Nestes tempos é dificílimo até falar de renúncia. De mim foi dito, na América, que vim de uma terra que estava morta e enterrada há cinco mil anos, a falar de renúncia. O mesmo disse, talvez, o filosofo inglês. Não obstante, a verdade é que tal é a única senda que conduz à religião. Renuncia e abandona. Que disse Cristo? “Quem perder sua vida por mim, a encontrará”. Uma ou outra vez pregou a renúncia como o único caminho para a perfeição. Chega um instante em que a mente desperta de seu longo e pesado sono, a criança abandona seus jogos e quer voltar à sua mãe, descobre a verdade da afirmação: “O desejo nunca fica satisfeito com o gozo; ao contrário, aumenta mais, como o fogo quando se derrama manteiga nele”.
Isto é certo, com respeito a todos os gozos dos sentidos, a todos os gozos intelectuais e a todos os gozos de que a mente humana é capaz. Não são nada, estão em maia, dentro da rede da qual não podemos escapar. Podemos correr dentro dela por tempo infinito, sem encontrar o fim e quando lutamos por conseguir um pequeno gozo, cai sobre nós uma montanha de desventuras. Que terrível isto! Ao pensar nisso, só posso considerar esta teoria de maia, esta afirmação de que tudo é maia, como a melhor e única explicação.
Quanta infelicidade há no mundo! Ao viajar por várias nações, vemos que cada uma trata de curar seus males a sua maneira. Um mesmo mal tem sido encarado por diversas raças, que tem tentado dominar de várias maneiras, sem que ninguém tenha conseguido. Em uma, conseguiram diminui-lo, mas em outra, acumulou-se. Assim acontece sempre. Os hindus, com a idéia de manter uma elevada norma de castidade na raça têm sancionado o matrimônio das crianças a qual, há tempos, tem se degradado. Ao mesmo tempo não posso negar que o matrimônio entre crianças faz a raça mais casta. Que se deve preferir? Se queres que a nação seja mais casta, debilitarás fisicamente homens e mulheres, mediante o matrimônio entre crianças. Por outro lado, estais melhores aqui, na Inglaterra? Não; porque a castidade é a vida de uma nação. Acaso não nos demonstra a história que a falta de castidade é o primeiro sinal de morte de um povo? Enquanto ocorre, o fim da raça está a vista.
Onde, então, encontraremos a solução a estas misérias? Se os pais elegem os esposos e esposas de seus filhos, o mal diminui. Na Índia, as filhas são mais práticas que sentimentais, mas em sua vida há muito pouca poesia. Por outro lado, as pessoas que buscam por si mesmas seus esposos e esposas, não parecem encontrar neles muita felicidade. A mulher indiana é, no geral, muito feliz; vêem-se poucas disputas entre os esposos. No entanto, nos Estados Unidos, onde reina a maior liberdade, o número de lares e matrimônios infelizes é grande. A infelicidade está aqui, ali e em todas as partes. Que isso demonstra? Que depois de tudo, tais ideais não nos têm proporcionado muita felicidade. Todos lutamos de um lado, vem a infelicidade de outro.
É que não devemos trabalhar para fazer o bem? Certamente que sim, com mais zelo do que nunca, mas este conhecimento fará com que se derrube nosso fanatismo. O inglês já não é fanático nem maldirá o hindu; saberá respeitar os costumes de outras nações. Haverá menos fanatismo e mais trabalho verdadeiro. Os fanáticos não podem trabalhar, porque gastam mal três quartas partes de sua energia. O que trabalha é o homem discreto, sereno e prático. De maneira que esta idéia aumentará o poder de trabalhar, pois sabendo que tal é a situação, terá mais paciência. A visão da miséria ou do mal não nos fará perder o equilíbrio, nem impulsionará a perseguir sombras. Iremos adquirindo paciência, sabendo que o mundo terá que seguir seu próprio caminho.
Se, por exemplo, todos os homens se tornarem bons, os animais evoluirão, entretanto, se converterão em homens e terão que passar pelo mesmo estado; o mesmo ocorrerá com as plantas. Mas só uma coisa é certa: o potente rio se precipita para o oceano e todas as gotas que constituem a corrente serão, com o tempo, absorvidas pelo o oceano sem limites. Assim acontece nesta vida com todas suas dores e misérias, seus gozos, sorrisos e lágrimas; uma coisa é certa: tudo avança para sua meta e é só questão de tempo que vós e eu, as plantas, os animais e toda partícula de vida existente, terminemos no oceano infinito de perfeição; tudo há de alcançar a liberdade e há de chegar a Deus.
Permita-me repetir, uma vez mais, que a atitude da vedanta nem é pessimista, nem otimista; não disse que este mundo é todo mau, nem todo bom. Afirma que nosso mal não tem maior valor que nosso bem e nosso bem não tem maior valor que nosso mal; senão que estão ligados entre si. Tal é o mundo; sabendo isto, se trabalha com paciência. Para que? Por que temos que trabalhar? Se tal é o estado das coisas, que temos que fazer? Por que não nos convertemos em agnósticos? Os agnósticos modernos sabem também que este problema não tem solução; que não é possível escapar deste mal de maia, como dizemos em nossa linguagem; por conseguinte, nos dizem que estejamos satisfeitos e que gozemos a vida. Aqui temos, novamente, um erro, um tremendo erro, o mais ilógico dos erros. Consiste no seguinte: que entendemos por vida? Entendemos só a vida dos sentidos? Nisto cada um de nós se diferencia muito pouco do bruto.
Estou seguro de que, para nenhum dos aqui presentes, a vida não é só sensória; a vida significa algo mais que isso. Nossos sentimentos, pensamentos e aspirações, formam parte integrante de nossas vidas. Não é, por acaso, o esforço para o grande ideal, para a perfeição, um dos mais importantes componentes do que chamamos vida? Segundo os agnósticos, temos de desfrutar da vida tal como é. Mas esta vida significa, sobretudo, a persecução do ideal; sua essência é buscar a perfeição. E temos de alcança-la; portanto, não podemos ser agnósticos, nem aceitar o mundo tal como parece. O agnóstico considera que esta vida, menos o fator ideal, é tudo quanto existe; como este ideal, segundo ele, permanece inalcançável, temos de abandonar a busca, isto é: o que se chama maia, esta natureza, este universo.
Todas as religiões são, em maior ou em menor grau, intentadas de transcender a natureza; tanto as mais toscas como as mais avançadas, expressadas em mitologia ou em simbolismo, em história de deuses, anjos ou demônios, em relatos de santos ou videntes, de grandes homens ou profetas ou por meio de abstrações filosóficas, todas perseguem um mesmo objetivo, todas tratam de transcender estas limitações. Em uma palavra, todas lutam pela liberdade. O homem, consciente ou inconscientemente, sente-se sujeito, não é o que quer ser, isto lhe foi ensinado no mesmo momento em que começou a olhar ao seu redor. Nesse preciso instante aprendeu que era sujeito, mas também descobriu que algo nele queria voar mais além, onde o corpo não poderia ir, mas que estava preso por esta limitação.
Mesmo nas religiões mais inferiores, que adoram aos antepassados mortos e outros espíritos, a maioria violentos e cruéis, espreitando nas casas de seus amigos, sedentos de sangue e de bebidas fortes, encontramos esse fator comum, o desejo de liberdade. O homem que quer adorar aos deuses vê neles, sobre todas as coisas, maior liberdade que a que ele tem. Ao se fechar uma porta, crê que os deuses podem transpô-las e que as paredes não são limitações para eles. Esta idéia de liberdade aumenta até converter-se no ideal de um Deus pessoal, cujo conceito principal é que está mais além da limitação da natureza, de maia. Vejo, por assim dizer, que em lugares distantes da selva, estão discutindo esta questão os antigos sábios da Índia e ali, onde mesmo os mais anciãos e santos não podem encontrar a solução, um jovem se levanta e declara: “Ouvis, vós, filhos da imortalidade; ouvis, vós, os que morais nos mais exaltados lugares, eu encontrei o caminho. Conhecendo Àquele que está mais além da obscuridade, podemos ir mais além da morte”.
Maia está em todas as partes; é terrível; contudo, temos que trabalhar através da mesma. Quem assegura que trabalhará quando o mundo todo for bom e então gozará de bem-aventurança, tem tão pouca probabilidade de o conseguir como quem, sentado às margens do Ganges disse: “Não devemos lutar a favor de maia, senão contra ela. Tem aqui outro fato que temos que aprender. Não nascemos como auxiliares da natureza, senão como seus competidores. Somos seus escravos, mas porque nós mesmos nos escravizamos. Por que está aqui esta casa? A natureza a construiu. A natureza disse: “Veja-te a viver na selva”. O homem disse: “Construirei uma casa e lutarei contra a natureza”, assim o fez.
A história inteira da humanidade é uma luta contínua contra as chamadas leis da natureza e, ao fim, o homem ganha. Também o mundo inteiro desenvolve a mesma luta; é a luta entre o homem animal e o espiritual, entre a luz e as trevas; nesta o homem sai também vitorioso. Poderíamos dizer que se abre caminho, através da natureza, para a liberdade.
Vimos, portanto, que mais além de maia, os filósofos vedantistas encontram algo não ligado por maia e, se poderemos alcança-lo, não estaremos sujeitos por ela. Esta idéia, de uma ou outra maneira, pertence a todas as religiões; mas a vedanta é só o princípio da religião, não é o fim. A idéia de Deus pessoal, o Regente e Criador deste universo, segundo é chamado, o Regente de maia, a natureza, não é o fim dessas idéias vedantistas; é só o princípio. O conceito se expande e expande até que o vedantista descobre que Aquele que ele acreditava que estar fora é o mesmo e está, na realidade, dentro. Ele é quem está livre, mas por causa da limitação, acreditou estar escravizado.
“O HOMEM REAL E O HOMEM
APARENTE”
Swami Vivekananda
(Conferência dada em Nova York)
Nos encontramos aqui, mas nossos olhos miram para diante, procurando ver há várias milhas de distância. O homem tem feito o mesmo desde que começou a pensar: Olha sempre adiante, sempre mais além. Quer saber aonde vai, mesmo depois da dissolução de seu corpo. Têm-se proposto várias teorias; tece sistemas atrás de sistemas, sugerindo explicações. Algumas têm sido rechaçadas, outras aceitas; assim seguirão as coisas enquanto o homem estiver aqui. Enquanto continuar pensando. Cada um desses sistemas contém algo da verdade. Proponho-me explanar e resumir as investigações sobre este ponto que foi fato na Índia. Tratarei de harmonizar os diversos conceitos que, de tempos em tempos, apareceram entre os filósofos hindus. Procurarei, também, harmonizar aos psicólogos e metafísicos e, se for possível, irmana-los com os pensadores científicos modernos.
O único propósito da filosofia vedanta é indagar sobre a unidade. À mente hindu não lhe interessa particularmente; vai sempre atrás do geral; melhor dizendo, do universal. “Qual é aquele conceito com o qual se conhecem todos os demais?”. Este é o tema único. “Assim como pelo conhecimento de um torrão de argila conhecemos tudo o que é argila, assim também, que é aquele, cujo conhecimento nos dará o todo do universo?”. Tal é a investigação única. Segundo os filósofos hindus, o universo inteiro pode reduzir-se a um só material, que eles chamam “akasha”. Tudo quanto vemos ao nosso redor, tudo o que sentimos, tocamos, provamos, é simplesmente a manifestação diferenciada de akasha, que penetra tudo, sutil. Tudo o que chamamos de sólidos, líquidos gases, figuras, formas ou corpos; a terra, o sol, a lua e as estrelas, tudo se compõe deste akasha.
Que força, ao atuar sobre este akasha, fabrica com o nosso universo? Todo poder, manifestando-se como força ou atração, mais até, como pensamento, não é senão uma manifestação diferente do poder único, ao que os hindus chamam “prana”, o qual, atuando sobre akasha, está criando o universo inteiro. Ao iniciar-se um ciclo ou período, prana dorme no oceano infinito de akasha; mantém-se imóvel, em princípio. A ação de prana engendra movimento no oceano de akasha; ao mover-se e vibrar prana, vão surgindo deste oceano os diversos sistemas celestes, sóis, luas, estrelas, terra, seres humanos, animais, plantas, assim como a manifestação das distintas forças e diversos fenômenos.
Segundo esses filósofos, toda manifestação de poder é, portanto, este prana; toda manifestação material é akasha. Uma vez que este ciclo ou período chegue a seu término, tudo quanto chamamos sólido se fundirá e tomará a forma seguinte mais fina, ou seja, a líquida; esta, por sua vez, se fundirá na gasosa e esta em vibrações de calor mais sutis e mais uniformes; por último, tudo voltará ao estado original de akasha. O que agora chamamos atração, repulsão e movimento, se reduzirá lentamente ao prana original. Diz-se que este prana dorme, durante um período, para emergir novamente e dar nova vida a todas essas formas e, ao término do novo ciclo, submergir-se outra vez. Assim, este processo de criação surge e se funde, oscila para trás e para frente. Segundo a linguagem da ciência moderna, mantém-se estático durante um período e dinâmico em outro. Durante um tempo, assume o estado potencial e no seguinte período, faz-se inativo. Estas alternativas vem produzindo-se desde a eternidade.
No entanto, esta análise é só parcial. Até a ciência física moderna sabe de tudo isso; suas investigações não podem ir mais além; mas o interrogante fica em pé. Não descobrimos, todavia, aquilo que, uma vez conhecido, nos fará conhecer os demais. Temos reduzido o universo inteiro a dois elementos componentes, chamados matéria e energia, ou seja, o que os antigos filósofos da Índia chamavam akasha e prana; demos um passo a mais e procuremos reduzir este akasha e este prana à sua origem. Ambos podem ser reduzidos a uma entidade, superior até, chamada mente; têm sido produzidos na mente, de “mahat”, os poderes mentais existentes em todo o universo. O pensamento é uma manifestação do ser, ainda mais sutil que akasha ou prana; é ele quem se divide para formar aqueles dois. O pensamento universal existiu desde o princípio e se manifestou, mudou e evoluiu até converter-se nestes dois: akasha e prana, cuja combinação produziu o universo.
Tratemos agora da psicologia. Os estou olhando; as sensações externas me chegam pelos olhos; são levadas pelos nervos sensórios ao cérebro. Os olhos não são os órgãos da visão; só são os instrumentos externos; porque se destruírem em mim o órgão real, o que transmite a sensação ao cérebro, embora tivesse vinte e oito olhos, na poderia vê-los. A reprodução na retina seria completamente possível, mas não os viria. Por conseguinte, os órgãos e o instrumento, são coisas distintas. Detrás do instrumento, ou seja, os olhos, há de haver um órgão; o mesmo ocorre nas demais sensações. O nariz não é o sentido do olfato, senão o instrumento; por detrás deste, acha-se um órgão.
Para cada sentido que possuímos, temos, primeiro o instrumento externo no corpo físico e atrás deste, no mesmo corpo físico, o órgão; não obstante, estes dois não são suficientes. Suponhamos que enquanto estou falando com vós, me escutais com profunda atenção. Acontece algo, digamos, soa um timbre; talvez não ouvistes tal som. Sua vibração chega a vosso ouvido, golpeia o tímpano, é conduzido pelo nervo ao cérebro; já que o processo foi completo e conseguiu levar o impulso ao cérebro, por que não ouvistes? Porque faltou algo; a mente não se conectou com o órgão. Quando a mente se separa do órgão, embora este transmita alguma impressão, ela não a recebe; só quando está conectada com o órgão, podeis receber as impressões que aquele lhe transmite. Mesmo assim não se completa todo o processo. O instrumento pode receber a sensação do exterior, os órgãos levá-la para dentro, a mente conectar-se com o órgão e, contudo, não se completar a percepção. Faz falta outro fator; a produção de uma reação interna; com esta reação, vem o conhecimento. O que está fora envia, por assim dizer, a corrente da notícia ao meu cérebro; minha mente a toma e a apresenta ao intelecto, o qual a classifica em relação a impressões prévias e envia uma corrente de reação e com esta, chega a percepção. Aqui, pois, atua a vontade. O estado da mente que reage se chama “buddhi”, o intelecto.
Não obstante, nem sequer isto tudo completa o total. Necessitamos dar outro passo. Suponhamos que temos aqui um projetor e também uma tela na qual estou tratando de projetar uma imagem. Que devo fazer? Dirigir os diversos raios de luz através do projetor de maneira que caiam sobre minha tela e se agrupem ali; é necessário projetar a imagem sobre algo que não se mova; não podendo faze-lo sobre algo que está em movimento, esse algo deve ser fixo, porque os raios de luz que projetam sobre ele se movem, e estes raios de luz em movimento se reunirão, unificarão, coordenarão e completarão sobre algo que está fixo.
Similar é o caso com as sensações que nossos órgãos transmitem ao interior e apresentam à nossa mente, e que esta, por sua vez, apresenta ao intelecto. Este processo não será completo se não há algo permanente no fundo, sobre o qual a imagem, por assim dizer, possa reconstruir-se e nele possam unificar-se todas as impressões. Que é a unidade do conjunto modificante de nosso ser? Que é que mantém a identidade da coisa em movimento, momento a momento? Sobre o que se juntam todas as nossas diferentes impressões; sobre o que se unem, residem e formam um todo unindo nossas percepções? Descobrimos que para servir atingir esta finalidade, há de haver algo imóvel em relação ao corpo e a mente. A tela sobre a qual o projetor projeta a imagem está imóvel, em relação com os raios de luz; de outra maneira não haveria imagem. É dizer que o expectador deve ser um individuo. Este algo sobre o qual a mente pinta todos seus quadros, este algo sobre o qual nossas sensações transmitidas pela mente e o intelecto se situam, agrupam e formam uma unidade, é o que chamamos de alma do homem.
Temos visto que a mente cósmica universal é a que se divide em akasha e prana. Em nós, mais além da mente, encontramos a alma; no universo, atrás da mente universal, existe uma Alma e se chama Deus. No individuo, é a alma do homem. No universo, no cosmos, da mesma maneira que a mente universal chega a ser, por evolução, akasha e prana, vemos também que a Alma universal mesma chega a ser, por evolução, mente. Acontece realmente assim no homem individual? É sua mente a criadora de seu corpo e sua alma a criadora de sua mente? Dito de outro modo, seu corpo, sua mente e sua alma são três existências diferentes e são três em uma, ou são estados diferentes de existência do mesmo ser unitário? Trataremos, gradualmente, de encontrar resposta a esta pergunta.
Já demos o primeiro passo; temos este corpo externo, atrás dos mesmos os órgãos, a mente, o intelecto e atrás deste a alma. Neste primeiro passo encontramos, digamos assim, que a alma está separada do corpo, separada mesmo da mente. Aqui divergem as opiniões do mundo religioso e pela seguinte razão: todos os pontos de vista religiosos que se incluem na denominação geral de dualistas, sustentam que a alma possui várias qualidades, que os sentimentos de prazer, de gozo e de dor pertencem, realmente, à alma. Os não dualistas ou monistas negam que a alma possua tais qualidades; afirmam que carece de qualificação.
Permitam-me que me ocupe primeiro dos dualistas e trate de apresentar sua atitude com respeito à alma e seu destino; logo me ocuparei do sistema que os contradiz e, finalmente, trataremos de descobrir a harmonia que o monismo nos trará. A alma do homem, por estar separada da mente e do corpo, uma vez que não está composta de akasha e prana, é imortal; por que? Que entendemos por mortalidade? Decomposição. Esta só não pode produzir-se em coisas que são o resultado de uma composição, qualquer composto de dois ou mais ingredientes, se decomporão. Unicamente o que não for resultado de composição, nunca pode ser decomposto; por conseguinte, nunca pode morrer, é imortal, existiu por toda a eternidade, não foi criado. Todo objeto criado é simplesmente um composto, uma combinação em novas formas de coisas pré-existentes. Nunca se viu algo criado a partir de nada. Sendo assim, a alma do homem, por ser simples, existiu sempre e seguirá existindo sempre. Quando este corpo cai, a alma continuará vivendo.
Segundo os vedantistas, ao dissolver-se o corpo, as forças vitais do homem voltam à sua mente e quando esta se dissolve, por assim dizer, em prana e prana entra na alma do homem, esta alma sai revestida com o que chamam de corpo sutil, o corpo mental ou espiritual, como gosteis de chamá-lo. Neste corpo estão os samskaras do homem. Que são os samskaras? A mente se parece com um lago e cada pensamento a uma onda deste lago. Da mesma maneira que as ondas se levantam, logo baixam e desaparecem, assim também essas ondas mentais se levantam na substância mental e logo desaparecem, mas não para sempre. Fazem-se mais e mais finas, mas estão todas ali, prontas para levantar-se novamente, quando forem evocadas. A memória é, simplesmente, o retorno à forma de ondas de pensamentos que passaram a um estado mais sutil de existência. De maneira que tudo o que pensamos, cada ação realizada, estão alojados na mente, estão ali em forma sutil. Quando o homem morre, a soma total das impressões está na mente, a qual atua de novo em um pouco de material sutil, como meio. A alma revestida, digamos assim, com estas impressões e com o corpo sutil, parte e seu destino é guiado pela resultante de todas as diferentes forças, representadas pelas diversas impressões. Para nós, existem três metas diferentes para a alma.
Quem está próximo da perfeição, os que muito pouca impureza têm, vão às mais elevadas das esferas, ao brahmaloka ou esfera de Brahma, pelos raios do sol; as pessoas de classes intermediárias que fizeram algo bom com a idéia de ganhar o paraíso, vão aos céus da esfera lunar e ali ocupam corpos de deuses, mas voltarão a ser humanos, para ter outra oportunidade de alcançar a perfeição. Os muito maus convertem-se em fantasmas e demônios e logo em animais; depois voltam a ser homens e lhes é dada outra oportunidade para aperfeiçoarem-se.
Esta terra chama-se “karma-bhumi”, a esfera do carma. Unicamente aqui é onde o homem cria seu carma bom ou mal. Quando o homem quer ir ao céu e com tal fim faz boas obras, converte-se em um deus e como tal não acumula mal carma. Simplesmente desfruta dos efeitos das boas obras que fez na terra. E quando se esgota seu bom carma, a força resultante de todo o mal carma acumulado anteriormente em vida, atua sobre ele e o traz novamente a terra. Da mesma maneira os que se convertem em fantasmas, mantém-se em tal estado, sem criar novo carma, mas sofrem os maus resultados de suas más ações passadas e, mais tarde, entram em um corpo animal, por um tempo, sem criar novo carma. Terminado este período, voltam a ser homens novamente. Os estados de recompensa ou de castigo devidos ao carma bom ou mal, estão isentos de força para gera-lo de novo, só pode desfruta-los ou sofre-los, segundo o caso.
O carma extraordinariamente bom e o extraordinariamente mal dão frutos muito rapidamente. Por exemplo, se um homem fez muitas coisas más por toda sua vida, mas fez uma boa ação, o resultado desta aparecerá imediatamente; mas enquanto desfruta do bom efeito da mesma, todas as más ações haverão de produzir também seus efeitos. Os homens que realizam certos atos bons e grandes, mas levaram uma vida não muito correta, sobrevirão deuses e depois de viver por algum tempo em corpos de deuses e de desfrutar os poderes dos mesmos, voltarão a ser homens; apenas se esgota a força das boas ações, surge o antigo mal para ser pago e esgotado. Quem cometeu atos extremamente maus, tomam corpos de fantasmas e demônios; uma vez esgotado o efeito das más ações, a pequena boa ação que realizou, faz com que volte a ser homem. O caminho a brahmaloka, de onde não há saída ou retorno, chama-se “devayana”, ou seja, o caminho a Deus; o caminho ao céu é conhecido como “pitriyana”, ou seja, o caminho aos pais.
Por conseguinte, segundo a filosofia vedanta, o homem é o maior ser existente no universo e este mundo de trabalho é o melhor lugar no mesmo universo, porque aqui está a melhor e maior oportunidade para alcançar a perfeição. Os anjos e deuses, como quereis chamá-los, se farão homens, se quiserem chegar a ser perfeitos. Esta vida humana é o grande centro, o maravilhoso equilíbrio, a grande oportunidade.
Chegamos agora, a outro aspecto da filosofia. Há budistas que negam toda a teoria da alma que acabo de expor. “De que serve – diz o budista – supor algo como substrato, como fundo deste corpo e mente? Por que não deixamos que os pensamentos continuem? Por que admitir uma terceira substância, além deste composto de mente e corpo, uma terceira substância chamada alma? Qual é objetivo: acaso não é o organismo suficiente para explicar a si mesmo? Por que recorrer novamente a uma terceira hipótese?”. Estes argumentos são contundentes, encerram um raciocínio muito forte. Até onde a investigação exterior alcança, este organismo leva em si sua própria explicação; ao menos muitos de nós o vimos deste ponto de vista. Por que, então, se necessita que haja uma alma como substrato, como algo que não é nem mente nem corpo, senão o fundo para ambos? Deixe que haja unicamente corpo e mente.
Corpo é o nome de uma corrente de matéria que muda constantemente; mente é o nome de uma corrente de consciência ou de pensamento que muda continuamente também. Que é que produz a aparente unidade entre esses dois? Esta unidade, digamos, não existe na realidade. Tome-se, por exemplo, uma tocha acesa e faça-a girar rapidamente. Vamos um círculo de fogo. O círculo não existe realmente, mas a tocha, movendo-se continuamente, produz a aparência de círculo. De maneira que não há unidade nesta vida; é uma massa de matéria precipitando-se continuamente para baixo, só ao conjunto desta matéria se pode chamar unidade. O mesmo ocorre com a mente; cada pensamento está separado de todos os demais. Só a corrente impetuosa deixa atrás de si a ilusão de unidade; não se necessita de uma terceira substância. Este fenômeno universal de corpo e mente é o único que realmente existe; não há que supor nada atrás do mesmo.
Se verá que esta idéia budista tem sido adotada nos tempos modernos por várias seitas e escolas, todas as quais a apresentam como novo e como de sua própria invenção. Tem sido conceito central da maioria das filosofias budistas, a saber: que este mundo basta a si mesmo; que não necessitamos buscar fundo algum; que o único universo que existe é o dos sentidos e que não tem objetivo a hipótese de que algo sustenta o universo. Tudo é um conglomerado de qualidades, por que há de haver uma substancia hipotética à qual tais qualidades sejam inerentes? A idéia de substância provém do rápido intercâmbio de qualidades, não de algo imutável existente atrás delas.
Vemos quão admiráveis são alguns destes argumentos e como se acomodam facilmente à experiência corrente dos humanos. Com efeito, nem um entre um milhão é capaz de pensar em algo que não seja um fenômeno. Para a imensa maioria dos homens, a natureza aparece como uma massa de mudanças que se modificam, giram, se combinam e se mesclam. Poucos de nós chegam a vislumbrar o tranqüilo mar situado por detrás dessas mudanças. Para nós forma sempre encrespadas ondas; este universo só nos parece uma gigantesca sucessão de ondas. Encontramos, assim, estas duas opiniões; uma, que detrás da mente e do corpo, há algo que é substância imutável e imóvel e a outra, que não existe no universo tal coisa, como imutabilidade e imobilidade, que tudo é mudança e nada mais que mudança. Para solucionar esta diferença, há que se dar um passo a mais e chegar ao conceito não-dualista ou monista. Cambio (Mudança – troca). Verificar essas palavras nesta parte da conferência.
O sistema monista diz que o dualista está correto ao encontrar por detrás de tudo, o fundo que não muda; não podemos conceber mudança alguma sem que haja algo que não mude. Podemos conceber algo que mude somente conhecendo algo que mude menos; este mesmo aparecerá mais mutável, em comparação com algo que seja menos e assim indefinidamente, até que nos inclinamos a admitir que há de haver algo que não muda. Esta manifestação será encontrada em um estado de não-manifestada, em calma silenciosa, em um estado de equilíbrio de forças opostas em que, por assim dizer, nenhuma força atuava, pois estas só atuam quando se perturba o equilíbrio. Se temos alguma coisa como certa, é isso. Quando o dualista afirma que há algo que não muda, está certo, mas está equivocado em sua análise de que é algo subjacente que não é nem o corpo, nem a mente, mas algo separado de ambos.
Os budistas, ao dizer que o universo inteiro é uma série de mudanças, estão perfeitamente certos, posto que enquanto me mantenha separado do universo, enquanto me detenha a observar algo diante de mim, enquanto haja duas coisas, o observador e o observado, o universo parecerá mutável, mudando constantemente. Mas a realidade é que neste universo temos às vezes mutabilidade e imutabilidade. Não é que a alma, a mente e o corpo sejam três existências separadas; os três constituem um só mecanismo. Uma mesma coisa aparece como corpo, como mente e como o que está além do corpo e mente; mas não é esses três ao mesmo tempo. Quem vê o corpo, não vê sequer a mente; quem vê a mente não vê o que é chamado de alma; e para quem vê a alma, o corpo e a mente se desvanecem. Quem vê movimento, unicamente, nunca vê calma absoluta e para quem vê calma absoluta, o movimento se desvanece. Ao confundir uma corda com uma serpente, para quem acredita na serpente, a corda desaparecerá; uma vez que cessa o erro, vê a corda, e a serpente se desvanece.
Só há uma existência que tudo abarca e aparece como múltiplo. Este eu, ou alma, ou substância, é tudo quanto existe no universo. Tal eu ou substância, ou alma é, na linguagem monista, Brahman, o qual parece múltiplo devido a interposição de nome e forma. Observem as ondas do mar. Nenhuma delas é realmente diferente do mar, mas o que é que faz a onda parecer diferente? Nome e forma; a forma da onda e o nome que lhe damos, ou seja, “onda”. Isso é o que a diferencia do mar. E quando desaparecem o nome e a forma, fica o mesmo mar. Quem pode estabelecer diferença real entre a onda e o mar? Dessa forma, o universo inteiro é essa Existência única; o nome e a forma criaram todas estas diversas diferenças.
Quando o sol brilha sobre milhões de gotículas de água, vemos em cada partícula uma perfeita representação do sol; da mesma forma, a alma uma, o eu único, a existência una do universo, ao refletir-se em todas as numerosas gotas de variados nomes e formas, parecem ser múltiplas. Mas, na realidade, é só uma. Não há nem eu, nem tu, tudo é uno, não é tudo eu, nem tudo tu, a idéia de dualidade, de dois, é inteiramente falsa e o universo inteiro, segundo o conhecemos ordinariamente, é resultado desse falso conhecimento. Quando chega o discernimento e o homem descobre que não há dois, mas um, se dá conta que ele mesmo é este universo. “Sou eu mesmo este universo, tal como existe agora, uma série contínua de mudanças; mais além de todas as qualidades, o eternamente perfeito, o eternamente bendito”.
Por conseguinte, não há mais que um Atman, um Eu eternamente puro, eternamente perfeito, imutável, inalterável. Nunca muda e todas as mudanças do universo não são senão aparências desse Eu único.
Sobre seu nome e forma foram construídos todos estes sonhos; é a forma o que faz a onda diferente do mar. Suponhamos que a onda se acalme, se manterá a forma? Não, se desvanecerá. A existência da onda depende inteiramente da existência do mar; mas esta, de maneira alguma, depende da existência da onda. A forma se mantém enquanto a onda persiste, mas quando esta cessa, a forma se desvanece, não pode se manter. Este nome e essa forma são o resultado do que se chama maia. Maia é o que faz os indivíduos, faz que uns pareçam diferentes dos outros, contudo, maia não tem existência, não se pode dizer que existe. Tampouco não se pode dizer que a forma exista, porque depende da existência de outra coisa, nem se pode dizer que não exista, ao ver que causa todas essas diferenças. Portanto, segundo a filosofia advaita, esta maia ou ignorância (o nome e a forma ou, como se chamou na Europa, tempo, espaço e causa) procede desta Existência infinita una, mostrando-nos a multiplicidade deste universo; mas, em substância, este universo é uno. Enquanto um crê que existem duas realidades fundamentais, está equivocado. Quando chega a se dar conta de que só existe uma, está correto.
Estamos comprovando isto a cada dia no plano físico, no plano mental e também no espiritual. Hoje foi demonstrado que vós e eu, o sol, a lua e as estrelas não são senão nomes diferentes de diversos pontos no mesmo oceano de matéria e que a configuração desta matéria, está mudando constantemente. A partícula de energia que estava no sol há vários meses, pode chamar-se agora de ser humano; amanhã, talvez, esteja em um animal e depois de amanhã em uma planta; está sempre indo e vindo. Tudo é uma massa de matéria infinita, sem solução de continuidade, diferenciada unicamente por nomes e formas. A um ponto o chamamos sol, a outro, lua e a outro, estrelas; a um homem, a outro animal, a outro planta e assim sucessivamente. E todos estes nomes são ficções, não têm realidade, porque tudo é uma massa de matéria que muda continuamente. De outro ponto de vista, este mesmo universo é um oceano de pensamento onde cada um de nós é um ponto, conhecido como mente particular. Cada um de vós é uma mente e eu sou uma mente; o mesmo universo. Visto deste ponto de vista do conhecimento, quando os olhos se livram do engano e a mente se purifica, aparece como o Ser absoluto, inteiro e sempre puro, o imutável, o imortal.
Que ocorre, então, a toda esta tripla escatologia dos dualistas, de que quando o homem morre vai ai céu ou a esta ou a outra esfera e os malvados se tornam fantasmas e se convertem em animais, etc? Ninguém vem e ninguém vai – diz o monista – como podeis ir e vir? Em certa escola estava-se questionando algumas crianças e o questionador havia feito algumas perguntas difíceis, tais como: “Por que a Terra não cai?”. Sua intenção era obter das crianças a idéia de gravitação ou de alguma outra intrincada verdade cientifica. A maioria das crianças não podia nem sequer entender a pergunta; assim deram toda espécie de respostas errôneas, mas uma menininha, mais esperta que os demais, respondeu com outra pergunta: “Onde iria cair?”. Ante tal pergunta do questionador, a mesma parecia sem sentido.
No universo não há em cima, nem embaixo, a idéia é só relativa. A mesma pergunta sobre o nascimento e a morte, em relação à mesma, carece de sentido. Quem vai e quem vem? Onde estamos? Onde está o céu no qual já não estais? O eu do homem é onipresente, onde há de ir? Onde não há de ir? Está em todas as partes. De maneira que todos os sonhos infantis e ilusões pueris de nascimento e morte, de céus superiores e mundos inferiores, se desvanecem imediatamente para os perfeitos; para os quase perfeitos se desvanecem, ao mostrar-lhes as diferentes cenas até o brahmaloka. No entanto, continuam para o ignorante.
Como é que todo o mundo crê em ir ao céu, em morrer e nascer? Estou estudando um livro, página por página; leio uma e viro outra e vem outra página e viro também, o que muda? Quem vai e quem vem? Não eu, mas o livro. A natureza inteira é um livro ante uma alma, lemos páginas após página e de vez em quando começa um novo capitulo – termina e começa outro – prosseguimos lendo; mas a alma é sempre a mesma e eterna. É a natureza que muda, não é a alma do homem, esta nunca muda. O nascimento e a morte estão na natureza, não em vós. Contudo, o ignorante se engana da mesma forma que nos enganamos ao crer que o sol é que se move, e não a terra; da mesma exata maneira cremos que somos nós os que morrermos e não a natureza. Trata-se, por conseguinte, de alucinações; assim como é uma alucinação crer que são os campos que se movem e não o trem, assim também é uma alucinação o nascimento e a morte.
Quando os homens se encontram em certo estado mental, vêem esta existência como a terra, como o sol, a lua e as estrelas; todos os que se encontram no mesmo estado mental, vêem as mesmas coisas. Entre vós e eu, pode haver milhões de seres em planos diferentes de existência. Eles nunca os verão, nem nós a eles, pois vemos unicamente a quem se encontra no mesmo estado mental e no mesmo plano que nós. Só vibram, poderíamos dizer, aqueles instrumentos musicais que estão em uníssono; se o estado de vibração que chamam “vibração-homem” mudar, não se verá mais homens aqui; todo o “homem-universo” se desvaneceria e em seu lugar apareceria ante nossos olhos outro cenário; talvez deuses e o universo-deus ou, talvez, para o malvado, demônios e um mundo diabólico; mas só seriam vistas diferentes de um universo único.
É este universo o que, deste plano humano, se vê como a terra, o sol, a lua e as estrelas e tudo o mais; é este mesmo universo, visto do plano da maldade, como um lugar de castigo. Este mesmo universo é visto como céu por quem quer vê-lo como tal. Quem tem sonhado em contemplar a um Deus sentado em um trono a cantar seus louvores, quando morrer verá simplesmente o que tinham em mente; este universo se converterá em um vasto céu com seres alados de toda espécie, voando e um Deus sentado em um trono. Tais céus são todos criação do homem.
O que o dualista diz é verdade, pois, segundo a advaita, trata-se unicamente de sua própria criação. As várias esferas, os demônios e deuses, as reencarnações e transmigrações, não são senão mitologia, o mesmo que esta vida humana. O grande erro que os homens cometem continuamente, consiste em pensar que só esta vida é verdade. Compreendem perfeitamente quando se chama a outras coisas de mitologia, mas nunca estão dispostos a admitir o mesmo, tratando-se de sua própria convicção. Tal como aparece, o conjunto total resulta, pois, em mera mitologia; a mentira maior de todas é que somos corpos, pois nunca o fomos e nem podemos sê-lo. É a maior mentira que somos meros homens; nós somos Deus do universo. Ao adorar a Deus, estamos sempre adorando a nosso próprio eu oculto.
A pior mentira que se diz a si mesmo, é que nasceu pecador ou malvado. Só é pecador quem considera a outro pecador. Suponhamos que haja um menino aqui e que colocais uma bolsa de ouro sobre a mesa; vem um ladrão e leva o ouro. O menino permanece indiferente, como não tem ladrão dentro de si, tampouco o conhece fora de si. Para os pecadores e homens vis, a maldade está fora, mas não para os seres bons. Ao malvado este universo lhe parece um inferno; o parcialmente bom o vê o vê como o céu e os seres perfeitos o realizam como Deus mesmo. Só neste ultimo caso cai dos olhos o véu, o homem purificado e limpo observa, então, que sua visão muda por completo. Os pesadelos que os torturaram durante milhões de anos se desvanecem todos e quem se considera homem, Deus ou demônio; quem acreditava viver em lugares baixos, em lugares elevados, na terra, no céu e assim por diante, descobre que é realmente onipresente; que o tempo está nele e que ele está no tempo; que todos os céus estão nele e que ele não está em nenhum; que todos os deuses que o homem adora está sempre nele e que ele não está em nenhum desses deuses.
Ele mesmo era o fabricante de deuses e demônios, de homens e plantas, de animais e pedras; para ele agora a natureza real do homem aparece desenvolvida e mais elevada que o céu, mais perfeita que este nosso universo, mais infinita que o tempo infinito, mais onipresente que o éter onipresente. Só assim o homem perde o temor e se torna livre. Então todos os enganos cessam; todas as misérias se desvanecem; todos os temores terminam para sempre. O nascimento desaparece e com ele a morte. As dores se vão e com elas os prazeres; as terras se desvanecem e com elas os céus; os corpos se dissipam e com eles a mente. Para tal homem, o universo inteiro, digamos assim, desaparece. Este contínuo entrechocar-se de forças que superam e lutam constantemente, cessam para sempre; o que se manifestava como força e matéria, como lutas da natureza, como a natureza mesma, como céus e terras, como plantas e animais, como homens e anjos, tudo isso se transfigura em uma existência infinita, contínua, imutável; o homem conhecedor descobre que ele é uno com essa existência. “Assim como as nuvens da variados matizes aparecem no céu, permanecem por um segundo e se desvanecem”, da mesma maneira vêm a esta alma as visões de terras e céus, de luas e deuses, de prazeres e dores; mas todas passam, deixando um firmamento infinito, azul e imutável. Isto nunca muda; as que mudam são as nuvens. É um erro pensar que somos impuros, que somos limitados, que estamos separados. O homem real é a Existência única e una.
Duas perguntas surgem agora; a primeira é “é possível realizar isto? Até aqui só temos doutrina, filosofia, mas é possível realiza-lo?”. Vedes. Vivem, no entanto, homens para os quais o engano se desvaneceu para sempre. Morrem eles imediatamente depois de alcançar tal realização? Não tão logo como acreditamos. Duas rodas unidas por um eixo giram juntas. Se tomo uma das rodas e com um machado corto o eixo, a roda que quebrei pára, mas a outra que tomou impulso, segue girando durante um tempo e logo cai. Este ser perfeito e puro, ou seja, a alma, é uma das rodas; e esta alucinação externa de corpo e mente é a outra roda, ambas unidas pelo eixo do trabalho, do carma. O conhecimento é o machado que corta o enlace entre os dois; a roda da alma se detém, cessa de crer que vai e vem, que vive ou morre; deixa de pensar que vive e morre; deixa se pensar que é a natureza, que tem necessidades e desejos; e descobre que é perfeita e carece de desejos.
Mas sobre a outra roda, a do corpo e mente, pesa o impulso de atos passados; de maneira que viverá por algum tempo até que esgote o impulso das ações anteriores e perca a força; então o corpo e a mente caem e a alma fica livre. Já não haverá mais ir ao céu ou vir dele; tampouco ir ao brahmaloka ou a alguma das esferas superiores, porque aonde irá e de onde virá? O homem que alcançou nesta vida tal estado, para quem, nem sequer por um minuto, mudou a visão corrente do mundo e a realidade tem sido aparente, é chamado de “vivente livre”. Tal é a meta do vedantista, ou seja, alcançar liberdade enquanto vive.
Certa vez, na Índia Ocidental, eu viajava pela região deserta sobre a costa do Oceano Índico. Andava dias e dias a pé pelo deserto e, com surpresa via, todos os dias, belos lagos rodeados de árvores e o reflexo destes, invertidos, oscilantes sobre as águas. Dizia a mim mesmo: “Quão maravilhoso parece tudo isto, e o chamam deserto!”. Durante quase um mês viajei vendo tão maravilhosos lagos, árvores e plantas. Um dia, senti muita sede e quis beber água; dirigi-me a um dos lagos, transparentes e belos, mas ao aproximar-me, desvaneceu-se. Como um relâmpago, surgiu em mim a idéia: “Este é o reflexo sobre o qual tenho lido toda minha vida”, ao mesmo tempo compreendei, também, que durante todo o mês, a cada dia, estive vendo o reflexo, sem dar-me conta disso. Na manhã seguinte recomecei minha marcha, apresentou-se o lago, mas com ele veio também a idéia de que era um reflexo e não um lago verdadeiro.
O mesmo ocorre com este universo. Viajamos no reflexo do mundo, dia após dia, mês após mês, anos após anos, sem saber que é um reflexo. Um dia desaparecerá, mas voltará outra vez; o corpo há de permanecer sob o poder do carma passado; de maneira que o reflexo se reproduzirá. Este mundo voltará a nós enquanto estivermos ligados pelo carma. Homens, mulheres, animais, plantas, nossos apegos e deveres, todos voltarão a nós, mas não com o mesmo poder; sob a influência de novos conhecimentos, a força do carma se debilita e seu veneno desaparece. Transformar-se á, porque saberemos, então, que o conhecemos; que sabemos a diferença exata entre a realidade e o reflexo.
Depois disso, este mundo já não será o mesmo de antes. No entanto existe um perigo. Vemos em todos os países pessoas que adotam a filosofia e dizem: “Eu transcendi as virtudes e os vícios, portanto não estou ligado por nenhuma lei moral, posso fazer o que quiser”. Encontrarão neste país e nestes tempos, muitos tolos que afirmam: “Não estou sujeito, sou Deus, deixa-me fazer o que gosto”. Isto não é correto, embora seja verdade que a alma está mais além de todas as leis físicas, mentais ou morais. Dentro da lei há exceções, além da lei, há liberdade. Também é verdade que a liberdade é natural para a alma; é seu direito de nascimento; a verdadeira liberdade da alma resplandece através dos véus da matéria; a percebemos como liberdade aparente do homem. Em todos os instantes de vossa vida sentis que sois livres. Não podemos viver, falar ou respirar nem um momento, sem sentir que somos livres; mas ao mesmo tempo, se refletirmos um pouco, veremos que somos como máquinas, não livres.
Qual é a verdade, então? A idéia de liberdade é um engano? Uns sustentam que sim, outros dizem que o engano está na idéia de sujeição. Como acontece isto? O homem é realmente livre; o verdadeiro homem não pode ser senão livre; mas ao vir ao mundo de maia, de nome e forma, fica ligado. Livre arbítrio é um termo inapropriado. A vontade nunca pode ser livre. Como pode sê-lo? A vontade só nasce quando o homem real fica ligado e não antes. A vontade do homem está sujeita, mas aquele em que a vontade se aprofunda, permanece eternamente livre. De maneira que o estado de sujeição que chamamos vida humana ou vida divina, na terra e no céu, persiste em nós a recordação da liberdade, que é nossa por direito divino e consciente ou inconscientemente, lutamos por reconquista-la. Quando um homem alcança sua própria liberdade, como pode estar sujeito a alguma lei? Nenhuma lei neste universo pode sujeita-lo, porque este universo é seu.
Ele é o universo inteiro, podeis afirma-lo assim, ou expressar que para ele não há universo. Como pode, então, ter todas essas míseras idéias sobre o sexo e sobre o país? Como pode dizer: eu sou homem, sou mulher, sou criança? Não são mentiras? Sabe que são. Como pode dizer que estes são direitos do homem e estes outros direitos da mulher? Ninguém têm direitos; nada existe separadamente. Não há nem homem nem mulher; a alma não tem sexo; é eternamente pura. É mentira dizer: “Eu sou um homem ou uma mulher”, ou “pertenço a este país ou a outro”. Todo o mundo é meu país; o universo inteiro é meu porque me revesti dele, tomando-o como corpo. Na obstante, vemos pessoas aceitando esta doutrina e que, contudo, fazem coisas que bem podemos chamar de sujas; se lhes perguntarmos por que as fazem, nos respondem que estamos enganados e que eles não podem fazer nada de ruim. Qual é a prova pela qual temos de julga-los?
Veja aqui: Embora ambos, o bem e o mal sejam manifestações condicionadas da alma, a alma é o revestimento externo e o bem é o interno, o mal cerca o homem real, ou seja, o Eu. Salvo que o homem trespasse a capa do mal, não pode chegar ao bem e enquanto não transpasse as duas capas, a do bem e a do mal, não pode chegar ao Eu. A quem alcançou o Eu, que lhe fica aderido? Um pouco de carma, uma pequena porção de impulso da vida passada, mas tudo isso é bom impulso. Até que o mau impulso esteja inteiramente gasto e as impurezas passadas estejam queimadas totalmente, nenhum homem pode ver e realizar a verdade. De maneira que o que fica aderido ao homem que chegou ao Eu e viu a verdade, é o resto de boas impressões da vida passada; vale dizer, o bom impulso. Embora viva no corpo e trabalhe incessantemente, sua atividade é só para o bem, seus lábios pronunciam bênçãos para todos, suas mãos executam boas obras unicamente, sua mente só tem bons pensamentos, onde quer que vá, sua presença é uma bênção vivente. Tal pessoa, com somente sua presença, embora não fale, será uma bênção para a humanidade. Pode tal ser fazer algum mal, pode cometer atos de maldade?
Existe uma enorme diferença, como deveis recordar, entre realização e mero palavreado. Qualquer tolo pode falar; até os papagaios falam; falar é uma coisa e realizar é outra. As filosofias e doutrinas, os argumentos, os livros, as teorias, as seitas, todas estas coisas são boas a seu modo; mas quando se alcança a realização, todas elas desaparecem. Por exemplo, os mapas são bons, mas quando se percorre ao país e olha depois os mapas, encontra uma grande diferença. Assim também quem realizou a verdade não necessita, para compreende-la, do racionalismo da lógica, nem de toda a ginástica do intelecto. Aquele é, para eles, a vida de suas vidas, concretizada, mais tangível. Como dizem os sábios da vedanta; “é como fruto em vossa mão; podeis levanta-los e dizer: ‘Aqui está’. Assim também quem realizou a verdade, se levantará para dizer: ‘Aqui está o Eu’”. Embora discutais com ele um ano inteiro, sorrirão; considerarão tudo como uma falação infantil e deixarão que a criança continue falando; realizaram a verdade e estão satisfeitos.
Suponhamos que vistes um país e que vem alguém e trata de argumentar que tal país nunca existiu; poderá argüir indefinidamente sem alterar vossa atitude mental, que será a de que tal indivíduo está pronto para o manicômio. Da mesma maneira o homem que realizou disse: “Toda esta falácia mundana sobre as pequenas religiões é vão palavreado; a realização é a alma, a essência da religião”. A religião se pode realizar, estais preparados para isto, o quereis? Alcançareis a realização se os proporeis e então sereis verdadeiramente religiosos. Enquanto não alcançareis tal realização, não há diferença alguma entre vós e os ateus. O ateu é sincero, mas não o é quem diz que crê na religião e nunca intenta realiza-la.
A pergunta seguinte é: que vem depois da realização? Suponhamos que realizamos esta unidade do universo, que somos esse Ser Uno Infinito; suponhamos, ademais, que realizamos que este Eu é a existência única, que o mesmo Ser que se manifesta em todas estas formas fenomenais, que nos acontece, então? Temos que ficar inativos, sentados em um canto e morrermos? Que beneficio traria isto ao mundo? Veja esta questão! Em primeiro lugar, por que deveria fazer bem ao mundo? Há alguma razão para isto? Que direito tem alguém de perguntar sobre que beneficio trará isto ao mundo? O que se quer dar a entender com isso? Uma criança gosta de doces. Suponha que estais realizando investigações em relação a algum tema de eletricidade e uma criança pergunta: “Se compra doces com isto?”. “Não”, respondeis. “Então, para que serve?”, responde o menino. Assim os homens se levantam e pergunta: “Que beneficio trará isto ao mundo? Nos dará dinheiro?”. “Não”. “Então, que beneficio terá?”. Isto é o que os homens entendem por fazer bem ao mundo.
Contudo, a realização religiosa é a que mais bem faz ao mundo. As pessoas temem que quando a alcançarem, quando se derem conta de que há só Uno, se secarão os mananciais do amor, que tudo na vida desaparecerá, que tudo o quanto amem se desvanecerá, por assim dizer, tanto nesta vida como na outra. Nunca se detêm a refletir que quem pensa menos em sua própria individualidade, têm sido os maiores obreiros para o mundo. O homem só ama quando descobre que o objeto de seu amor não é uma coisa vil, pequena, nem mortal; só amam quando compreende que o objeto de seu amor não é um torrão de terra, senão o mesmo e verdadeiro Deus.
A esposa amará mais o esposo quando pensar que este é Deus; o esposo amará mais a esposa quando souber a mesma verdade. A mãe amará mais aos filhos quando pensar e ver Deus neles; o homem amará seu maior inimigo quando souber que tal inimigo é Deus; o homem amará o santo porque saberá que o Santo é Deus e amará também o homem menos santo, porque saberá que no fundo do mais ímpio dos homens, está o Senhor. Tal homem se converterá em propulsor deste mundo; para ele morrerá o pequeno eu e Deus tomará seu lugar. O universo inteiro ficará transfigurado para ele; o doloroso e mísero se desvanecerá completamente, as lutas cessarão. Em vez de um cárcere, onde lutamos, pelejamos e competimos por um bocado de pão, este universo se converterá, para nós, em um campo de jogo. Belo será, então, este universo! Só um homem assim pode levantar-se e exclamar: Quão belo é este mundo! Só tem o direito de dizer que tudo é bom.
O grande bem resultante para o mundo de tal realização será que, em vez de continuar a fricção e os choques, quando a humanidade compreender que embora só seja parcial esta verdade, o aspecto do mundo inteiro mudará e em vez de lutas e discussões, teremos o reino da paz; se desvanecerá do mundo a indecorosa e brutal pressa que nos impulsiona a adiantarmo-nos aos demais; desaparecerá para sempre toda luta, todo ódio, toda inveja e todo o mal.
Então os deuses na terra e ela mesma se converterão em um céu e que mal poderá existir onde deuses julgam, trabalham e se amam com deuses? Tal é a grande utilidade da realização divina. Tudo quanto vedeis na sociedade ficará mudado e transfigurado; já não pensareis que o homem é mau, o qual é uma grande vantagem; já não lançareis uma olhada depreciativa ao pobre homem ou mulher que haja cometido algum erro. Vós, senhoras, já não olhareis com depreciação a pobre meretriz que de noite percorre as ruas, porque vereis até nela Deus; já não pensareis em ciúme e castigos. Tudo isso de desvanecerá e o amor, o grande ideal do amor, será tão potente que já não serão necessários nem o chicote, nem a corda, para conduzir a humanidade pelo caminho reto.
Se uma milionésima parte dos homens e mulheres que vivem neste mundo se sentarem, silenciosamente, durante uns minutos por dias e disserem: “Sois todos Deus, vós homens e vós animais e seres viventes. Todos sois manifestações da Deidade única vivente”, o mundo inteiro mudaria em meia hora. Em vez de lançar enormes granadas de ódio por todos os cantos, em vez de chamar correntes de ciúmes e de maus pensamentos, as pessoas em cada país pesariam que tudo é Ele. Ele é tudo o que vedes e sentis. Como podeis ver o mal, a menos que o mal esteja em vós? Como podeis ver o ladrão, se não o levais no coração de vosso coração? Como podeis ver o assassino sem ser vós mesmos o assassino? Sois bons e o mal se desvanecerá para vós. Então mudará o universo inteiro; esta é a ganância maior para a sociedade e para o organismo humano.
Estas idéias foram pensadas e desenvolvidas na Índia em tempos antigos. Diversas razões, tais como os exclusivismos dos instrutores e as conquistas estrangeiras, impediram que se difundissem. Não obstante, são grandes verdades e onde quer que tenham sido aplicadas, o homem chegou a ser divino. Minha vida inteira eu mudei ao contato de um desses homens divinos, acerca do qual vou lhes falar no próximo domingo. Aproxima-se o tempo em que estas idéias se difundirão por todo o mundo; em vez de estar encerradas em monastérios e em livros de filosofia para serem estudadas pelos eruditos; em vez de ser possessão exclusiva de seitas e uns poucos estudiosos, estas idéias serão semeadas aos quatro ventos, de maneira que venham a ser propriedade comum do sábio e do ignorante. Então impregnarão a atmosfera do mundo e o mesmo ar que respiramos dirá em cada uma de suas pulsações: “Tu és Isso”. E o universo inteiro, com suas miríades de sóis e luas, por meio de tudo o quanto fala, exclamará a uma só voz: “Tu és Isso”.
“O IDEAL DE UMA RELIGIÃO
UNIVERSAL”
(Como deve abarcar
diferentes tipos de mentes e métodos)
Swami
Vivekananda
Até onde alcançam nossos sentidos e nossa faculdade imaginativa, achamos a ação e reação de duas forças que, ao resistir-se mutuamente, engendram a perpetua variedade de fenômenos que nos rodeiam ou que ocupem nossa mente. No mundo externo, a ação destas forças opostas se expressa como atração e repulsão e como força centrifuga e centrípeta, e no interno, como amor e ódio, bem e mal. Afastamos umas coisas e atraímos outras. Somos atraídos por algumas coisas e afastados por outras. Sem razão alguma, nos sentimos muitas vezes atraídos, por assim dizer, para certas pessoas e outras vezes experimentamos repulsão. Isto é evidente para todos e quanto mais elevado é o campo de ação, tanto mais potente, tanto mais notável é a influência dessas leis opostas.
Sendo a religião o plano mais elevado do pensamento e a vida humana nele, observamos, em sua potência máxima, a ação dessas duas forças. Da religião surgiu o amor mais intenso e o ódio mais diabólico que conheceu a humanidade. As mais nobres palavras de paz que o mundo jamais ouviu, foram pronunciadas por homens do plano religioso e as mais amargas acusações que conheceu o universo, foram proferidas por homens religiosos. Quanto mais elevado é o objeto de uma religião e quanto mais sutil sua organização, tanto mais notáveis são suas atividades. Nenhum motivo humano fez derramar tanto sangue como a religião; nenhum outro fator, tampouco, fundou tantos hospitais e asilos para pobres; nem cuidou e protegeu na mesma forma não somente o ser humano, mas também aos animais. Nada nos torna tão cruéis como a religião, nem nada tão ternos quanto ela. Assim aconteceu no passado e com toda a probabilidade, acontecerá também no futuro. Contudo surgem, de vez em quando, potentes vozes que, oprimindo o clamor de lutas e contendas de ódio e inveja entre religiões e seitas, conseguem fazer-se ouvir de um a outro pólo e proclamam a paz e a harmonia. Reinarão estas, algum dia?
Pode chegar a reinar uma completa harmonia neste plano de poderosa luta religiosa? Ao final deste século, o mundo se sente preocupado pelo problema da harmonia; a sociedade propõe novos projetos e intenta realiza-los, mas bem sabemos o quanto é difícil converte-los em realidade. As pessoas descobrem que é quase impossível mitigar a fúria da luta pela vida, suavizar a tremenda tensão nervosa latente no homem. Agora, se é tão difícil alcançar a paz e a harmonia no plano físico da vida – seu aspecto externo, tangível e corporal – mil vezes mais difícil será conseguir que a paz e a harmonia reinem na natureza interna do homem. Quisera pedir-vos que, durante uns instantes, procureis evadir-se da rede das palavras. Desde nossa infância temos ouvido falar de amor, paz, caridade, igualdade e fraternidade universais; mas estas palavras carecem de sentido para nós; as repetimos como papagaios e até nos parece lógico que assim seja. Não podemos evitar.
As pessoas quem primeiro sentiram brotar em seus corações tão magnos conceitos, originaram estas palavras. Naquele tempo, muitos compreendiam seu significado; mas mais adiante, os ignorantes as adotaram para entreter-se com elas, fazendo da religião um mero jogo de vocábulos. Assim, esta deixou de ser algo que deve se praticar, para converter-se na “religião de meu pai”, “a religião de nossa pátria”, “a religião de nosso país” e assim sucessivamente. Ao professar uma religião qualquer, tornou-se uma simples fase do patriotismo e o patriotismo é sempre parcial. Não se pode conseguir facilmente a harmonia das religiões; no entanto, estudemos este problema.
Vimos que cada religião consta de três partes (me refiro a todas as grandes religiões conhecidas). A primeira, a filosofia, representa o alcance total dessa religião, estabelecendo seus princípios básicos, a meta e os meios de alcança-la. A segunda, a mitologia, é a filosofia concretizada; consiste de leituras relativas as vidas de homens e de seres sobrenaturais. A terceira, de ritos e cerimônias; diversas atitudes e posturas, flores e incenso e muitas outras coisas que atraem aos sentidos. Nisto consiste o ritual.
Observamos que todas as religiões reconhecidas possuem esses três elementos e que algumas dão mais importância a um deles e outras, de outro.
Consideremos, agora, a primeira parte, a filosofia. Existe uma filosofia universal? Todavia não. Cada religião apresenta suas próprias doutrinas e insiste em que são as únicas verdadeiras e não contente com isso, afirma que quem não crê nisso, irá para certos lugares horríveis. Há quem chega a desembainhar a espada para obrigar a todos a crerem como ele. Isto não se deve a maldade, mas a uma enfermidade particular do cérebro humano, denominada fanatismo. Os fanáticos são muito sinceros, os seres humanos mais sinceros, mas são tão irresponsáveis como qualquer lunático. Esta enfermidade do fanatismo é uma das mais perigosas, pois desperta toda a maldade da natureza humana, excita a ira, exacerba os nervos e convertem em tigres os seres humanos.
Existe alguma semelhança ou harmonia entre as mitologias e as diversas religiões? Há alguma mitologia universal que seja aceita por todos? Não, certamente. Cada uma possui sua própria mitologia e diz: “Meus relatos não são simples mitos”. Tratemos de compreender o problema, ilustrando-o não pretendo censurar religião alguma. Só desejo ilustrar.
Os cristãos crêem que Deus assumiu a forma de uma pomba e desceu à terra; para eles isto é historia, não mitologia. O hindu crê que Deus se manifesta na vaca. Os cristãos chamam a esta crença de simples mitologia; dizem que é superstição e não um feito histórico. Opinam os judeus que se fabricarem uma caixa ou arca com um anjo de cada lado, podem coloca-la em um santuário e será sagrada para Jeová; mas se vêem uma formosa imagem sagrada com forma humana, exclamam: “Este é um símbolo horrível, desprezível!”. Tal é nossa unidade na mitologia! Se um homem se levanta e afirma: “Meu profeta fez tal e qual coisa maravilhosa”, outros dirão: “Isso é só superstição”, mas ao mesmo tempo, dizem que seu profeta fez coisas até mais maravilhosas, que sustentam serem históricas. Nada é conhecido, até agora, capaz de descobrir a sutil distinção que esses cérebros estabelecem entre a historia e a mitologia. Todas essas histórias, seja qual for a religião a que pertencem, as verdadeiramente mitológicas, talvez estejam mescladas ocasionalmente com um pouco de história.
Logo vieram os rituais. Uma seita possui uma forma particular de ritual, o considera sagrado e julga que os rituais de outras seitas constituem grotescas superstições. Se uma seita adora uma espécie peculiar de símbolo, outra diz: “Oh, é horrível!”. Tomemos como exemplo uma forma geral de símbolo. O falo é certamente um símbolo sexual, mas este aspecto gradualmente tem sido esquecido e agora simboliza o Criador. As nações que o têm como símbolo, nunca pensam nele como falo, senão simplesmente como símbolo. Mas um indivíduo de outra raça ou credo, só vê o falo e o condena; contudo, ao mesmo tempo pode estar fazendo algo que, aos chamados adoradores fálicos, parece horripilante.
Tomarei dois pontos para ilustração: o símbolo do falo e o sacramento dos cristãos. Para os cristãos o falo é horrível; para os hindus o é o sacramento cristão, pois dizem que matar um homem, comer sua carne e beber seu sangue, é canibalismo. Isto é o que fazem algumas tribos selvagens; quando julgam um guerreiro valente, o matam e devoram seu coração, porque pensam que isso lhes trará as qualidades de coragem e bravura daquele que as possuía. Admito até que um devoto como Sir John Lubbock sustente que esse símbolo cristão provém daquele costume selvagem. Não admitem tal teoria os cristãos, por certo, nem pensam jamais no que pode implicar esse símbolo. Representa, para eles, uma idéia sagrada e não querem saber mais. De modo que nem nos rituais existe um símbolo universal que mereça aceitação geral.
Onde achar, então, a universalidade? Como conseguir uma forma universal de religião? No entanto, já existe. Vejamos em que consiste.
Todos temos ouvido falar da fraternidade universal e de como surgem as sociedades para prega-la. Recordo uma velha história. Na Índia se considera muito mal beber vinho. Havia os irmãos que uma noite quiseram beber vinho em segredo enquanto seu tio, um homem muito ortodoxo, estava dormindo em um quarto contíguo. Antes de começar a beber, disseram: “Guardemos silêncio para que nosso tio não desperte”. Enquanto bebiam, continuavam repetindo uns aos outros: “Silêncio, nosso tio vai despertar!” e cada qual tratava de calar a voz do outro, gritando com mais força. O último acordou o tio que levantou e os surpreendeu. Agora, todos gritamos como esses ébrios: “Fraternidade universal! Todos somos iguais; portanto, formemos uma seita”. Tão logo como se forma uma seita, se protesta contra a igualdade e a igualdade deixa de existir. Os maometanos falam de fraternidade universal, mas que há disso, na realidade? Que todos os que não sejam maometanos não terão admissão na irmandade e o mais provável, se a mão vem, é a que degola. Os cristãos também falam de fraternidade universal, mas os que não são cristãos irão parar num lugar onde assará eternamente.
E assim ocorre neste mundo quando buscamos a fraternidade e igualdade universais. Quando ouvistes essas palavras, rogo-lhes que sejais mais cautelosos e tenhais cuidado, porque todo esse palavreado oculta o mais intenso egoísmo. “No inverno aparece, às vezes, uma nuvem carregada de tormenta; troveja continuamente, porém, não chove; mas na estação chuvosa as nuvens não se deixam ouvir, mas inundam toda a terra”. Da mesma maneira, aqueles que são realmente trabalhadores e sentem realmente, de coração, a fraternidade universal do homem, não falam muito, não formam pequenas seitas em prol da fraternidade universal; mas seus atos, movimentos, sua vida toda, demonstram claramente que possuem, na verdade, o sentimento de fraternidade para a humanidade e que sentem amor e simpatia para com todos. Não falam; fazem e vivem. No mundo abunda demasiada fanfarronice. Necessitamos de mais trabalho eficiente e menos falatório.
Estamos vendo o quanto é difícil achar características universais e, contudo, sabemos que existem. Todos nós somos seres humanos, mas somos todos iguais? Não, com certeza. Quem disse que somos iguais? Somente os loucos. São acaso idênticos nossos cérebros, nossas forças, nossos corpos? Um homem é mais forte que o outro; um possui mais potencialidade mental que outro. Se todos fôssemos iguais, por que existe esta desigualdade? Quem a fez? Nós. Porque possuímos mais ou menos poderes, mais ou menos cérebro, mais ou menos força física, estabelecemos diferenças entre nós.
Sabemos, no entanto, quão querida nos é a doutrina da igualdade. Todos somos seres humanos, mas uns são homens e outros são mulheres. Aqui há um negro, ali um branco, mas todos pertencem a uma mesma humanidade. Nossos rostos são distintos, não vejo dois iguais; no entanto somos todos seres humanos. Onde está esta única humanidade? Vejo homens e mulheres, ruivos e morenos e contemplando todos esses rostos, sei que existe uma humanidade abstrata comum a todos eles. Posso não encontra-la quando trato de pegá-la, de senti-la e de materializa-la. Contudo, decerto sei que está ali. Se estou completamente seguro de algo, é de que esta humanidade é comum a todos. Mediante esta abstração, os vejo como homem ou mulher. Assim sucede com esta religião universal que corre através de todas as religiões do mundo na forma de Deus; que deve existir e existe por toda a eternidade. “Eu sou o fio que passa através de todas estas pérolas”. Cada pérola é uma religião ou algumas seitas, e o Senhor é o fio que as atravessa todas; só que a maior parte da humanidade é inconsciente disso.
Unidade na variedade é o plano do universo. Todos somos homens e, no entanto, somos distintos uns dos outros. Como parte da humanidade, sou um de vós, e como o senhor Fulano de Tal, sou diferente. Como homens, sois diferentes da mulher, mas como seres humanos, sois idênticos a ela. Como homens, estais separados do animal, mas como seres vivos, homem, mulher, animal e planta, todos sois uno, e como existência sois uno com todo o universo. Essa existência universal é Deus, a unidade final no universo. Nele, todos somos um. Ao mesmo tempo, sempre deverão existir estas diferenças na manifestação. Em nosso trabalho, em nossas energias, estas diferenças, tal como se manifestam no exterior, devem perdurar eternamente. Por conseguinte, se a religião universal significa que a humanidade inteira deve acreditar em um só grupo de doutrinas, isso é completamente impossível.
Na pode ocorrer tal coisa, nem chegará jamais o dia em que todos os rostos sejam iguais. Assim, pois, também é impossível que exista uma mitologia universal, nem um ritual universal. Tal estado de coisas nunca pode chegar a existir; se alguma vez acontecer, o mundo seria destruído, porque a variedade é o primeiro princípio da vida. Que faz de nós seres com formas? As diferenças. O equilíbrio perfeito significaria nossa destruição. Suponha que a quantidade de calor que há nesta sala, cuja tendência é para a difusão igual e perfeita, alcançasse tal difusão, esse calor praticamente deixaria de existir. A que se deve o movimento do universo? Ao desequilíbrio. A uniformidade de uma igualdade absoluta só pode produzir-se mediante a destruição do universo; de outro modo é impossível. Não só isso, senão que seria perigoso tê-la. Não devemos desejar que todos pensemos do mesmo modo. Então não haveria em quê pensar. Todos seriamos idênticos, como as múmias egípcias em um museu, olhando-nos uns aos outros e sem ter em que pensar, justamente esta diferença, esta diferenciação, esta perda de equilíbrio entre nós, constitui a alma de nosso progresso e de todos nossos pensamentos. Isto deve ser sempre assim.
Que quero dizer, então, ao me referir ao ideal de uma religião universal? Não pretendo significar alguma filosofia ou ritual universal, igualmente sustentados por todos, porque sei que este mundo, esta intrincada máquina, supercomplexa e assombrosa, deve seguir funcionando com todas suas engrenagens. Então, que nós podemos fazer? Podemos marchar suavemente, diminuir a fricção, lubrificar as engrenagens, por assim dizer. Como? Reconhecendo a necessidade natural da variação. Devemos aprender que a verdade pode ser expressa de cem mil maneiras e que cada uma delas é certa, até certo ponto. Devemos aprender que a mesma coisa pode ser vista de cem pontos de vista diferente e continuar sendo, contudo, a mesma coisa.
Tomemos o sol como exemplo. Suponhais que um homem olha o sol da terra, quando se levanta pela manhã; vê uma grande esfera. Imaginais que começa uma viagem para o sol e leva consigo uma máquina fotográfica, tirando fotografias em cada etapa de sua viagem até que chega ao sol. As fotografias serão distintas umas das outras; quando regressar, parecerá que traz fotografias de outros tantos sóis e, contudo, sabemos que foi o mesmo sol o fotografado nas diferentes etapas da viagem.
Assim acontece com o Senhor. Seja por meio da alta ou baixa filosofia, por meio da mais exaltada ou da mais tosca mitologia, mediante o mais refinado ritualismo ou o mais notório fetichismo, toda seita, toda alma, toda nação, consciente ou inconscientemente, luta por elevar-se para Deus; quanta visão da verdade alcança o homem, é uma visão Dele e de ninguém mais.
Suponhais que vamos todos para um lago levando vasilhas para buscar água. Um leva uma taça, outro jarra, outro um cubo e assim sucessivamente e enchemos nossos recipientes. A água, em cada caso, toma naturalmente a forma do recipiente. O que traz a taça, leva a água em forma de taça, a água da jarra adquire a forma de jarra e assim sucessivamente; mas em cada caso é somente água o que há na vasilha. Assim acontece no caso da religião; nossas mentes se parecem com estas vasilhas e cada um de nós procura realizar Deus. Deus é como a água que enche nossas distintas vasilhas e em cada uma delas, a visão de Deus adquire a forma da vasilha. No entanto, Ele é Uno, é Deus em cada caso. Tal é nossa única possibilidade de reconhecer a universalidade.
Até aqui tudo marcha bem teoricamente, mas existe algum modo de resolver praticamente esta harmonia das religiões? Aceitar como verdadeiros os diversos conceitos das religiões, é coisa antiqüíssima. Na Índia, am Alexandria, na Europa, na China, no Japão, no Tibet e ultimamente na América, tem-se efetuado centenas de tentativas para formular um credo religioso harmonioso, para conseguir com que todas as religiões se unam no amor. Todas fracassaram porque não adotaram nenhum plano prático. Mesmo quem admitiu que todas as religiões do mundo estão certas, não ensinaram um modo prático de uni-las, de modo a que cada uma possa manter sua própria individualidade.
Só resulta prático o plano que não destrói a individualidade de nenhum homem na religião e, ao mesmo tempo, lhe mostra um ponto de união com as demais. Mas até agora todos os planos de harmonia religiosa que se ensaiou, enquanto propunham admitir todas as diferentes fases da religião, trataram na prática de reduzi-las a umas poucas doutrinas produzindo, assim, mais seitas novas que se combatem, lutam e arremetem-se umas contra as outras.
Eu também tenho meu pequeno plano. Não sei se resultará eficaz. Quero expô-lo para discuti-lo. Em que consiste?
Em primeiro lugar eu pediria a humanidade que reconhecesse a seguinte máxima: “Não destruirás”. Os reformadores iconoclastas não fazem bem algum ao mundo. Não destruirás, não derrubarás nada, construís. Ajudai se podeis; se não podeis, cruzeis os braços e contempleis as coisas que acontecem. Quando menos não causeis dano, se não podeis prestar ajuda. Não contradigais opiniões, se são sinceras.
Logo, tomais o homem onde está e desde ali, o impulsionais para cima. Se for verdade que Deus é o centro de todas as religiões e que cada um de nós avança para Ele ao longo de um destes raios, por força devemos todos alcançar este centro. Quando chegarmos ali, a esse ponto onde convergem todos os raios, cessaram nossas diferenças, mas até então, devem subsistir. Todos os raios convergem ao mesmo centro. Segundo sua natureza, um viaja por uma dessas linhas e outros por outra e se todos avançamos seguindo nossa própria linha, chegaremos seguramente ao centro porque: “Todos os caminhos levam a Roma”.
Cada um de nós cresce e se desenvolve de acordo com sua própria natureza; cada qual chegará a seu tempo a conhecer a verdade mais elevada, porque depois de tudo, os homens devem ser seus próprios mestres. Que podemos fazer, vós e eu? Vós credes serem capazes de ensinar sequer a uma criança? Não podeis. A criança ensina a si mesmo. Vosso dever consiste em proporcionar oportunidades e eliminar obstáculos. Uma planta cresce. Sois acaso vós quem as fazes crescer? Vosso dever consiste em protege-la com algum cercado para que nenhum animal a coma. Aí termina vosso dever. A planta cresce por si mesma. O mesmo acontece quando se refere ao desenvolvimento espiritual de cada ser humano. Ninguém pode ensina-los, ninguém pode fazer de vós homens espirituais, tereis que ensinar a vós mesmos, vosso crescimento deve vir e dentro.
Que pode fazer um mestre externo? Tirar alguns obstáculos; aí termina seu dever. Portanto, ajudais se podeis, mas não destruais. Abandona toda idéia de que vós podeis tornar os homens espirituais. Isso é impossível. Tereis um só mestre; vossa própria alma. A reconheceis. Que ocorrerá, então? Na sociedade vemos muitas naturezas diferentes, milhares e milhares de variedades de mentes e inclinações. É impossível uma generalização cabal de todas elas, mas para nossos fins práticos, não basta subdividi-las em quatro classes.
Primeiro está o homem ativo, o trabalhador; deseja trabalhar e possui tremenda energia em seus nervos e músculos. Seu objetivo é trabalhar; construir hospitais, fazer obras caritativas, abrir ruas, planejar e organizar.
Depois existe o homem emotivo, que a ma excessivamente o sublime e o formoso; o deleita pensar na beleza, gozar da estética da natureza e adorar o Amor e o Deus do Amor. Ama de todo coração as grandes almas e as encarnações terrenas e Deus; não lhe importa que a razão possa não comprovar a existência de Cristo ou de Buda; tampouco se preocupa as a data exata em que se pregou o Sermão da Montanha ou o momento exato do nascimento de Krishna; lhe interessa as personalidades, suas figuras, dignas de serem amadas. Tal é sua idéia. Esta é a natureza do amante, o homem emotivo.
Depois está o místico, cuja mente quer analisar seu próprio eu, compreender o funcionamento da mente humana, quais são as forças que trabalham dentro e como conhece-las, manipula-las e controla-las, esta é a mente mística.
Em seguida está o filósofo, que quer pesar tudo e usar o intelecto até mais além do alcance da filosofia humana.
Agora, uma religião, para satisfazer a maioria da humanidade, deve ser capaz de ministrar alimento a todos estes diferentes tipos de mentes e quando falta essa capacidade, as seitas existentes se tornam unilaterais. Supondes que recorreis a uma seita que predica o amor e a emoção. Seus fiéis cantam, choram e pregam o amor; mas apenas lhes diz: “Amigos meus, está muito bem, mas eu quero algo mais forte que isso, um pouco de razão e de filosofia; desejo compreender as coisas passo a passo e mais racionalmente”. “Retira-os”, os respondem, e só isso, pois se pudessem, os enviariam a outro lugar. O resultado é que aquela seita só pode ajudar as pessoas de um tipo de mente emocional; não só não ajudam aos demais, mas que procuram destruí-los e, pior ainda, não crêem em sua sinceridade.
Assim mesmo há filósofos que falam da sabedoria da Índia e do oriente e empregam grandes termos psicológicos de cinqüenta silabas de extensão, mas se um homem comum como eu acorre a um deles e lhe pergunta: “Pode dizer-me algo para fazer-me espiritual?”, a primeira coisa que fará será sorrir e responderá: “Seu intelecto é muito inferior ao nosso; que tu podes compreender de espiritualidade?”. Estes são filósofos envaidecidos. Limitam-se a mostrar-nos a porta.
Em seguida estão as seitas místicas que dizem toda espécie de coisas sobre os diferentes planos de existência, dos diversos estados mentais, do que pode fazer o poder da mente, etc., e se sois um homem comum e disser: “Mostre-me algo bom que possa eu fazer, não sou muito aficionado pela especulação, podeis oferecer-me algo que seja apropriado?”. Esses sectários sorrirão e dirão: “Escuta a este tolo; não sabe nada, sua existência é inútil”. E assim acontece por onde quer que se busque. Gostaria de conseguir partidários estritos de todas estas seitas, encerra-los em um quarto e fotografar seus belos sorrisos de escárnio!
Em tais condições se acham atualmente a religião e as coisas. O que desejo difundir é uma religião igualmente aceitável a todas as mentes; eqüitativamente emocional, mística, filosófica e igualmente condizente à aceitação. Se professores chegam dos colégios, homens de ciência e físicos, buscariam a razão; que tenham quantas queiram. Haverá um ponto mais além do qual pensarão que não podem ir sem romper com a razão. Dirão: “Estas idéias de Deus e da salvação são superstições; abandone-as”. Eu lhes respondo: “Senhor filósofo, vosso corpo é uma superstição maior, abandone-o, não vades a vossa casa para comer ou a vossa cátedra de filosofia. Abandoneis o corpo e se não podeis, desistais”. A religião deve poder mostrar como realizar a filosofia que nos ensina que este mundo é uno e que só há Uma Existência no universo.
Da mesma maneira, se vem o místico, devemos acolhe-lo, estar prontos a apresenta-lhe a ciência da análise mental e demonstra-la praticamente ante ele.
Se acorrerem pessoas emotivas, devemos nos sentar, chorar e rir com elas o nome do Senhor; “beber da taça do amor e enlouquecer”.
Se chegar o trabalhador enérgico, devemos trabalhar com ele com toda a energia que possuímos. E esta combinação será o ideal do que mais se aproxima a uma religião universal.
Rogaria a Deus que todos os homens estivessem constituídos de tal modo, que suas mentes tivessem por igual todos esses elementos: filosofia, misticismo, emoção e trabalho.
Esse é o ideal, o meu ideal de homem perfeito. Considero como “unilaterais” todos aqueles que possuem só um ou dois destes elementos de caráter e este mundo está quase cheio de “homens unilaterais”, que não conhecem senão esse único caminho que percorrem e que julgam perigosa e horrível qualquer outra coisa.
Meu ideal de religião consiste em alcançar o harmonioso equilíbrio entre as quatro tendências, o qual se obtém mediante o que denominamos na Índia de yoga: união. Para o trabalhador, é a união entre os homens e a humanidade inteira; para o místico, entre seu eu inferior e seu Eu Superior; para o amante, a união entre ele e o Deus do Amor e para o filósofo, é a união de toda existência. Isto é o que significa o termo yoga e essas quatro tendências do yoga tem diferentes denominações em sânscrito. A quem busca tal espécie de união, se chama yogui; o trabalhador é o karma-yogui; o que busca a união pelo amor é o bhakti-yogui; o que a busca por meio da filosofia é o jnana-yogui. De maneira que o vocábulo yogui os abarca a todos.
Ante tudo, consideremos o raja-yoga. Em que consiste o raja-yoga, o controle da mente? Neste país associam toda classe de coisas fantásticas à palavra yoga. Devo, pois, começar por dizer que nenhuma relação tem com tais coisas. Nenhum só desses yogas renuncia à razão; ninguém pede que vos deixeis enganar ou que entregueis vossa razão em mãos de sacerdotes de qualquer classe, nem exige que rendais homenagens a algum mensageiro sobre-humano. Cada yoga repete a vós que vos aferreis a vossa razão com todas as vossas forças.
Achamos, em todos os seres, três classes de instrumentos de conhecimento. O primeiro, o instinto, se acha muito desenvolvido nos animais e constitui o instrumento inferior. Qual é o segundo? A razão, que acha seu máximo desenvolvimento no homem. Agora, em primeiro lugar, o instinto resulta um instrumento inadequado; os animais têm uma esfera de ação limitadíssima, dentro da qual atua o instinto. Quando chega ao homem, vereis que o instinto evoluiu amplamente, transformando-se em razão. Também a esfera de ação se ampliou aqui. No entanto, até a razão torna-se insuficiente; avança um curto trecho e logo se detém, não pode ir adiante e se tratas de faze-la adiantar-se aos empurrões, obterás uma irremediável confusão; a razão mesma se torna irracional. A lógica chega a ser um argumento em um círculo vicioso. Tomemos, como exemplo, a base de nossa percepção, a matéria e a força. Que é a matéria? Aquilo sobre o qual atua a força. E a força: aquela que atua sobre a matéria. Já vistes a complicação. Os lógicos chamam a isso “balancim”, uma idéia que depende de outra e esta, por sua vez, depende daquela. Coloca-se, ante a razão, uma altíssima barreira que não pode ser transposta, apesar de suas ansiedades por penetrar o Infinito Mais Além.
Este mundo, este universo que nossos sentidos percebem ou que concebe nossa mente é, por assim dizer, só um átomo do infinito projetado no plano da consciência e dentro desse estreito limite, circunscrito pela rede da consciência, atua nossa razão, que nos chega mais além. Portanto, deve existir outro instrumento para nos levar mais além e esse instrumento é chamado inspiração. Assim, pois, instinto, razão e inspiração são os três elementos do conhecimento.
O instinto pertence aos animais, a razão aos homens e a inspiração aos homens-deuses. Mas em todos os seres humanos se encontram, mais ou menos desenvolvidos, os germes destes três instrumentos do conhecimento. Para que evoluam os três instrumentos mentais, devem estar ali os germes. Também se deve recordar que cada um desses instrumentos é o desenvolvimento do outro, logo não o contradiz.
A razão evolui transformando-se em inspiração e, conseqüentemente, esta não contradiz a razão, mas constitui sua culminação.
A inspiração traz à luz coisas que a razão não pode alcançar e que não a contradiz. A velhice não é uma contradição da infância, mas sua culminação. Lembreis, pois, sempre, o perigo que resulta confundir a forma inferior de instrumento com a superior. Muitas vezes o instinto é apresentado ante o mundo como inspiração e então, sobrevêm as pretensões impuras pelo dom de profecia. Um louco ou semilouco acredita que a confusão produzida em seu cérebro é inspiração e deseja que os homens o sigam. Os desatinos mais irracionais e contraditórios que foram pregados no mundo são, simplesmente, o jargão instintivo de confusos cérebros dementes, que trata de passar por linguagem de inspiração.
A primeira prova do verdadeiro ensinamento deve ser que não contradiga a razão. E podereis ver que essa é a base de todos estes yogas.
Tomemos a raja-yoga, o yoga psicológico, o caminho psicológico para a união. É um tema vasto e só posso assinalar agora a idéia central deste yoga. Só temos um método de adquirir o conhecimento. Desde o homem mais inferior ao yogui mais elevado, todos devem usar o mesmo método, que é a concentração. O químico que trabalha em seu laboratório, concentra todos os poderes de sua mente, os reúne em um só ponto e os projeta sobre os elementos; analisa os elementos e assim adquire seu conhecimento. O astrônomo também concentra sua potencialidade mental, a reúne em um ponto e a projeta sobre os objetos por meio de seu telescópio; as estrelas e os sistemas passam ante sua vista e lhe revelam sus segredos. O mesmo acontece em cada caso; com o professor em sua cátedra, o estudante com seus livros e todo homem que tem o afã de saber. Vós me estais olhando e se minhas palavras os interessa, vossa mente se concentrará nelas; suponhamos, então, que um relógio dê a hora, não o ouvireis por causa dessa concentração e quanto mais concentráreis vossas mentes, melhor me compreendereis. Quanto mais eu concentrar meu amor e meus poderes, mais expressão poderei dar ao que quero comunicar. Quanto maior o poder de concentração, mais conhecimento se adquire, porque este é o único método de adquirir conhecimento. Até o mais humilde engraxate, ao se concentrar mais, lustrará melhor os sapatos; o cozinheiro que se concentra, cozinhará muito melhor. Quanto mais intenso o poder de concentração, melhor resultado se obterá; seja em ganhar dinheiro, em adorar a Deus ou e fazer qualquer coisa. Este é o único chamado, o único golpe que abre as portas da natureza e faz sair torrentes de luz. Este, o poder de concentração, é a única chave do tesouro do conhecimento. No estado atual nosso corpo se acha muito perturbado e a mente desperdiça suas energias em cem coisas distintas. Tão logo trato de acalmar meus pensamentos e concentrar minha mente em qualquer objeto de conhecimento, milhares de impulsos indesejados se precipitam no cérebro, milhares de pensamentos acontecem na mente e a perturba. O raja-yoga estuda o método de refrear e controlar a mente.
Passemos ao karma-yoga, que consiste em alcançar a Deus por meio do trabalho. Há, evidentemente, na sociedade, muitas pessoas que parecem nascidas para uma outra espécie de atividade, cuja mente não pode concentrar-se no plano do pensamento, unicamente e que só tem uma idéia, a qual se concentra em trabalho visível e tangível. Deve existir, também, uma ciência para esta espécie de vida. Cada um de nós está ocupado em algum trabalho, mas a maioria desperdiça grande parte de suas energias porque não conhecem o segredo do trabalho. O karma-yoga explica este segredo e ensina como e quando trabalhar, aproveitando do melhor modo nossas energias. Mas ao analisar este segredo, também devemos considerar a grande objeção que se faz ao trabalho; que causa dor. O sofrimento e a pena provêm do apego. Quero trabalhar, desejo fazer o bem a um ser humano e há noventa probabilidades contra uma de que o ser humano a quem ajude seja ingrato, atue contra meus interesses e me cause dor. Tais fatos desanimam o desejo de trabalhar da humanidade e o temor da dor e do padecimento afasta uma boa parte do trabalho e da energia.
Karma-yoga não ensina como trabalhar por amor ao trabalho, desapegados, sem nos preocuparmos por saber a quem, nem porque ajudamos. O karma-yoga trabalha porque tal é sua natureza, porque sente que ao faze-lo, é bom para ele e sem nenhum outro propósito. Atua no mundo como doador e jamais deseja receber; sabe que está dando e como nada pede em troca, evita as garras da infelicidade. Cada vez que sentimos o pancada da dor, sua causa irradia uma reação de “apego”.
Para o tipo emotivo, o amante, tem o bhakti-yoga. Quem amar a Deus, emprega e confia em toda a espécie de rituais, flores, incenso, formosos edifícios, formas e coisas semelhantes. Pretendeis que estejas equivocado? Pois vos darei um dado que convém a vós lembrar especialmente aqui, neste país; os gigantes espirituais do mundo surgiram somente dessas seitas religiosas e que possuíam uma mitologia e rituais muito ricos. As seitas que intentaram adorar a Deus sem imagens nem cerimônias esmagaram sem piedade tudo o quanto de formoso e sublime há na religião. No melhor dos casos, sua religião apenas resulta em fanatismo, algo árido, como testemunha permanentemente à historia do mundo. Portanto, não denigrais estes rituais e mitologias. Que as pessoas os tenham; que os tenham quem assim o desejar. Não exibais o indigno sorriso de mofa, nem digais: “São tolos que fazem o que lhes pareça”. Porque não é certo; os homens maiores que vi em minha vida, os de espiritualidade mais maravilhosamente desenvolvida, passaram todos pelas disciplinas dos rituais; não me considero digno de deitar-me a seus pés e como hei de critica-los! Como sei de que modo atua estas idéias sobre a mente humana, qual delas hei de aceitar e qual afastar? Estamos propensos a criticar tudo sem autoridade suficiente. Deixais que as pessoas tenham toda a mitologia que queiram, com suas formosas inspirações; lembrais que a natureza emocional não se preocupa com as definições abstratas da verdade. Deus é para elas algo tangível, a única coisa real. O sentem, O ouvem, O vêem e O amam. Que tenham seu Deus. Vosso racionalista lhes parece o louco que quando viu uma formosa estátua, quis quebrá-la para descobrir de que material era feita.
O bhakti-yoga vos ensina como amar sem motivo ulterior, amando a Deus e amando o bom, porque é bom fazer assim, não por ir ao céu nem para ter filhos, riqueza ou qualquer outra coisa. Ensina-lhe que o amor em si é a mais elevada recompensa do amor – que Deus mesmo é amor. Ensina-lhes a render toda espécie de tributos a Deus como Criador, Onipresente, Onisapiente, Todo-poderoso, Pai e Mãe. Não teremos frase mais elevada para expressa-lo, nem podemos formar Dele conceito mais alto do que lhe dizendo: “Deus do Amor”. Onde quer que haja amor, esse amor é Ele. “Onde quer que haja algo de amor, está Ele, se acha presente o Senhor”. Quando o marido beija a mulher, Ele está no beijo; quando a mãe beija o filho, Ele está no beijo; quando os amigos se apertam as mãos, Ele, o Senhor se acha presente como Deus do Amor. Quando um grande homem ama e deseja ajudar a humanidade, Ele está ali pregando Sua mercê por amor a humanidade. Onde quer que o coração se expanda, ali se manifesta Ele. Isto é o que ensina bhakti-yoga.
Chegamos finalmente ao jnana-yogui, o filósofo, o pensador, o que quer ir mais alem do visível, pois não está satisfeito com as pequenezas deste mundo. Deseja transcender a diária rotina do comer e de beber; não podem satisfazer-lhe nem os ensinamentos de mil livros, nem as ciências todas, pois em suma lhes descrevem e representam este mundo insignificante. Que outra coisa poderia dar-lhe satisfação? Os milhões de sistemas solares só significam para ele uma gota no oceano da existência. Sua alma ambiciona transcender tudo isso e adentrar-se no coração do ser, vendo a Realidade tal e qual É, interpretando-a, vivendo-a, unificando-se com o Ser Universal. Tal é o filósofo e considera expressão inadequada dizer que Deus é o Pai ou a Mãe, o Criador deste universo, seu Protetor e Guia. Para ele, Deus é a vida de sua vida, a Alma de sua alma. Deus é o seu próprio Ser. Não fica mais que Deus. Todas as suas partes mortais são pulverizadas pelos pesados golpes da filosofia. O que verdadeiramente fica no fim, é mesmo Deus.
Na mesma árvore estão dois pássaros, um no alto e outro mais abaixo. O que se acha no alto permanece tranqüilo, silencioso e majestoso, assumido em sua própria glória; o que está nos ramos mais baixos, comendo alternativamente frutos doces e amargos, saltando de galho em galho, uma vez se sente feliz e outras, infeliz. Ao cabo de um tempo, o pássaro de baixo come um fruto excepcionalmente amargo e sente repugnância, olha para cima e vê o outro pássaro, esse maravilhoso pássaro de áurea plumagem, que não come frutos doces nem amargos, que não é feliz nem infeliz, que permanece tranqüilo, concentrado em Si Mesmo, sem ver mais que seu Eu. O pássaro de baixo deseja essa condição, mas logo esquece e de novo começa a comer os frutos. Pouco depois come outro excepcionalmente amargo, que o faz sentir-se infeliz, novamente olha para cima e trata de aproximar-se do pássaro do alto. Esquece uma vez mais e ao final de um tempo, olha para cima e assim prossegue uma e outra vez até chegar muito perto do formoso pássaro e vê o reflexo da luz em sua plumagem que rodeia seu próprio corpo, sente uma mudança e parece desvanecer-se; chega, no entanto, mais perto, tudo ao seu redor se desvanece e por fim compreende esta mudança maravilhosa. O pássaro de baixo era, poderíamos dizer, tão somente a sombra substancial, o reflexo do mais acima; mas em sua essência seguia sendo o pássaro situado no alto. Esse comer de frutos doces e amargos, esse pequeno pássaro de baixo chorando e feliz, alternativamente, era uma vã quimera, um sonho; o pássaro real estava ali em cima. Sempre tranqüilo e silencioso, glorioso e majestoso, mais além do pesar, mais além da dor.
O pássaro superior é Deus, o Senhor deste universo é o pássaro inferior, é a alma humana que come os frutos doces e amargos deste mundo. De vez em quando a alma recebe um forte golpe. Por um tempo cessa de comer, vai para o Deus desconhecido e lhe chega uma torrente de luz. Pensa que este mundo é vã aparência. Contudo, de novo os sentidos o arrastam para baixo e começa, como antes, a comer os frutos doces e amargos do mundo. Novamente recebe um golpe excepcionalmente duro. Seu coração volta a abrir-se à luz divina; assim, gradualmente, aproxima-se de Deus e a medida em que se acha mais e mais perto, descobre que seu antigo eu se desvanece. Quando chega suficientemente perto, vê que ele não é senão Deus e exclama: “Aquele que eu descrevo como a vida deste universo, presente no átomo, nos sóis e luas, Ele é a base de nossa própria vida, a Alma de nossa alma. Se tu és Aquele”.
Isto é o que ensina jnana-yoga. Diz ao homem que é essencialmente divino e que cada um de nós é o Senhor Deus Mesmo, manifestado sobre a terra. Todos nós, desde o mísero verme, que se arrasta sob nossos pés, até os seres mais elevados, a quem olhamos com reverência e temor, todos somos manifestações do mesmo Senhor.
Finalmente, é imperativo que estes diversos yogas sejam levados à prática; as meras teorias de nada servem. Primeiramente temos que nos inteirar disso e logo meditar nisso. Devemos racionalizar, grava-los em nossas mente, realiza-los, até que, por último, se converta em nossa vida inteira. Deixará, então, a religião, de ser um acúmulo de idéias e teorias ou uma simples afirmação intelectual e penetrará em nosso mesmíssimo ser. Intelectualmente podemos aceitar hoje muitas tolices e mudar completamente de idéia amanhã. A verdadeira religião nunca muda. A religião é realização, não falatório, nem doutrina, nem teorias, por mais formosas que possam ser. Consiste em chegar a ser, não em ouvir e admitir; é a alma inteira que se transforma em aquele que crê. Isso é religião.
“CRISTO, O MENSAGEIRO”
Swami
Vivekananda
(Conferência dada em Los Angeles, Califórnia, em 1900).
Ao elevar-se a onda no oceano, se produz uma ondulação. Eleva-se outra onda, talvez maior que a anterior, para descer novamente e assim sucessivamente, as ondas se elevam e avançam. Na marcha dos sucessos observamos a ascensão e queda, mas geralmente nos fixamos na primeira e esquecemos a segunda. No entanto, ambos são necessários e ambos são grandes. Tal é a índole do universo. Seja no mundo de nossos pensamentos, no de nossas relações sociais ou em questões espirituais, se desenvolve a mesma alternativa de ascensão e queda. Portanto, os que predominam na marcha dos sucessos, os ideais liberais avançam primeiro para logo retroceder, para digeri-los, diríamos, para ruminar sobre o passado, a fim de ajustar, conservar e acumular força uma vez mais para outra ascensão maior.
Na história das nações tem ocorrido sempre o mesmo. A grande Alma, o Mensageiro, a quem estudaremos esta tarde, surgiu em um período da história de sua raça que muito bem podemos designar como de uma grande queda. Possuímos unicamente pequenos vislumbres, aqui e ali, de arquivos perdidos em que foram conservados suas sentenças e atos, porque acertadamente se dz que os fatos e ditos desta grande Alma cumularia o mundo se todos tivessem sido escritos. Os três anos de seu ministério equivaleram a uma época inteira, condensada e concentrada, que foram necessários dezenove séculos – e quem sabe quanto tempo mais necessitará – para expressar-se. Os pequenos homens como vós e eu, somos simplesmente depositários de um pouco de energia. Uns poucos minutos, poucas horas, alguns anos, no melhor dos casos, são suficientes para esgota-la, para estica-la, poderíamos dizer, até o máximo e então desapareceríamos para sempre. Mas nos fixemos neste gigante que veio: séculos transcorreram e, contudo, a energia que deixou no mundo não se estendeu nem esgotou de todo. Continua agregando novas forças, a medida em que o tempo passa.
Agora, o que vedes na vida de Cristo é a vida de todo o passado. A vida de cada homem é, de certa maneira, a vida do passado. Vem por herança, pelo meio ambiente, pela educação, por sua própria reencarnação – o passado, a raça. De certo modo, o passado da terra, o passado do mundo inteiro, está ali, em cada alma. Que somos no presente senão ondinhas flutuantes na corrente eterna dos sucessos, irresistivelmente empurradas para diante e incapazes de nos determos? Somos isso, vós e eu, só pequenas coisas, borbulhas. Mas há sempre algumas ondas gigantes no oceano dos acontecimentos; em vós e em mim, a vida da raça passada se encarnou só um pouco; mas há gigantes que encarnam, por assim dizer, quase todo o passado e estendem suas mãos para o futuro. São as bandeiras que, aqui e ali, sinalizam a marcha da humanidade, são verdadeiramente gigantescos e suas sombras cobrem a terra, são imortais, eternos!
Como disse o mesmo Mensageiro: “Nenhum homem viu Deus, jamais, senão por meio do Filho”. Esta é a verdade. E onde veremos Deus, senão no Filho? Certo é que vós e eu e o mais pobre de nós, até o mais vil, temos dentro esse Deus, até o refletimos. A vibração da luz está em todas as partes, é onipresente; mas temos que acender a lâmpada antes que possamos ver a luz. O Deus onipresente deste universo não pode ser visto enquanto não é refletido pelas lâmpadas gigantescas da terra: os profetas, os homens-deuses, as encarnações de Deus.
Todos sabemos que Deus existe, no entanto não o vemos, nem o compreendemos. Consideremos a um destes grandes mensageiros de luz; comparemos seu caráter com o ideal de Deus mais elevado que jamais os havíeis formado e sabereis que vosso Deus fica muito abaixo do ideal e que a personalidade do Profeta está acima de vossas concepções. Nem sequer podeis conceber um ideal de Deus mais elevado do que de fato encarnam quem realizou na prática e nos foram colocados como exemplo. É, por conseguinte, errôneo adora-los como Deus? É acaso pecado prosternar-se aos pés destes homens-deuses e adora-los como os únicos seres divinos no mundo? Se eles estão realmente acima de todas as nossas concepções de Deus, que mal existe em adora-los? Não só não há mal algum, senão que é a única maneira possível e positiva de adoração. Por muito que o intenteis, seja por abstração ou por qualquer método que prefirais, enquanto permaneceres como homens no mundo dos homens, vosso mundo é humano, vossa religião é humana e vosso Deus é humano. E assim tem que ser. Quem não é suficientemente prático para aceitar uma coisa existente e abandonar uma idéia que é só uma abstração que não pode compreender e a qual é difícil aproximar-se a não ser por um meio concreto? Por conseguinte, estas encarnações de Deus têm sido adoradas em todas as épocas e em todos os países.
Analisemos agora algo da vida de Cristo, a Encarnação dos judeus. Quando Cristo nasceu, os judeus se encontravam nesse estado que eu chamo de depressão entre duas ondas; um estado de conservação, um estado em que a mente humana está, digamos assim, cansada, no momento, de ver-se empurrada para diante e só se preocupa com o quanto avançou; um estado em que a atenção se inclina ao particular, aos detalhes, mais que aos grandes, gerais e mais importantes problemas da vida; um estado de estancamento, mais que de avanço; um estado de sofrimento, mais que de ação. Observais que não censuro tal estado de coisas. Não temos o direito de critica-lo porque se não tivesse sido esta depressão, a seguinte ascensão, encarnada em Jesus de Nazaré, teria sido impossível. Os fariseus e os saduceus estavam carentes de sinceridade, pode ser que tivessem feito coisas que não deveriam fazer, até podem ter sido hipócritas; mas fosse o que fosse, esses fatores foram a causa real da qual o Mensageiro foi o efeito. Os fariseus e os saduceus, em um extremo, foram o verdadeiro impulso do qual resultou, no outro extremo, o gigantesco cérebro de Jesus de Nazaré.
Podemos, às vezes, nos rirmos da atenção às formas, às formulas, aos detalhes cotidianos da religião e dos rituais; mas não obstante, neles está a força. Com freqüência, a pressa nos faz perder muita força. Em realidade o fanático é mais forte que o homem liberal. Portanto, até o fanático possui uma grande virtude, conserva a energia, uma tremenda quantidade dela. Igual como no individuo, a energia se acumula na raça para ser conservada. Rodeada totalmente por inimigos externos, obrigada a enfocar-se em um centro pelos romanos, pelas tendências helênicas num mundo do intelecto, por vagalhões desde a Pérsia, Índia e Alexandria; cercada física, mental e moralmente, a raça judia manteve sua tremenda força, inerente e conservadora, que seus descendentes não perderam até os dias de hoje. A raça se viu obrigada a concentrar e enfocar todas as suas energias em Jerusalém e no judaísmo. Mas todo o poder, uma vez reunido, não pode permanecer assim, se há de gastar e expandir-se. Não há força na terra que possa se manter por longo tempo confinada dentro de estreitos limites; não se pode manter comprimida por demasiado tempo, como para permitir uma expansão em um período subseqüente.
Esta energia concentrada na raça judia encontrou sua expressão em um período seguinte, com o surgimento do cristianismo. As correntes reunidas concentraram-se em um corpo. Gradualmente, todas as correntes pequenas se uniram e formaram uma onda que surgia, no alto da qual encontramos a personalidade de Jesus de Nazaré. Assim, cada profeta é uma criação de sua época, a criação do passado de sua raça, ele mesmo é o criador do futuro. A causa de hoje é o efeito do passado e a causa do futuro. Nesta posição se encontra o Mensageiro. Nele encarna todo o melhor e maior de sua própria raça, o significado, a vida, pela qual essa raça tem lutado durante séculos; e ele mesmo é o impulso para o futuro, não só para sua própria raça, senão também para inumeráveis raças deste mundo.
Temos de levar em conta outro fato e é quando eu vejo o grande Profeta de Nazaré do ponto de vista do Oriente. Esqueceis muitas vezes, que o Nazareno era um oriental entre os orientais. Apesar de todas vossas intenções de pinta-lo com olhos azuis e cabelo ruivo, o Nazareno sempre foi um oriental. Todos os similares, as imagens que enchem a Bíblia; as cenas, as localidades, as atitudes, os grupos, a poesia e o símbolo, falam do Oriente: do céu brilhante, do calor, do sol do deserto, de homens e animais sedentos, de homens e mulheres caminhando com cântaros sobre suas cabeças para enche-los nos poços; dos rebanhos, dos lavradores, dos cultivos por todas as partes; do moinho e da moenda, do tanque e das pedras de moinho, tudo o que se pode ver ainda hoje na Ásia.
A voz da Ásia tem sido a voz da religião. A voz da Europa é a voz da política; cada uma delas é grande em sua própria esfera. A voz da Europa é a voz da antiga Grécia. Para a mente grega, sua sociedade imediata é tudo. Fora desta, tudo é bárbaro; ninguém, senão os gregos, têm direito de viver, tudo o que fazem os gregos é justo e correto, tudo o mais que existe no mundo não é justo nem correto, nem deve se permitido viver. O grego é intensamente humano em suas simpatias, intensamente natural e intensamente artístico, portanto. O grego vive inteiramente em seu mundo, não lhe interessa sonhar, até sua poesia é prática. Seus deuses e deusas não são somente seres humanos, mas intensamente humanos, com todas as paixões e sentimentos humanos quase iguais a qualquer um de nós. Ama o belo, mas levando em conta sempre a natureza externa; a beleza dos outeiros, das neves, das flores; a beleza das formas e das figuras, do rosto humano e, mais freqüentemente, da forma humana. Isto é o que agradava aos gregos. E sendo estes os instrutores de toda a europeização subseqüente, a voz da Europa é grega.
Na Ásia existe outro tipo. Imagineis um imenso continente, cujos cumes das montanhas se elevam por sobre as nuvens, quase tocando o pavilhão azul do firmamento. Milhas e milhas de deserto ondulado onde não se encontra uma gota de água, nem cresce uma folha de erva; selvas intermináveis e rios gigantescos precipitando-se para o mar. Em meio a tudo isto, o amor oriental pelo belo e o sublime se desenvolveram em outra direção. Ásia olhava para dentro, não para fora. Sentia também a sede pela natureza e assim mesmo ânsia do poder e também a mesma sede de proeminência, a mesma idéia do grego e do bárbaro; mas que abarcava um círculo mais extenso. Na Ásia, até hoje em dia, o nascimento, a cor, o idioma, nunca constituiu uma raça; o que caracteriza uma raça é sua religião. Somos todos cristãos, ou maometanos, ou hindus, ou budistas. Não importa se um budista é chinês ou é persa, todos pensam que são irmãos porque professam a mesma religião; a religião é o vínculo, a unidade da humanidade. Por outro lado, o oriental, pela mesma razão, é um visionário, um sonhador nato. O murmúrio das cascatas, o canto dos pássaros, as belezas do sol, da lua, das estrelas e de toda terra são bastante agradáveis; mas não são suficientes para a mente oriental; Ela quer sonhar algo mais além de tudo isto, quer ir mais além do presente, porque para ela, não importa o presente, por assim dizer.
O Oriente tem sido, durante séculos, o cunho da raça humana e todas as vicissitudes da fortuna estão ali. Reinos sucedendo reinos, impérios sucedendo impérios, o poder humano, a glória e a riqueza, se precipita ali um gólgota de poder e de erudição. Esse é o Oriente: um gólgota de poder, de reinos, de sabedoria. Nada estranho há em que a mente oriental veja com desprezo as coisas deste mundo e queira, naturalmente, ver algo que não mude, algo que não morra, algo que em meio deste mundo de miséria e morte seja eterno, bem-aventurado e imortal. Um profeta oriental nunca se cansa de insistir sobre estes ideais. E com respeito aos profetas, também deveis recordar que, sem exceção, todos os Mensageiros foram orientais.
Vimos, por conseguinte, na vida deste Mensageiro de vida, a primeira ordem: “Não esta vida, senão algo superior”, e assim como o verdadeiro filho do Oriente é prático nesse sentido, vós, os ocidentais, sois práticos em vosso ramo: em assuntos militares, na direção de círculos políticos e outras coisas. Talvez o oriental não seja prático em vosso ramo, mas é prático em seu próprio campo, é prático em religião; se alguém prega uma filosofia, no dia seguinte centenas de pessoas farão tudo quanto possam para faze-la prática em suas vidas; se outro prega que sustentar-se em um só pé o levará à salvação, imediatamente haverá quinhentos que pararão em um pé. Podeis apontar isto como ridículo, mas leveis em conta que por detrás disso está sua filosofia, essa aplicação prática intensa. No Ocidente os planos de salvação significam ginástica intelectual, planos que nunca se realizam, que nunca chegam à vida prática. No Ocidente, o pregador que fala melhor, é o maior.
Portanto, em Jesus de Nazaré encontramos, em primeiro lugar, o verdadeiro filho do Oriente, intensamente prático. Não tem fé neste mundo efêmero, nem em nada que lhe pertença. Não necessita tergiversar os textos, como é costume no ocidente nos tempos modernos, quando se esticam até que não dêem mais. Os textos não são de goma e até esta tem seus limites. Não fazer com que a religião satisfaça o sentido da vaidade da presente época; sejamos todos honestos. Se não podemos seguir um ideal, confessemos nossa debilidade, mas não o degrademos; que nada possa derruba-lo. O coração escolhe alguém, ante a vida de Cristo. Eu não sei o que foi, nem o que deixou de ser. Segundo alguns, foi um grande político; outros, talvez, o dizem um grande general, outros um grande patriota judeu e assim por diante. Há nos livros algo justifique todas estas suposições? O melhor comentário sobre a vida de um grande Instrutor é sua própria vida. “As raposas têm tocas, os pássaros seus ninhos, mas o filho do homem não tem onde por sua cabeça”. Isto, segundo disse Cristo, é o único caminho da salvação; ele não assinala outro caminho. Confessemos, humildemente, que não podemos fazer isso.
Todavia temos apego ao “mim” e ao “meu”: queremos propriedades, dinheiro, riqueza. Pobres de nós, o confessemos e não envergonhemos o grande Instrutor da humanidade! Ele não tinha laços de família. Credes acaso que esse homem tinha alguma idéia física? Credes que esta grandeza de luz, esse Deus e não homem, desceu à terra para ser semelhante aos animais? E, contudo, as pessoas o fazem pregar coisas de toda a espécie. Ele não tinha idéia de sexo! Era uma alma! Nada mais que uma alma alojada, simplesmente, em um corpo, para o bem da humanidade; essa era toda sua relação com o corpo. Na alma não existe sexo. A alma desencarnada não tem relação com o animal, não tem relação com o corpo. O ideal pode ser que esteja muito afastado de nós, mas não importa, aferremo-nos ao ideal. Confessemos que esse é nosso ideal, mas que não podemos nos aproximar dele.
Cristo não tinha outra ocupação na vida, nenhum outro pensamento senão que era um Espírito. Era um espírito desencarnado desligado do corpo e liberado. Não só isto senão que sua visão maravilhosa descobriu que todo homem e mulher, judeu ou gentil, rico ou pobre, santo ou pecador era, como ele, a encarnação do mesmo Espírito imortal. Por conseguinte, a única obra que manifestou por toda sua vida foi chamar os homens que se deram conta de sua própria natureza espiritual. “Abandoneis, disse, estes sonhos supersticiosos de que sois inferiores e de que sois pobres. Não penseis que sois pisoteados e tiranizados como se fosseis escravos; porque dentro de vós há algo que nunca é tiranizado, nunca pisoteado, nunca atribulado, nunca morto. Sois todos filhos de Deus, Espírito imortal”. “Sabeis, declarou, que o reino dos céus está dentro de vós”. “Eu e meu Pai somos um”. Atrevam-se a se pôr de pé e dizer somente: “Eu sou o Filho de Deus”, senão que também achareis no mais profundo de seus corações que “Eu e meu Pai somos um”. Isso foi o que disse Jesus de Nazaré. Nunca fala deste mundo nem desta vida, nada tem que fazer com estes com exceção de tomar este mundo como é, empurra-lo e faze-lo avançar até que tenha alcançado a resplandecente luz de Deus, até que todos tenham realizado sua natureza espiritual, até que a morte seja vencida e a miséria desvanecida.
Temos lido as diferentes histórias que se escreveram sobre Cristo; conhecemos os eruditos e seus escritos e a crítica levantada e sabemos que tudo foi feito pelo estudo. Não estamos aqui para discutir sobre se aquela vida é histórica. Não importa, em absoluto, se o Novo Testamento foi escrito dentro dos quinhentos anos de seu nascimento; tampouco importa quanto daquela vida é verdade. Mas há algo por detrás dela, algo que necessitamos imitar. Para mentir tereis que imitar a verdade e essa verdade é um fato. Na podeis imitar o que nunca existiu, não podeis imitar o que jamais percebestes. Mas deve ter havido um núcleo, um tremendo poder que desceu, uma maravilhosa manifestação de poder espiritual; disto, precisamente, falamos. Está ali; portanto não tememos as críticas dos eruditos. Se eu, como oriental, tenho que adorar a Jesus de Nazaré, só me resta um caminho; tenho que adora-lo como Deus e nada mais. Quereis me dizer que não tenho direito de adora-lo dessa maneira? Se não o fazemos descer a nosso próprio nível e só lhe oferecemos um pouco de respeito como a um grande homem, por que temos que adora-lo? Nossas Escrituras dizem: “Estes grandes filhos da Luz, que manifestaram eles mesmos a Luz, que são eles mesmos Luz, ao serem adorados se convertem, por assim dizer, em um conosco e nós chegamos a ser uno com eles”.
Porque, como vedes, o homem percebe Deus de três maneiras. No princípio, com o intelecto não desenvolvido do homem inculto, vê a Deus muito longe, em algum céu, sentado em um trono como um grande juiz. O considera como um fogo, como um terror. Agora, isto é conveniente, porque nada de mal há nisso. Deveis recordar que a humanidade não vai do erro à verdade, senão da verdade à verdade. Suponhais que partindo daqui, viajeis em linha reta para o sol. Daqui o sol parece de um pequeno tamanho; suponhais que se aproximais dele um milhão de milhas, o sol parecerá maior; a cada etapa o sol ficará maior. Suponhais que se tenha tirado vinte mil fotografias do mesmo sol de diferentes pontos; com toda a certeza, estas vinte mil fotografias serão diferentes uma das outras. Mas podeis negar que cada uma delas é uma fotografia do mesmo sol? Assim também, todas as formas de religião, elevadas ou inferiores, são simplesmente etapas para o estado eterno de luz, que é o mesmo Deus. Algumas representam um ponto de vista mais inferior, outras um mais elevado; e essa é toda a diferença.
Por conseguinte, as religiões das massas que não pensam, hão de ser em todo o mundo e têm sido sempre de um Deus que está fora do universo, que mora em um céu e dali governa, castiga aos maus e premia aos bons, etc. A medida em que o homem avança espiritualmente, começa a compreender que Deus é onipresente, que está em todas as partes, que não é um Deus distante, senão claramente é a alma de todas as almas. Da mesma maneira que minha alma move meu corpo, assim também Deus é quem move minha alma. Alma dentro de outra alma. Uns poucos indivíduos que se desenvolveram o suficiente e são puros o bastante, vão mais além e, por fim, encontram a Deus. Como disse o Novo Testamento: “Bem-aventurados sejam os de coração puro, porque eles verão a Deus”. E descobrem, por fim, que eles e o Pai são um”.
Observais que estas três etapas são ensinadas pelo grande Instrutor no Novo Testamento. Fixa-os na oração comum; nele se ensina: “Pai nosso que está nos céus, santificado seja seu nome, etc.”. Pregação singela, pregação de criança. Fixa-os bem, chama-se oração comum porque está dedicada às almas da massa inculta. Para um círculo elevado, para quem avançou um pouco mais, deu um ensinamento mais elevado: “Eu estou em meu Pai e vós em mim, e eu estou em vós”. Recordais isso? Logo, quando os judeus perguntaram-lhe quem ele era, declarou que ele e seu Pai eram um e os judeus consideraram isto uma blasfêmia. Que quis dizer com isso? Isto também disseram vossos antigos profetas: “Vós sois deuses e todos vós sois filhos do Altíssimo”. Observais que são as mesmas três etapas. Percebereis que é mais fácil começar com a primeira e terminar na última.
O Mensageiro veio para mostrar o caminho; que o espírito não está nas formas; que não se pode conhecer o espírito por meio dos muitos, incômodos e complicados problemas de filosofia. Seria melhor que tivésseis alguma cultura e que não lêsseis jamais um livro em vossas vidas. Estes não são, em absoluto, necessários para a salvação – como tampouco são a riqueza, a posição, o poder, nem sequer a cultura – o necessário é uma só coisa, pureza; Bem-aventurados sejam os de coração puros, porque o espírito, por sua índole, é puro. Como poderia ser de outro modo? É de Deus e procede de Deus. Segundo a linguagem da Bíblia, “É o alento de Deus”. Na linguagem do Alcorão, “É a alma de Deus”. Ousareis dizer que o espírito de Deus pode ser impuro? Mas, ai! Podemos dizer que tem sido coberto pelo pó e a vileza de séculos, por nossas próprias ações boas e más. Várias obras que não eram corretas, que não eram verdade, têm coberto este mesmo espírito com o pó e a vileza da ignorância de séculos. Só é necessário eliminar o pó e a sujeira para que o espírito reluza imediatamente. “Bem-aventurados sejam os de coração puro, porque eles verão a Deus”. “O reino dos céus está dentro de vós”. Aonde vais tu buscar o reino de Deus?, pergunta Jesus de Nazaré, quando está aí dentro de ti. Purifica o espírito e aí está. Já quase é teu. Como podes conseguir o que não é teu? É teu por direito. Sois os herdeiros da imortalidade, filhos do Pai Eterno.
Esta é a grande lição do Mensageiro, e outra, que é a base de todas as religiões, é a renúncia. Como podereis purificar o espírito? Renunciando. Um jovem rico perguntou ao Senhor: “Bom Mestre, que devo fazer para herdar a vida eterna?”, e Jesus lhe disse: “Uma coisa te falta, anda e vende tudo o quanto possuis, dês aos pobres e terás tesouros no céu; e vem, toma tua cruz e segue-me”. E o jovem entristeceu-se ao ouvir isto e se afastou dolorosamente, porque tinha grandes posses. Nós somos todos mais ou menos assim. A voz ressoa em nossos ouvidos dia e noite. Em meio de nossos prazeres e gozos, em meio a coisas mundanas, cremos que temos ouvido tudo; logo sobrevém uma pausa momentânea e a voz ressoa em nossos ouvidos: “Abandona tudo quanto possuis e siga-me”. “Quem quer que salve sua vida, a perderá e o que perde sua vida por mim, a encontrará”. Porque quem quer que abandone sua vida por Ele, encontra a vida imortal. Em meio a todas as nossas debilidades, há um momento de pausa e a voz ressoa: “Abandona tudo o quanto possuis, dá-lhes aos pobres e segue-me”. Este é o único ideal que ele prega e é o ideal pregado por todos os grandes profetas do mundo; quer dizer renúncia. Que se quer dizer com renúncia? Que na moralidade há um só ideal, que é abnegação. Sejam abnegados. O ideal é o perfeito inegoísmo. Quando te esbofeteiam na face direita, apresenta também a esquerda. Quando te tiram o casaco, dá-lhes também tua capa”.
Devemos obrar da melhor maneira possível, sem derrubar o ideal. Quando um ser humano já não tem o sentimento do eu, nada possui, nada que possa denominar “mim” ou “meu” e se entrega por inteiro, como se houvesse destruído a si mesmo, por assim dizer; nesse homem está Deus, porque nele a obstinação se desvaneceu, foi esmagada, aniquilada. Tal é o homem ideal. Não podemos alcançar, talvez, esse estado; adoremos o ideal e lutemos, pouco a pouco, para alcança-lo, mesmo que seja com passos vacilantes. Pode ser que amanhã ou daqui a mil anos, mas devemos alcançar esse ideal; porque, não é só o fim, mas também o meio. Ser inegoísta, perfeitamente desinteressado é a salvação; porque o homem interior morre e fica só Deus.
Há mais um ponto. Todos os mestres da humanidade são inegoístas. Suponhamos que Jesus de Nazaré estivesse ensinando e alguém viesse e dissesse-lhe: “O que ensinas é formoso, eu creio que é o caminho da perfeição e estou disposto a segui-lo, mas não desejo adora-lo como filho unigênito de Deus”. Qual teria sido a resposta de Jesus de Nazaré? “Muito bem, irmão, segue o ideal e avança a teu modo. Não me interessa o valor que dês a meu ensinamento; não sou um mercador nem comercio com a religião, só ensino a verdade e a verdade não é propriedade de ninguém; ninguém pode patentear a verdade, a verdade é Deus, segue avançando por teu caminho”. Mas o que os discípulos dizem atualmente é: “Não importa que pratiques os ensinamentos ou não, crês no Homem? Se acreditas no Mestre, te salvarás; se não, não há salvação para ti”.
Desta maneira se degenera todo o ensinamento do Mestre e todo o esforço e toda a luta gira ao redor da personalidade do Homem. Não compreendem que ao impor tal diferença, de certo modo envergonham o mesmo Homem a quem pretendem honrar; o mesmo Homem que ficaria estremecido de vergonha ante tal idéia. Que importava a ele que houvesse um homem no mundo que lembrasse dele ou não? Tinha que dar sua mensagem e a deu; se houvesse tido vinte mil vidas, as haveria dado todas por ele ser o mais mísero do mundo. Se houvesse sido torturado milhões de vezes para salvar a um milhão de desprezados samaritanos e se por cada um deles o sacrifício de sua própria vida fosse a única condição para salva-lo, ele haveria dado sua vida. E tudo isso sem querer que seu nome fosse revelado a ninguém. Atuou tranqüilo, desconhecido, em silêncio, exatamente como atua o Senhor. Agora, que dirá o discípulo? Dirá que podeis ser homem perfeito, completamente altruísta, mas a menos que confieis em nosso Instrutor, em nosso Santo, de nada serve a eles. Por que? Qual é a origem desta superstição, dessa ignorância? O discípulo crê que o Senhor só pode manifestar-se uma vez. Aí está todo o erro. Deus se manifesta no homem. Em toda a natureza, o que ocorre uma vez deve ter ocorrido antes e há de ocorrer no futuro. Não há nada na natureza que não esteja regido pela lei; isto quer dizer que o que ocorre uma vez, há de continuar ocorrendo e ocorreu antes.
Na Índia se tem uma mesma idéia sobre as encarnações de Deus. Uma de suas grandes encarnações, Krishna, cujo grande sermão, o Bhagavad Gita, que alguns de vós deveis ter lido, disse: “Embora seja inato, de natureza imutável e Senhor de seres, subjugando meu prakriti, adquiro o ser por minha própria maia. Quando a virtude decai e a imoralidade prevalece, eu tomo um corpo. Para a proteção do bom, para a destruição do mal e para estabelecer o darma, nasço a cada idade”. Cada vez que o mundo decai, o Senhor acode para ajuda-lo a avançar e assim o faz de tempo em tempo e de lugar em lugar. Em outra passagem, diz: “Onde quer que encontres uma grande alma de imenso poder e pureza, lutando por elevar a humanidade, sabe que nasceu de meu esplendor, que ali estou Eu trabalhando por meio dela”.
Por isso, não só busquemos Deus em Jesus de Nazaré, mas também em todos os grandes Seres que o antecederam e em todos os que vieram depois dele e em todos os que hão de vir. Nossa adoração é ilimitada e livre, pois todos eles são manifestações do mesmo Deus infinito. São todos puros e inegoístas; lutaram e deram sua vida por nós, pobres seres humanos. Todos e cada um deles sacrificaram-se por cada um de nós e também por todos os que virão.
Em certo sentido, todos vós sois profetas, cada um de vós é um profeta que leva a carga do mundo sobre seus próprios ombros. Vistes alguma vez um homem ou uma mulher que não leve com calma e paciência sua pequena carga de vida? Os grandes profetas eram gigantes; carregavam sobre seus ombros um mundo gigantesco. Comparados com eles, somos evidentemente pigmeus; no entanto realizamos a mesma tarefa. Em nossos pequenos círculos, em nossos pequenos lares, levamos nossas pequenas cruzes. Nenhum é tão maior, nem nenhum tão indigno que não tenha que carregar sua própria cruz. Apesar de todos nossos erros, com todos nossos maus pensamentos e com todas nossas más ações, existe em alguma parte um ponto brilhante; subsiste em alguma parte o halo de ouro mediante o qual sempre estamos em contato com o divino. Porque tem por certo que ao perder o contato com o divino, de imediato se pronunciaria a aniquilação e como nada pode ser aniquilado, há sempre, em alguma parte, no mais profundo de nosso coração, por mais escorregadios e degradados que sejamos, um pequeno círculo de luz que está em contato constante com o divino.
Honremos a todos os profetas do passado, cujos ensinamentos e vidas herdamos, seja qual for sua raça, seu clima ou seu credo. Honremos a todos esses homens e mulheres divinos que trabalham para ajudar a humanidade, qualquer que seja sua estirpe, sua cor ou sua raça. Honremos a todos que os que virão no futuro – deuses viventes – a trabalhar desinteressadamente para nossos descendentes.
“ M E U M E S T R E ”
Swami
Vivekananda
(Conferência dada em Nova York)
“Quando a virtude e o vício prevalecem, Eu desço para ajudar o gênero humano”, declara Krishna no Bhagavad Gita. Quando este nosso mundo, a causa de seu crescimento, em virtude de novas circunstâncias, requer um novo ajuste, se produz uma onda de poder; como o homem atua em dois planos, o espiritual e o material, surgem forças para tal ajuste de ambos os planos. Por um lado, a Europa tem sido a base principal do ajuste do plano material, nos tempos modernos; para o ajuste do plano espiritual, a Ásia tem sido a base, no transcurso da história do mundo. Na atualidade o homem necessita de um novo ajuste no plano espiritual; hoje, quando as idéias materialistas têm alcançado o cume de sua glória e poder; hoje quando o homem tende a se esquecer de sua natureza divina, porque a cada dia depende mais do material e parece provável que se converta em uma mera máquina de fazer dinheiro, é necessário um reajuste; a voz tem falado e o poder se aproxima, para dispersar as nuvens do materialismo que vão se acumulando.
Tem entrado em ação uma força que em data não longínqua, fará lembrar novamente à humanidade sua verdadeira natureza e novamente a Ásia será o lugar de onde este poder será arrancado. Este nosso mundo é projetado sobre a divisão do trabalho. É em vão dizer que um homem possuirá tudo. No entanto, quão crianças somos! O pequenino, em sua inocência, crê que sua boneca é a única posse digna de ser desejada no universo inteiro.
Assim mesmo, uma nação que possui grandes bens materiais, crê que eles são os únicos que se há de ambicionar, o único que significa progresso e civilização e que se algumas nações não se cuidarem de possuir, nem possuem esses bens, são indignas de sobreviver e sua existência inteira é inútil. Do Oriente veio a voz que, em tempos longínquos, disse que se alguém possui tudo o quanto está sob o sol, mas carece de espiritualidade, de que lhe serve? Este último é o tipo oriental; o outro, é ocidental.
Cada um destes dois tipos possui sua grandeza e sua glória. O reajuste presente consistirá em harmonizar e mesclar estes dois ideais. Para o oriental, o mundo do espírito é tão real como o mundo dos sentidos o é para o ocidental. No espiritual, o oriental encontra tudo quanto necessita ou deseja; tudo o que faz da vida uma realidade para ele. Para o ocidental, aquele é um sonhador; para o oriental, o sonhador é o ocidental, que brinca com bonecos de escassa duração; e se ri dos homens e mulheres maduros que dão tanta importância a um punhado de matéria que terão que abandonar cedo ou tarde. Chamam-se sonhadores, uns aos outros. Mas o ideal oriental é tão necessário como o ocidental, para o progresso da raça humana e eu o creio mais necessário ainda.
As máquinas nunca fizeram e nunca farão a humanidade feliz. Quem quiser nos fazer acreditar, dirá que a felicidade está na máquina; mas a felicidade está sempre na mente. Só quem é dono de sua mente pode chegar a ser feliz. Depois de tudo, que é esse poder da máquina? Por que temos que classificar como muito grande e muito inteligente o homem capaz de enviar uma corrente elétrica por um fio? Não faz muitíssimo mais a natureza, a todo instante? Por que, então, não se inclinar e adorar a natureza? Que importa que tenhais poder sobre o mundo inteiro e que domineis cada átomo do universo? Isso não nos fará mais felizes, salvo que o poder da felicidade está em vós mesmos por havê-los conquistado por vós mesmos.
É verdade que o homem nasceu para conquistar a natureza, mas por “natureza” o ocidental entende unicamente a natureza física ou externa. Certamente a natureza externa é majestosa, com suas montanhas, seus oceanos, seus rios e com suas potências e variedades infinitas. Contudo existe no homem uma natureza interna mais majestosa, mais elevada que o sol, a lua e as estrelas; mais elevada que essa nossa terra, mais que o universo físico, a qual transcende estas nossas pequenas vidas e nos oferece outro campo de estudo. Neste campo, o oriental sobressai, da mesma maneira que o ocidental se sobressai em outro. Por conseguinte, é justo que onde quer que haja um reajuste espiritual, este venha do Oriente. É também natural que quando o oriental quer aprender a construir máquinas, se sinta aos pés do ocidental e aprenda com ele. Quando o ocidental quer aprender coisas do espírito, algo sobre Deus, a alma, o que significa o mistério do universo, há de dentar-se aos pés do oriental.
Vou expor ante vós a vida do único homem que promoveu tal onda na Índia, mas antes de ocupar-me dessa vida, tratarei de lhes apresentar o segredo da Índia, o que ela significa. Se quem está cegado pelo brilho das coisas materiais, cuja vida inteira é dedicada a comer, beber e gozar; que só ambiciona terras e ouro e considera como prazer supremo o gozo dos sentidos; aqueles cujo deus é o dinheiro e cuja meta é uma vida fácil e de comodidades e a morte depois; cujas mentes jamais olham para diante e que raramente pensam em algo mais elevado que os objetos sensórios em meio dos quais vivem; se tais pessoas fossem à Índia, que veriam? Pobreza, dor, superstição, obscuridade, fealdade em todas as partes. Por que? Porque para elas a “iluminação” significa vestido, educação, cortesia social.
Enquanto as nações ocidentais se esforçam, em todos os sentidos, parar melhorar sua posição material, a Índia trabalha de maneira diferente; ali vive a única raça do mundo que no transcurso de toda a historia da humanidade, jamais ambicionou o que pertence aos outros e cuja única falta tem sido que suas terras foram tão férteis, sua engenhosidade tão aguda, que acumularam riquezas com o rude trabalho de suas mãos e tentaram outras nações para que viessem despoja-los de suas riquezas. Se conformaram em ser despojados e que os chamem de bárbaros; em troca disso, querem enviar a este mundo visões do Supremo; descobrir, para o mundo, os segredos da natureza humana, rasgar o véu que encobre o homem real; porque eles conhecem o sonho; porque sabem que por detrás do materialismo, vive a verdadeira natureza divina do homem a que nenhum pecado pode manchar, nenhum crime pode embaçar, nenhuma cobiça contaminar, nem a água molhar; que o calor não pode secar nem a morte matar. Para eles, esta verdadeira natureza do homem é tão real como qualquer objeto material possa ser para os sentidos de um ocidental.
Igual coragem que ele, vós demonstrais ao se precipitarem contra os canhões, dando gritos de bravura quando, em nome do patriotismo, sacrificais a vida por vosso país, mostram eles em nome e Deus. Por isso, quando alguém declara que este é um mundo de idéias e que é tudo um sonho, arranca suas vestimentas e abandona suas propriedades para demonstrar que o que pensa e crê é verdade. Ali um homem senta-se à margem do rio, enquanto sabe que a vida é eterna; e quer abandonar seu corpo como se nada valesse, do mesmo modo que vós abandoneis um pedaço de palha. Nisso consiste o seu heroísmo; estão prontos para considerar a morte como uma irmã, porque estão convencidos de que a morte não existe para eles. Daí a força que os têm feito invencíveis, através de séculos de opressão, de invasões e de tirania estrangeira. A nação vive hoje e nessa nação, até nos dias de desastres mais terríveis, nunca deixaram de surgir os grandes gigantes espirituais, da mesma maneira que o Ocidente produz gigantes em políticas e ciência.
No principio do presente século, quando a influência ocidental começou a penetrar na Índia, quando os conquistadores ocidentais, espada na mão, vieram demonstrar aos filhos dos Sábios que eram somente bárbaros, que constituíam uma raça de sonhadores, que sua religião não era senão mitologia; que Deus e a alma e tudo aquilo pelo qual haviam lutado eram meras palavras sem sentido; que os milhares de anos de luta, os milhares de anos de renúncia sem fim haviam sido em vão; a questão começou a agitar-se entre os jovens das universidades, sobre se a inteira existência nacional, até então, havia sido um fracasso e se deviam começar de novo ajustando-se a ao plano ocidental, destruindo seus velhos livros, queimando suas filosofias, dispersando seus pregadores e derrubando seus templos.
Por acaso não afirmava o conquistador ocidental, o homem que demonstrava sua religião com a espada e o fuzil, que todo o antigo somente era superstição e idolatria? As crianças criadas e educadas nas novas escolas se iniciaram sob o plano ocidental e absorveram as novas idéias desde sua infância, pelo que não há que se maravilhar que surgiram dúvidas. Mas no lugar de desejar as superstições e buscar realmente a verdade, para saber se era certo, perguntavam: “Que disse o Ocidente?”. Os sacerdotes hão de desaparecer; os Vedas se hão de queimar, porque o Ocidente assim disse. Do sentimento de inquietude, assim produzido, se alçou a onda da chamada reforma da Índia.
Quem deseja ser um verdadeiro reformador necessita de três coisas. A primeira é sentir; sentis realmente pelo que acontece com vossos irmãos? Sentis, em verdade, a muita miséria, a muita ignorância e superstição que há no mundo? Sentis, verdadeiramente, que os homens são vossos irmãos? Chega esta idéia em todo vosso ser? Corre ela em vosso sangue? Formiga em vossas veias? Circula por cada nervo e filamento de vosso corpo? Transbordais de simpatia? Se é assim, haveis dado o primeiro passo. Na continuação, deveis buscar algum remédio. As antigas idéias pode der que sejam todas superstições, mas dentro e ao redor destes montões de superstições, há pepitas de ouro da verdade. Haveis descoberto meios para guardar o ouro separado, sem escória alguma? Se haveis conseguido isto, tereis dado o segundo passo. Mas mesmo assim necessitais de algo mais. Qual é vossa causa? Estais seguros de que não vos move a ambição do ouro, a sede de fama ou de poder? Estais realmente seguros de que mantereis vossos ideais e seguireis trabalhando, embora o mundo inteiro trate de esmaga-los? Estais seguros de que sabeis o que quereis e de que cumprireis com vosso dever e unicamente vosso dever, embora vossa vida perigue? Estais seguros de que persevereis enquanto tenhas um hálito de vida e siga batendo o coração? Então sois um verdadeiro reformador, sois um instrutor, um mestre, uma bênção para a humanidade.
Mas o homem é tão impaciente, tão curto de visão! Não têm paciência para esperar; nem o poder de ver. Quer dominar e deseja resultados imediatos. Por que? Quer colher os frutos ele mesmo e pouco lhe importa os demais. O dever, pelo dever mesmo, não é o que ele quer. “Tem direito ao trabalho, mas não aos seus frutos”, disse Krishna. Por que viver dependendo dos resultados? Os deveres são nossos; deixem que os frutos cuidem de si mesmos. Mas o homem não tem paciência, empreende qualquer projeto e assim é a maior parte dos pretendidos reformadores do mundo todo.
Como já disse, a idéia da reforma chegou à Índia quando parecia que a onda de materialismo, que já invadia suas costas, iria arrasar os ensinamentos dos Sábios. Mas a nação resistiu aos embates de milhares de ondas semelhantes. Esta, em comparação, foi moderada. Ondas após ondas inundaram o país, rompendo-o e esmagando tudo durante centenas de anos; a espada relampejou, o grito de “Vitória a Alá” rasgou os céus da Índia, mas as inundações se acalmaram, deixando os ideais nacionais imutáveis.
A nação hindu não pode ser morta. Mantém-se imortal e se manterá assim enquanto o espírito se mantiver em seu seio, enquanto seu povo não abandonar sua espiritualidade. Pode ser que sigam sendo mendigos, pobres e miseráveis; estarão, talvez, rodeados de sujeira e de miséria, mas não abandonam seu Deus, não esquecem que são filhos dos Sábios. Assim como no Ocidente até o homem da rua deseja poder demonstrar que descende de algum nobre ladrão da idade média, assim também é na Índia, até um imperador sentado em seu trono quer ser descendente de algum sábio mendigo da selva, de um homem que se vestiu com a casca das árvores, que viveu dos frutos do bosque e entrou em comunhão com Deus. Esta é a espécie de linhagem que queremos e enquanto a santidade seja assim venerada como suprema, a Índia não pode morrer.
Justamente quando se iniciavam as reformas de várias classes na Índia, nasceu um menino de pais brahmanes pobres, em 18 de fevereiro de 1835, em uma das longínquas aldeias de Bengala. O pai e a mãe eram muito ortodoxos. A vida de um brahman realmente ortodoxo é de renúncia contínua. Muitas poucas coisas podem fazer e fora estas, o brahman ortodoxo não se ocupa de nada secular; tampouco recebe dádivas de todos. Podeis imaginar quão rigorosa é sua vida. Haveis ouvido falar dos brahmanes e de seus sacerdotes muitas vezes, mas poucos de vós vos haveis detido a perguntar como é que esta maravilhosa família de homens seja os governantes de seus semelhantes. Eles são os mais pobres de todas as classes do país; o segredo de seu poder está na renúncia. Jamais ambicionam riqueza. É o sacerdócio mais pobre do mundo; por conseguinte, é o mais poderoso. Até dentro desta pobreza, a esposa de um brahman nunca deixa passar um pobre pela aldeia sem dar-lhe algo para comer. Isto se considera o maior dever de uma mãe, na Índia; por ser mãe, é seu dever ser servida por último e há de cuidar com que todos fiquem servidos antes que chegue sua vez. Por isso a mãe é considerada como deus, na Índia. A mãe do ser que é o objeto de nossa dissertação, era o protótipo da mãe hindu. Quanto mais elevada for a casta, maiores são as restrições. As pessoas de casta inferior podem comer e beber tudo o quanto goste; mas a medida em que os homens se elevam na escala social, lhe são impostas mais e mais restrições e quando alcançam a casta mais elevada do brahman, o sacerdócio hereditário da Índia, suas vidas, como disse, ficam muito restritas. Comparadas com os costumes ocidentais, suas vidas são de contínuo ascetismo. Mas têm grande estabilidade; quando se aferram a uma idéia, perseveram nela até sua conclusão final e a mantém gerações após gerações, até obter algo prático dela. Uma vez que tenham uma idéia, não é fácil tira-la; mas é difícil fazer com que tenham tomem uma nova.
Por conseguinte, os hindus ortodoxos são muito exclusivos; vivem dentro de seu próprio horizonte de pensamento e sentimento. Suas vidas são planejadas, até o menor detalhe, em nossos antigos livros e se aferram ao mínimo pormenor com firmeza diamantina. Preferem morrer de fome antes de comer algo cozido pelas mãos de um homem que não pertença a sua pequena seção de casta. Além do que possuem intensidade e tremenda sinceridade. É intensa a fé e a vida religiosa, com freqüência, entre os hindus ortodoxos, porque sua mesma ortodoxia provém da profunda convicção do que é correto. Pode ser que nem todos acreditemos que o que ele mantém com tanta perseverança seja o correto; para ele é.
Agora, em nossos livros está escrito que o homem há de ser sempre caritativo ao extremo. Se um homem morre de fome por ajudar outro e salvar-lhe a vida, é o correto; até se afirma que um homem deve fazer isso. E se espera que um brahman leve esta idéia ao extremo. Quem está familiarizado com a literatura da Índia, recordará uma velha história sobre esta caridade extrema; de como uma família inteira, segundo relata o Mahabharata, morreu de fome e deu sua última comida a um mendigo. Isto não é um exagero, pois tais coisas ocorrem. Tanto o caráter do pai como o da mãe do Mestre, eram dessa condição.
Eram muito pobres não obstante, muitas vezes a mãe passava fome o dia inteiro, por ajudar um pobre. Deles nasceu este menino, o qual foi peculiar desde sua infância. Recordava seu passado desde seu nascimento; era consciente do propósito para o qual havia vindo ao mundo e dedicou todo seu poder para realizar tal propósito. Seu pai morreu sendo ele muito jovem e então foi enviado à escola. O filho de um brahmin vai à escola; a casta o limita a profissão do saber, unicamente. O antigo sistema de educação na Índia, que prevalece em muitas partes do país, especialmente com conexão com os sannyasines, era muito diferente do sistema moderno. Os estudantes não tinham que pagar nada. Considerava-se o conhecimento tão sagrado, que nenhum homem deveria vende-lo. O conhecimento se dava livremente e sem preço algum. Os instrutores costumavam receber os estudantes sem remuneração alguma; não só isso, mas davam à maioria deles alimentos e roupa.
Para sustentar esses instrutores, as famílias ricas, em determinadas ocasiões, tais como bodas ou enterros, lhes fazia doações. Os considerava como o primeiro e maior direito a certas doações; eles, por sua vez, mantinham seus estudantes. Esse rapaz do qual estou falando, tinha um irmão maior, erudito professor, com o qual fez seus estudos. Em pouco tempo o rapaz se convenceu de que o objetivo de toda a instrução secular era só o do progresso material e decidiu abandonar o estudo e dedicar-se a obtenção do conhecimento espiritual. Como o pai estava morto e a família era muito pobre, o rapaz teve que ganhar a vida. Foi a um lugar perto de Calcutá e se fez sacerdote de um templo. Ser sacerdote em um templo era considerado muito degradante para um brahman. Nossos templos não são igrejas e o sentido que vós dais a esta palavra, não são lugares para o culto público. Os templos são erigidos, em sua maior parte, pelos ricos como ato religioso meritório.
Se um homem possui muitas propriedades, quer construir um templo. Coloca nele um símbolo ou a imagem de alguma encarnação de Deus e o dedica ao culto em nome de Deus. O culto é análogo ao que celebram as igrejas católicas romanas, se parece muito com a missa, se lêem certas passagens dos livros sagrados, oscilando uma luz ante a imagem e a tratam, em todos os sentidos, como tratamos a um grande homem. Isto é tudo o que se faz no templo. Quem vai ao mesmo, não é considerado por ele como melhor que quem nunca vai. Mais propriamente, o último é considerado mais religioso; porque a religião na Índia é questão privada de cada um e todo o culto se realiza na privação no próprio lar. Em nosso país, desde os tempos mais antigos, se considera como ocupação degradante ser sacerdote em um templo. Por detrás disso há outra e é que, como a instrução, mas em sentido muito mais estrito em religião, está o fato de que os sacerdotes do templo recebem remuneração por seu trabalho, comercializando, assim, com coisas sagradas. Podeis, pois, imaginar a amargura do rapaz ao se ver obrigado, pela pobreza, a tomar a única ocupação permitida para ele, a de sacerdote de um templo.
É sabido que em Bengala há vários poetas, cujos cantos são populares e são cantados pelas ruas de Calcutá e em todas as aldeias. Na sua maioria são cantos religiosos, cuja única idéia central, que talvez seja peculiar às religiões da Índia, é a idéia de realização. Não existe na Índia um livro sobre religião que não acalente esta idéia. O homem há de realizar Deus, há de sentir Deus, há de ver Deus, há de falar com Deus. Isso é religião. O ambiente hindu está cheio de histórias de pessoas santas que têm visão de Deus. Tais doutrinas forma a base de sua religião; todos esses velhos livros e escrituras têm sido a obra de pessoas que alcançaram contato direto com fatos espirituais. Estes livros não foram escritos para o intelecto, nem razão alguma pode entende-los, porque foram escritos por homens que viram as coisas que escrevem e só os podem entender quem se elevar à mesma altura. Eles afirmam que existe a chamada realização até nesta vida e que é exeqüível para todos; a religião começa com a abertura desta faculdade, se posso chamar assim.
Tal é a idéia central de todas as religiões; por isso se dá o caso de encontrar um homem com faculdades do mais eloqüente orador, ou a da lógica mais convincente, pregando as doutrinas mais elevadas e que, não obstante, não consegue fazer com as pessoas o escutem; em troca encontramos outro, um pobre homem capaz apenas de falar o idioma de seu próprio país e, no entanto, meia nação o adora como Deus, até durante sua vida. De uma maneira ou de outra, é difundida a idéia de que este se elevou a esse estado de realização em que para ele a religião já não é questão de conjeturas e já não anda às apalpadelas em questões transcendentais como religião, a imortalidade da alma e Deus; as pessoas vêm de todas as partes para vê-lo e gradualmente começam a adora-lo como a uma encarnação de Deus.
No templo havia uma imagem da “Bem-Aventurada Mãe”. Este rapaz tinha que dirigir o culto matinal e o vespertino; pouco a pouco invadiu sua mente esta única idéia: “Existe algo por detrás desta imagem? É verdade que há no universo uma Mãe de Bem-Aventurança? É verdade que ela vive e guia este universo, ou é tudo um sonho? Há alguma realidade na religião?”. Quase todos os meninos hindus sentem este ceticismo, que é o ceticismo dominante em nosso país: É real isto que estamos fazendo? As teorias não nos satisfazem. Embora tenhamos a nossa disposição todas as teorias que se formularam a respeito à alma e a Deus.
Nem os livros, nem as teorias podem nos satisfazer; a única idéia que domina a milhares, é esta de realização. É verdade que existe um Deus? Se é verdade, posso vê-lo? Posso realizar a verdade? A mente ocidental pensará que tudo isto é o mais impraticável, mas para nós é intensamente prático. Por essa idéia os homens abandonam seus lares e muitos deles morrem por causas das penas que têm que sofrer. Para a mente ocidental isto há de parecer visionário e eu posso ver a razão deste ponto de vista. Mas, depois de anos de residência no Ocidente, creio que esta idéia é a coisa mais prática na vida.
A vida é momentânea, tanto se sois um varredor como um imperador governando a milhões. A vida é só momentânea, seja que gozeis da melhor saúde ou sofrais a pior. Há uma só solução na vida, disse o hindu e a essa se chama Deus e religião. Se isto é verdade, a vida se faz explicar, a vida se faz suportável e chega a fazer-se desfrutável. De outra maneira a vida é uma carga inútil. Tal é nossa idéia, mas não há razão capaz de demonstra-la; a razão só pode faze-la provável e nisto detém-se. Os fatos dependem somente dos sentidos e nós temos que sentir a religião para demonstra-la. Temos de sentir a Deus para nos convencermos que há um Deus. Só nossas próprias percepções podem dar realidade a essas coisas para nós.
Esta idéia se apoderou do rapaz e sua vida inteira ficou concentrada nela. Dia após dia, dizia chorando: “Mãe, é verdade que existes ou é tudo poesia? É a Bem-aventurada Mãe imaginação dos poetas e de pessoas equivocadas, ou existe na realidade?”. Vimos que de leituras, de instrução, no sentido que damos a esta palavra, nada possuía; em conseqüência, tanto mais natural, tanto mais sã era sua mente, tanto mais puros seus pensamentos não contaminados com pensamentos de outros. Aquele pensamento dominante em sua mente se fortaleceu dia após dia, até que foi incapaz de pensar em outra coisa. Já não podia dirigir o culto apropriadamente; já não podia atender aos diversos detalhes em toda sua minúcia. Com freqüência se esquecia de colocar a oferenda de comida ante sua imagem, às vezes se esquecia de fazer oscilar a luz, de tudo o mais. Por fim, se fez impossível servir no templo. O abandonou e internou-se num pequeno bosque que ficava perto e ali viveu. Sobre esta parte de sua vida, ele me disse muitas vezes que não podia dizer quando saía o sol, nem quando se punha, nem como viveu. Perdeu todo o pensamento de si mesmo e se esqueceu de comer. Durante esse período esteve amorosamente vigiado por um parente, que punha o alimento em sua boca e ele o mastigava mecanicamente.
Dias e noites transcorreram assim para o jovem. Ao anoitecer, o toque das campanas dos templos chegavam ao bosque; as campanas e as vozes de pessoas cantando entristeciam muito ao rapaz, que chorando exclamava: “Um dia se foi em vão, Mãe, e Tu não vieste; outro dia desta curta vida se foi e eu não conheci a verdade”. Na angústia de sua alma, às vezes, esfregava seu rosto contra a terra e chorava.
Esta é a tremenda sede que se apodera do coração humano. Mais tarde, este mesmo homem me dizia: “Filho meu, suponha que haja um saco de ouro em uma casa e um ladrão em uma casa contígua. Crês que o ladrão pode dormir? Não pode. Sua mente estará continuamente pensando em como entrar na outra casa e apoderar-se do ouro. Crês tu, então, que um homem firmemente persuadido de que existe uma realidade por detrás de todas estas sensações, de que existe um Deus, de que existe o Uno que nunca morre, o Uno que é infinito em meio a toda bem-aventurança e comparados com ela estes prazeres dos sentidos são simples joguetes, pode descansar resignado sem lutar por alcança-lo? Pode parar por um momento seus esforços? Não. Enlouquecerá em tal anseio”.
Esta divina loucura se apoderou do rapaz. Naquele tempo não tinha instrutor; ninguém que o aconselhasse; todo o mundo acreditava que estava louco. Assim pode ocorrer; a quem se afasta das inutilidades do mundo, chamam de louco; mas tais homens são o sal da terra. De tais loucuras têm surgido poderes que movem este nosso mundo e só de tal loucura virão os poderes que, no futuro, moverão o mundo.
Assim passaram dias, semanas, em contínua luta da alma para chegar a verdade. O jovem começou a ter visões, ver coisas maravilhosas; os segredos de sua natureza começaram a abrir-se para ele. Véu atrás de véu, por assim dizer, ia desaparecendo. A Mãe mesma se converteu no instrutor e iniciou o rapaz na verdade que buscava. Nesta oportunidade chegou ao lugar uma mulher; formosa, erudita além de toda comparação. Mais tarde, este Santo costumava dizer com respeito a ela, que não era erudita, mas a encarnação da erudição; que era a sabedoria mesma em forma humana.
Aqui vedes também o peculiar da nação indiana. Em meio à ignorância em que a metade das mulheres hindus vive, em meio do que nos países ocidentais se chama de falta de liberdade, pode surgir uma mulher de tão suprema espiritualidade. Ela foi uma sannyasini, porque as mulheres também renunciam ao mundo, deixam suas propriedades, não se casam e se dedicam ao culto de Deus. Veio ela e ao inteirar-se deste jovem no bosque, se ofereceu para ir vê-lo e a sua ajuda foi a primeira que ele recebeu. De imediato compreendeu em que consistia a dificuldade e lhe disse: “Filho meu, bendito é o homem que chega a tal loucura. O universo inteiro está louco; uns por riquezas, outros por prazeres, alguns por fama e outras por centenas de outras coisas. Bendito é o homem que está louco por buscar a Deus. Estes são muito poucos”.
Esta mulher permaneceu perto do jovem durante anos; lhe ensinou as formas de religião da Índia; o iniciou nas diferentes práticas de yoga e, como se diz, canalizou aquela tremenda torrente de espiritualidade.
Mais tarde foi ao mesmo bosque um sannyasin, um dos monges mendicantes da Índia, um erudito, um filósofo. Era um homem peculiar; um idealista. Não acreditava que neste mundo existia tal realidade e para demonstrar que nunca viveria sob um teto, vivia ao ar livre, mesmo sob a chuva ou a luz do sol. Este homem começou a ensinar ao rapaz a filosofia dos Vedas e logo descobriu, com surpresa, que em certos pontos o discípulo sabia mais que o mestre. Esteve por vários meses com o rapaz e depois de inicia-lo na ordem dos sannyasines, partiu.
Os parentes acreditaram que poderiam curar sua loucura casando-o. Às vezes, na Índia, os pais e os parentes casam as crianças sem seu consentimento. Haviam casado este jovem com a idade de uns dez ou oito anos, com uma menina de cinco. Naturalmente, tal matrimônio não é mais que um compromisso; o verdadeiro matrimônio se verifica quando a esposa tem mais idade; o costume é que o esposo busque a noiva e a traga a seu lar. Neste caso, no entanto, o esposo tinha esquecido completamente que tinha uma esposa.
Em seu longínquo lar, a moça tinha ouvido que seu marido havia-se convertido em um entusiasta religioso, a quem alguns até consideravam louco. Decidiu averiguar a verdade por si mesma; pôs-se a caminho e chegou ao lugar de residência de seu esposo. Quando, por fim, ficou em sua presença, este reconheceu, em seguida, o direito que ela tinha a sua vida; não obstante que na Índia toda pessoa, homem ou mulher, que abraça a vida religiosa, fica por isso mesmo livre de toda outra obrigação, o jovem rindo-se aos pés de sua esposa, disse: “aprendi a considerar toda mulher com a Mãe; mas eu estou a teu serviço”.
A donzela era pura e nobre, foi capaz de compreender as aspirações de seu esposo e simpatizou com elas. De imediato lhe disse que não desejava arrasta-lo à vida mundana, senão estar perto dele, servir-lhe e aprender com ele. Assim, converteu-se em uma de suas devotas discípulas, reverenciando-o sempre como a um ser divino. De maneira que graças ao consentimento de sua esposa, desapareceu a última barreira e pode livremente levar a vida que havia escolhido.
Imediatamente depois, o desejo que se apoderou da alma deste homem foi conhecer a verdade acerca das diversas religiões. Até então não havia conhecido nenhuma religião que a sua própria, queria saber como eram as demais. Assim, buscou instrutores das outras religiões. Deveis ter presente sempre o que entendemos na Índia por instrutores; não a vermes de bibliotecas, senão a homens que realizaram, que conhecem a verdade de primeira mão e não séculos depois. Encontrou um santo maometano e foi viver com ele; submeteu-se às disciplinas que este lhe prescreveu e descobriu, com surpresa, que uma vez cumpridas fielmente, tais disciplinas devocionais lhe conduziram a mesma meta que havia alcançado. Uma experiência similar o levou à verdadeira religião de Jesus, o Cristo. Percorreu as diversas seitas existentes em nosso país, que estavam a sua disposição e tudo o quanto empreendeu, o praticou de todo coração. Fez exatamente o quanto lhe diziam que fizesse, e em cada caso obteve idêntico resultado. Desta maneira, pela própria experiência, soube que a meta de todas as religiões é a mesma; que cada uma trata de ensinar a mesma coisa; que a diferença estava, principalmente, no método e, sobretudo, na linguagem. No fundo, todas as seitas e todas as religiões têm a mesma finalidade.
Logo chegou a convicção de que, para ser perfeito, é preciso abandonar a idéia de sexo, porque a alma não tem sexo, a alma não é masculina nem feminina. O sexo existe somente no corpo e o homem que deseja chegar ao espírito não pode, ao mesmo tempo, manter distinções quanto ao sexo. Tendo nascido em um corpo masculino, este homem queria por a idéia feminina em todas as coisas. Começou a pensar que era mulher, se vestiu de mulher, falou como mulher, abandonou as ocupações próprias dos homens e viveu entre as mulheres de sua própria família, até que depois de anos desta disciplina, sua mente mudou e esqueceu completamente a idéia de sexo; todo pensamento a este respeito se desvaneceu e todo seu ponto de vista sobre a vida mudou, para ele.
Se fala no Ocidente da adoração das mulheres; mas o que se adora comumente, é sua beleza e juventude. Em troca, este homem entendia por adoração às mulheres, que todo rosto de mulher era o da Bem-Aventurada Mãe e nada mais que isso. Eu mesmo o vi frente às mulheres depreciadas pela sociedade, cair a seus pés banhado em lágrimas, dizendo: “Mãe, em tua forma Tu estás na rua, em outra forma Tu és o universo. Eu te saúdo, Mãe, eu te saúdo”. Imaginem a santidade dessa vida, da qual se havia desvanecido toda carnalidade; em que cada rosto de mulher se transfigurava unicamente no rosto da Mãe Divina, a Bem-Aventurada, a Protetora da raça humana, brilhando sobre o homem capaz de olhar toda mulher com tal amor e reverência! Isso é o que nós queremos. Ousais dizer que a divindade por trás de toda mulher pode ser enganada? Nunca foi e jamais será. Esta divindade, inconscientemente, se impõe por si mesma. Infalivelmente se descobre a fraude, descobre a hipocrisia; em equivocar-se, sente o calor da verdade; a luz da espiritualidade, a santidade da pureza. Tal pureza é absolutamente necessária, quando se alcança a verdadeira espiritualidade.
Esta rigorosa e imaculada pureza se encontrava na vida daquele homem; todas as lutas que temos em nossas vidas haviam terminado para ele. As gemas de espiritualidade, duramente conquistadas, pelas quais havia dado três quartas partes de sua vida, estavam já em condições de serem entregues à humanidade e, então, começou sua missão. Seus ensinamentos e pregações eram peculiares, pois nunca assumia a posição de mestre. Em nosso país, o mestre é uma pessoa venerada; é considerado como Deus. Não temos o mesmo respeito nem a nosso pai e mãe. Estes nos dão o corpo, mas o mestre nos mostra o caminho da salvação. Somo seus filhos; nascemos na linha espiritual do mestre.
Todos os hindus vêm tributar sua homenagem a um mestre extraordinário; todos se agrupam ao seu redor. Naquele homem estava o mestre, mas não pensava se tinha que ser respeitado ou não, não tinha a menor idéia se que erra um grande mestre; acreditava que era a Mãe que fazia tudo, não ele. Sempre dizia: “Se algo bom sai de meus lábios, é a Mãe a que fala; que tenho que ver eu com isso?”. Esta foi a única idéia com respeito a sua obra e até o dia de sua morte, nunca a abandonou. Seu princípio era: primeiro formar o caráter e conquistar a espiritualidade; logo os resultados viriam por si mesmos. Sua ilustração favorita era: “Quando a flor de loto se abre, as abelhas vêm por sua própria decisão sugar o mel; deixa que o loto de teu caráter floresça completamente e o resultado sobrevirá”. Esta é uma grande lição que devemos aprender.
Meu mestre me ensinou esta lição centenas de vezes; contudo, com freqüência a esqueço. Poucos compreendem o poder do pensamento; logo, não apresseis a cavar a cova para se encerrar nela e pensar um pensamento realmente grande e depois de morrer, esse pensamento atravessará os muros diamantinos da cova, vibrará no espaço e finalmente penetrará na raça humana inteira. Tal é o poder do pensamento; logo, não se apresseis a dar vossos pensamentos a outros. Primeiro tende algo que dar. Só ensina quem tem algo a dar; porque ensinar não é falar; ensinar não é repartir doutrinas, é comunicar. A espiritualidade pode se comunicar tão realmente como eu os posso dar uma flor. Isto é verdade em seu mais literal sentido. Esta idéia é muito antiga na Índia e tem sua ilustração no Ocidente, na crença teórica da sucessão apostólica. Por conseguinte, primeiro formar o caráter; tal é o dever mais elevado que podeis cumprir. Conheceis a verdade por vós mesmos e muitos virão a quem podeis ensinar depois. Tal era a atitude de meu mestre; ele não censurava a ninguém.
Durante anos vivi com tal homem, mas jamais ouvi de seus lábios uma palavra de condenação contra seita alguma. Tinha a mesma simpatia para com todas, havia descoberto a harmonia entre elas. O homem pode ser intelectual, ou devocional, ou místico, ou ativo e as diversas religiões representam um e outro desses tipos. No entanto, é possível que se combinem os quatro em um mesmo homem e isto é o que alcançará a humanidade do futuro. Tal era sua idéia. Não condenava a nenhuma, senão que via o bem de todos.
As pessoas corriam por milhas para ver este homem maravilhoso, para ouvi-lo falar em um dialeto cada palavra da qual era potentado e estava carregada de luz. Não é o que se diz, nem em linguagem que se emprega, senão a personalidade de quem fala e que anima sua palavra e lhe dá influência. Cada um de nós percebe isso, às vezes. Ouvimos esplêndidos discursos, conferências maravilhosamente racionais; vamos para casa e esquecemos o quanto ouvimos. Outras vezes ouvimos umas poucas palavras ditas na linguagem mais singela e estas nos acompanham toda nossa vida, chegam a ser parte e porção de nós mesmos e produzem resultados duradouros. A palavra de um homem capaz de por sua personalidade nela produz efeito, mas há de ter uma personalidade formidável. Todo ensinamento implica em dar e tomar; o mestre dá e a aluno recebe; mas o primeiro há de ter algo que dar e o segundo, há de estar disposto a receber.
Este homem foi viver perto de Calcutá, capital da Índia e cidade universitária de nosso país, de onde saem a cada ano centenas de céticos e materialistas; contudo, a mais seleta das diversas universidades ia escuta-lo. Falaram-me deste homem e fui ouvi-lo. Sua aparência era como a de qualquer individuo ordinário, nada de notável se via nele. Empregava uma linguagem muito singela e eu me perguntei: Pode este homem ser um grande instrutor? Conduzi-me até ele e lhe fiz a mesma pergunta que havia formulado a outros durante toda a minha vida: “Crês em Deus, Senhor?”. “Sim”, me respondeu. “Podeis prova-lo, Senhor?”. “Sim”. “Como?”. “Porque O vejo, da mesma forma que o vejo aqui, só que num sentido muito mais intenso”. Isso me impressionou. Pela primeira vez havia encontrado um homem que se atrevia a afirmar que via Deus; que a religião era uma realidade, capaz de ser percebida, sentida, de maneira infinitamente mais intensa que o mundo.
Dia a dia me aproximava mais daquele homem e vi, praticamente, que a religião podia ser dada. Um contato, uma olhada e pude transformar uma vida inteira. Eu havia lido a respeito de Buda, de Cristo e de Maomé, todo o escrito sobre essas esses luzeiros de tempos antigos, de como podiam levantar-se e dizer: “Sede tu são” e o homem ficava são. Descobri, então, que isso era verdade e quando vi, por mim mesmo, este homem, todo meu ascetismo se desvaneceu. Podia desenvolver-se; e meu Mestre costumava dizer: “A religião se pode dar e tomar de um modo mais tangível, mais real que qualquer outra coisa no mundo”. É preciso ser espiritual primeiro; ter algo que dar e, então, colocar-se ante o mundo e dá-lo. A religião não é discurso, nem doutrinas, nem teoria, nem tampouco sectarismo. A religião não pode viver em seitas nem sociedades. É a relação entre a alma e Deus; como se pode fazer dela uma sociedade? Desta maneira degeneraria em negócio e onde quer que haja negócio ou princípios comerciais, a espiritualidade morre.
A religião não consiste em erigir templos ou construir igrejas, ou assistir ao culto público; não é encontrada em livros, nem em conferências, nem em palavras, nem em organizações. Todos sabemos que nada nos satisfaz até que conheçamos a verdade por nós mesmos. Não importa o quanto discutamos ou quanto ouçamos, o único que nos satisfaz é nossa própria realização; tal experiência é possível para cada um de nós quando decidimos prova-lo. O primeiro ideal desta intenção de realizar a religião é a renúncia. Até onde nos seja possível, temos de renunciar. A luz e a obscuridade, o gozo do mundo e o desfrute de Deus nunca virão juntos. “Não podeis servir a Deus e a Maomé”.
A segunda idéia que aprendi de meu Mestre, a qual talvez seja a mais vital, é a maravilhosa verdade de que as religiões do mundo não são contraditórias nem antagônicas; só são diversas fases da única Religião infinita e existirá sempre; esta Religião se expressa nos diversos países de diferentes maneiras. Por esse motivo devemos respeitar todas as religiões e procurar aceita-las até onde nos seja possível. As religiões se manifestam, não só segundo a raça e a situação geográfica, mas também segundo os poderes individuais. Em um homem, a religião se manifesta com intensa atividade, como trabalho. Em outro, se manifesta por intensa devoção; em outro, como misticismo e em outro, como filosofia, etc. É errôneo dizer aos outros: “Vossos métodos não são corretos”.
Aprendeis este segredo central de que a verdade pode ser uma e ao mesmo tempo múltipla; de que podemos ter visões diferentes da mesma verdade de diferentes pontos de vista. Então, em vez de sentir antagonismos em qualquer uma delas, sentireis infinita simpatia para com todas. Sabendo que, enquanto nascem neste mundo naturezas diferentes, estas requerem diferentes aplicações das mesmas verdades religiosas, compreendemos que devemos ser indulgentes uns com os outros. Assim como a natureza é unidade dentro da variedade, uma infinita variação no fenomenal e atrás de todas essas variações está o Infinito, o Imutável, o Absoluto, assim também ocorre em cada homem; o microcosmo não é mais que uma repetição em miniatura do macrocosmo; apesar de todas essas variações, nelas e através delas existe eterna harmonia e devemos reconhece-lo. Esta idéia sobre todas as demais constitui, a meu entender, a urgente necessidade da época. Vindo de um país que é um foco de seitas religiosas – ao que por boa ou má fortuna todos aqueles que têm uma idéia religiosa querem se elevar - desde minha infância vivi em contato com as diversas seitas do mundo; até os mórmons foram pregar na Índia. Bem-vindos sejam todos! Aquele é o terreno para pregar qualquer religião, porque enraíza melhor que em qualquer outro país.
Se vais ensinar política, os hindus não os entenderão, mas se pregais religião, por mais estranha que seja, tereis logo centenas e até milhões de sectários e amplas oportunidades de convertê-los em um deus vivente nesta vida. Eu me alegro que assim seja, pois é umas das coisas que queremos na Índia. As seitas dos hindus são muito numerosas, quase infinitas; algumas delas, contraditórias e aparentemente sem remédio. No entanto, todas elas dizem que não são manifestações diferentes da Religião. “Assim como os diferentes rios nascem em montanhas diferentes e fluem serpenteando ou em linha reta, mas todos levam e mesclam suas águas no oceano, assim, as diferentes seitas, com seus diversos pontos de vista, chegam todas, no final, a Ti”. Isto não é teoria, há de se reconhecer, mas não com condescendência desdenhosa, como se dissesse: “Oh, sim, tem algumas coisas muito boas” (alguns até sustentam a peregrina idéia de que todas as religiões são pequenos fragmentos de uma evolução pré-histórica) “mas a nossa é a realização das coisas”. Um diz que por ser a sua a religião mais antiga, é a melhor; outro afirma o mesmo porque a sua é a última. Temos que reconhecer que cada um deles têm o mesmo poder de salvar que o outro. Isso de que existe alguma diferença, é superstição crassa que se ouve em todas as partes.
O mesmo Deus responde a todos; não sois vós, nem eu, nem ninguém, os responsáveis pela segurança e salvação do mais mínimo fragmento de alma; o mesmo Deus todo-poderoso é responsável por todas elas. Não compreendo como pessoas que afirmam crer em Deus, podem crer, ao mesmo tempo, que Deus confiou toda a verdade a um pequeno grupo de homens e que estes são os guardiões do resto da humanidade. Não trateis de perturbar a fé de homem algum. Se podeis dar-lhe algo melhor, se podeis apoiar a um homem onde quer que este se encontre e empurra-lo para cima, faça-o, mas não destruas o que já existe. O único instrutor verdadeiro é aquele capaz de descer, no mesmo instante, ao nível do discípulo e transferir sua alma à do discípulo, ver por todos os olhos deste, ouvir pelos seus ouvidos e entender por sua mente. Tal instrutor pode ensinar, mas não outro. Todos esses instrutores negativos, destruidores, que existem neste mundo, nunca poderão fazer bem algum.
Em presença de meu Mestre compreendi que o homem pode ser perfeito, mesmo em seu corpo atual. Seus lábios nunca condenaram, nem sequer censuraram ninguém. Aqueles olhos haviam transcendido a possibilidade de ver o mal, aquela mente havia perdido o poder de pensar mal. Não via mais que bem. Essa formidável pureza, essa formidável renúncia, é o único segredo da espiritualidade. “Nem pela riqueza, nem pela progênie, mas somente pela renúncia se alcança a imortalidade”, dizem os Vedas. “Vende tudo o que tenhas, dê-lhes aos pobres e segue-me”, disse Cristo.
Assim têm-se expressado todos os grandes santos e profetas e o cumpriram em suas vidas. Como há de poder se alcançar grande espiritualidade sem essa renúncia? Esta renúncia está no fundo de todo pensamento religioso, onde quer que esteja; notareis que, a medida em que esta idéia de renúncia perde força, mais penetram os sentidos no campo da religião e a espiritualidade diminui na mesma proporção. Aquele homem era a personificação da renúncia. Em nosso país, para que um homem chegue a ser um saanyasin, tem que abandonar toda riqueza e posição mundanas e isto cumpriu o Mestre ao pé da letra. Teve muitos que consideraram uma bênção que ele tivesse aceitado um favor de suas mãos, que teriam dado milhares de rúpias se ele as quisesse aceitar; mas estes foram os únicos homens dos quais se distanciava. Era um exemplo triunfante, uma realização vivente do completo domínio da cobiça e do desejo do dinheiro. Estava além de toda idéia de ambos. Tais homens são necessários neste século. Essa renúncia é necessária nesta época em que os homens começam a pensar que não podem viver sem o que chamam de “o indispensável”, o qual aumenta em proporção geométrica. Num tempo como este, é necessário que surja um homem capaz de demonstrar aos ascéticos do mundo que deseja um a quem não importa um pouco de ouro e toda a fama existente no universo. E tais homens existem.
Meu Mestre dedicou a primeira parte de sua vida a adquirir espiritualidade e o resto de seus anos a distribui-la. Os homens vinham em multidões para ouvi-lo e ele falava durante vinte horas, das vinte e quatro do dia; e isso não em um dia, mas durante meses e meses, até que, por último, seu corpo se esgotou sob a pressão de tão formidável tensão. Seu intenso amor pelo gênero humano não lhe permitia negar sua ajuda nem ao mais humilde dos milhares que a pediam. Gradualmente se desenvolveu uma doença laríngea mortal; contudo não se pode persuadi-lo de abster-se de tais esforços. Tão logo se inteirava de que as pessoas pediam para vê-lo, insistia em que lhe permitisse a entrada e respondia a todas as suas perguntas. Não havia descanso para ele. Certa vez alguém lhe suplicou: “Senhor, vós sois um grande yogui; por que não põe tua mente um pouco no teu corpo e cura tua enfermidade?”. No princípio não respondeu, mas ao repetir a súplica, disse gentilmente: “Meu amigo, pensava que eras um sábio, mas falas como outros homens do mundo. Esta mente foi entregue ao Senhor, pretendes que devo recupera-la e a ponha no corpo que não é senão uma mera jaula da alma?”.
Assim, continuou pregando ao povo e percorreu a notícia de que seu corpo ia morrer; as pessoas começaram a fluir para ele em multidões maiores que antes, não podeis imaginar como as pessoas corriam a estes grandes instrutores na Índia; agrupam-se ao seu redor e os endeusam enquanto estão vivos. Milhares contentam-se em tocar a barra de sua vestimenta. Mediante esta apreciação da espiritualidade nos outros, se produz espiritualidade. Quando um homem quer e aprecia, isso é o que consegue; o mesmo ocorre às nações. Se vais à Índia e dais uma conferência política, por mais importante que seja, apenas encontrareis pessoas que os escute; mas ide e ensinai religião, vive-a, não faleis meramente dela e centenas virão a vê-los, a tocar vossos pés. Quando as pessoas supunham que era provável que este santo homem os deixaria logo, correram a ele mais que antes e meu Mestre continuou ensinando-lhes, sem a menor consideração por sua saúde. Não podiam impedi-lo. Muitas pessoas vinham contestando suas perguntas: “Enquanto possa falar, devo ensinar-lhes”, dizia e cumpria sua palavra. Um dia nos disse que nesse dia iria abandonar seu corpo e repetindo a palavra mais sagrada dos Vedas, entrou em samadhi e, assim, se foi.
Seus pensamentos e sua mensagem eram conhecidos por muitos poucos capazes de ensina-los. Entre outros, deixou uns poucos rapazes jovens que haviam renunciado ao mundo e estavam dispostos a continuar sua obra. Alguns tiveram a intenção de esmaga-los, mas se mantiveram firmes, pois tinham ante eles a inspiração daquela grande vida. Tendo estado durante anos em contato com aquela vida bendita, não cederam. Estes jovens viviam como sannyasines, mendigando pelas ruas do povoado onde haviam nascido, mesmo alguns pertencendo a famílias de classe alta. No princípio, tropeçaram com grandes antagonismos, mas perseveraram e foram, dia após dia, difundindo por toda a Índia a mensagem daquele grande homem, até que o país inteiro se encheu com as idéias que ele havia pregado. Este homem de uma remota aldeia de Bengala, sem instrução, simplesmente pela pura força de sua determinação, realizou a verdade e a deu a outros, deixando só uns poucos jovens para mantê-la viva.
Hoje o nome de Sri Ramakrishna Paramahansa é conhecido por toda a Índia, com seus milhões de habitantes. E mais, o poder desse homem se estendeu mais além da Índia e se tem havido uma palavra de verdade, uma palavra de espiritualidade enquanto se fala pelo mundo todo, eu devo ao meu Mestre; só os erros são meus.
Esta é a mensagem de Sri Ramakrishna ao mundo moderno: “Não vos preocupeis com doutrinas; não vos preocupeis com dogmas ou seitas, ou com igrejas ou templos; eles contam pouco em comparação com a essência da existência que mora em cada homem, a qual é espiritualidade e quanto mais se desenvolve esta espiritualidade no homem, mais potente é este para o bem. Ganha-a primeiro, adquira-a; não critiqueis nada, porque todas as doutrinas e todos os credos contêm algo de bom. Demonstrai com vossas vidas que a religião não significa palavras, nem nomes, nem seitas, mas realização espiritual. Somente são capazes de compreender aqueles que sentiram. Somente quem alcançou a espiritualidade, pode comunica-la aos outros e podem ser os grandes instrutores do gênero humano. Eles, unicamente, são as potências da luz”.
Quantos mais de tais homens produzam um país, mais este se elevará; o país que careça, em absoluto, de tais homens, está simplesmente condenado, nada o pode salvar. Por conseguinte, a mensagem de meu Mestre à humanidade é: “Sois espirituais e realizais a verdade por vós mesmos”. Ele queria que renunciásseis ao bem de vossos semelhantes; ele queria que deixásseis de trabalhar para provar vossas palavras. Chegou o tempo de renunciar, de realizar; então vereis harmonia em todas as religiões do mundo. Sabereis que não há necessidade de confrontar-se e só então estareis preparados para ajudar a humanidade. A missão do meu Mestre foi proclamar e expor claramente a fundamental unidade subjacente em todas as religiões. Outros instrutores têm ensinado religiões especiais que levam seus nomes, mas este grande instrutor do século XIX não reclamou nada para si; não perturbou nenhuma religião, porque havia realizado que, em realidade, todas elas são parte e porção da única Religião Eterna.
“O SENHOR BUDA”
Swami
Vivekananda
(Conferência dada em Detroit)
Em toda religião encontramos desenvolvida, de maneira particular, um tipo de auto-devoção. O tipo de obrar sem um motivo se desenvolve ao máximo, no budismo. Não confundais budismo com brahmanismo. Neste país sois propensos a essa confusão; o budismo é uma de nossas seitas. Foi fundado por um grande homem, chamado Gautama, que se fartou das eternas discussões metafísicas de sua época, dos complicados rituais e mais especialmente do sistema de castas. Algumas pessoas dizem que pertencemos, por nascimento, a certa condição e, por conseguinte, somo superiores a outros que não pertencem a ela. Estava também contra o terrível sacerdócio. Praticava uma religião na qual não havia motivo egoísta e foi perfeitamente agnóstico quanto à metafísica ou teorias sobre Deus.
Com freqüência perguntavam a Buda se havia um Deus e ele respondia que não sabia. Quando lhe perguntaram qual era a conduta correta, costumava responder: “Obra bem quem é bom”. Acorreram a ele cinco brâmanes pedindo-lhe que houvesse uma discussão entre eles. Um disse: “Senhor, meu livro diz que Deus é tal e tal e que este é o caminho para chegar a Deus”. Outro disse: “Isso é um erro, porque meu livro disse tal e tal e este é o caminho para chegar a Deus”; e assim disseram os demais. Buda escutou a todos eles com calma e depois perguntou a um por um: “Alguns de vossos livros disse que Deus se encoleriza, que causa dano a alguém, que é impuro?”. “Não, senhor; todos eles ensinam que Deus é puro e bom”. “Então, amigos meus, por que não os tornais puros e bons, primeiro, para que possais conhecer o que é Deus?”.
Naturalmente, eu não subscrevo toda sua filosofia; gosto muito da metafísica, mas para mim. Difere em muitos sentidos; não obstante, o fato de que difere, é razão para que não perceba a beleza do homem? Buda foi o único homem desprovido de todo motivo egoísta. Houve outros grandes homens que afirmaram todos ser encarnações de Deus e disseram que quem cresse neles, iriam ao céu. Mas que disse Buda no momento de expirar? “Nada pode ajuda-los; ajuda-os a vós mesmos; obtêm vossa própria salvação”. Sobre si mesmo, disse: “Buda é o nome do conhecimento infinito, tão infinito como o céu; eu, Gautama, alcancei tal estado; todos vós o alcançareis também, se os esforçais para isto”.
Desprovido de todo motivo egoísta, não queria ir ao céu, não queria dinheiro, abandonou seu trono e tudo o demais e foi mendigando seu pão por todas as ruas da Índia, pregando pelo bem dos homens e dos animais, com um coração tão grande como o oceano. Foi o único homem sempre disposto a dar sua vida pelos animais para evitar um sacrifício. Certa vez disse a um rei: “Se o sacrifício de um cordeiro te ajuda ir ao céu, sacrificar um homem te ajudará melhor; então, sacrifica-me”. O rei ficou atônito. E, no entanto, este homem não tinha motivo egoísta algum. É a perfeição do tipo ativo e a altura a que chegou demonstra que, mediante o poder da ação, podemos alcançar também a espiritualidade mais elevada.
Para muitos, o caminho se torna mais fácil se acreditar em Deus. Mas a vida de Buda atesta que até aquele que não crê em Deus, não conhece metafísica, nem pertence a seita alguma; que não vai a nenhuma igreja ou templo e é materialista declarado, até este pode alcançar o mais elevado. Não temos direito de julga-lo. Quisera eu possuir uma parte infinitesimal do coração de Buda. Pode ser que Buda acreditasse ou não acreditasse em Deus; isso não me importa. Ele alcançou o mesmo estado de perfeição que chegaram outros por bhakti (amor a Deus), yoga ou jnana. A perfeição não surge da crença nem da fé. De nada servem os discursos. Os papagaios podem falar, também. A perfeição se alcança mediante a execução desinteressada da ação.
DISCUSSÃO NA UNIVERSIDADE DE
HARVARD 1
Swami Vivekananda
1.
Esta discussão ocorreu na conferência do swami A Filosofia Vedanta, dada
na Sociedade de Graduados em Filosofia da Universidade de Harvard, EE. UU de N.
A., em 25 de março de 1896.
Perg. Gostaria de saber algo sobre o atual movimento do pensamento filosófico na Índia. Até que ponto se discute tais questões?
Resp. Como tenho dito, quase a maioria do povo hindu é “dualista” e a minoria “monista”. O tema principal de discussão é maia e jiva. Ao vir a este país, percebi que os jornaleiros estavam a par da atual condição política, mas quando lhes perguntei o que é religião e quais são as doutrinas de tal ou qual seita, me responderam: “Não sabemos. Vamos a igreja”. Na Índia, se pergunto a um lavrador: “Quem te governa?”, me responde: “Não sei; pago minhas contribuições”. Mas se lhe pergunto qual é tua religião, me responderá: “Sou dualista” e se aprontará para dar-me detalhes sobre maia e jiva. Não sabe ler nem escrever, mas aprendeu tudo isto dos monges e gosta de discuti-lo. Depois de seu trabalho diário, os lavradores se sentam sob uma árvore e discutem essas questões.
Perg. Que significa ortodoxia para os hindus?
Resp. Em tempos modernos significa, simplesmente, obedecer a certas leis de casta e quanto a comida, bebida e matrimônio. Fora disto, o hindu pode adotar qualquer crença que lhe apraza. Nunca existiu na Índia uma igreja organizada, de maneira que nunca houve um grupo de homens que formularam doutrinas ortodoxas. Em termos gerais, dizemos que quem crê nos Vedas são ortodoxos, mas na realidade muitas seitas dualistas crêem mais nos Puranas que nos Vedas unicamente.
Perg. Que influência teve vossa filosofia hinduísta sobre a dos estóicos da Grécia?
Resp. É muito provável que houve alguma influência sobre ela por mediação dos alexandrinos. Existe alguma suspeita de que o pensamento sankhya exerceu alguma influência em Pitágoras. De todo modo, cremos que a filosofia sankhya é o primeiro intento de harmonizar a filosofia dos Vedas por meio da razão. Encontramos a Kapila citado até nos Vedas: “Aquele que apóia por meio do conhecimento o primeiro sábio nascido, Kapila”.
Perg. Em que consiste o antagonismo entre este pensamento e a ciência ocidental?
Resp. Não há antagonismo algum. Estamos em harmonia com ela. Nossa teoria da evolução, do akasha e prana é, exatamente, a que vossas filosofias modernas sustentam. Vossa crença na evolução também se acha entre nossos yoguis e na filosofia sankhya. Por exemplo, Patanjali fala de uma espécie que se transforma em outra por infiltração da natureza; só difere de vós na explicação; o explica como evolução espiritual. Disse que assim como quando um agricultor quer regar seu campo, pegando a água dos canais próximos, não tem mais que levantar a comporta, assim também cada homem é o Infinito, só que barras e cavilhas o tem dificultado; mas, enquanto as elimina, se lança e expressa a si mesmo. No animal, o homem estava em estado latente, mas quando surgiram circunstâncias favoráveis, se manifestou como homem. Assim mesmo, tão logo como as circunstâncias foram adequadas, se manifestou Deus no homem. De modo que temos muito pouco em que diferir com as novas teorias. Por exemplo, a teoria da sankhya, quanto à percepção, difere muito pouco da moderna fisiologia.
Perg. Mas vosso método é diferente?
Resp. Com efeito. Sustentamos que o único meio para chegar ao conhecimento é concentrar os poderes da mente. Na ciência externa, concentração da mente é fixa-la em algo externo; na ciência interna, é atrai-la si mesmo. Chamamos yoga a esta concentração da mente.
Perg. No estado de concentração, se torna evidente a verdade destes princípios?
Resp. Os yoguis sustentam muitas coisas. Afirmam que por meio da concentração mental, todas as verdades do universo se fazem evidentes para a mente; tanto a verdade interna como a externa.
Perg. Que pensam os advaitistas sobre cosmologia?
Resp. O advaitista diria que toda esta cosmologia e tudo o mais existe unicamente em maia, no mundo fenomenal. Na verdade, não existem. Mas enquanto estamos sujeitos, temos que perceber estas visões. Dentro destas visões as coisas vêm com certa ordem regular. Mas além delas não há lei nem ordem, senão liberdade.
Perg. Existe antagonismo entre a advaita e o dualismo?
Resp. Como os Upanishads não estão em forma sistemática, foi fácil aos filósofos escolherem textos onde quiseram para formar um sistema, mas sempre buscaram esses textos nos Upanishads, pois do contrário seus sistemas careceriam de base. No entanto encontramos nos Upanishads todas as diferentes escolas de pensamento. Nossa conclusão é que não há antagonismo entre a advaita e o dualismo. Dizemos que este último é só um de três escalões. A religião compreende três escalões. O primeiro é o dualismo; logo o homem ascende a um estado mais elevado, ou seja, não-dualismo parcial. Finalmente percebe que é uno com o universo. Por conseguinte, os três não se contradizem, mas se complementam.
Perg. Por que existe maia ou ignorância?
Resp. O porquê não se pode perguntar mais além do limite de causa. Só se pode perguntar dentro de maia. Dizemos que responderemos a pergunta quando for formulada logicamente. Antes disto não temos direito de responder.
Perg O Deus pessoal pertence a maia?
Resp. Sim; mas o Deus pessoal é o mesmo Absoluto visto através de maia. O absoluto, sob o controle da natureza, se chama a alma humana; e o que controla a natureza é ishvara ou o Deus pessoal. Se um homem parte daqui para vir o sol, primeiro o verá pequeno, mas na medida em que sobe o verá mais e mais grande, até que chegue ao sol real. Em cada etapa de sua ascensão verá, aparentemente, um sol diferente; no entanto estamos seguros de que está vendo o mesmo sol. De mesma maneira que todas estas coisas não são visões do Absoluto e em tal sentido são reais. Nenhuma é uma visão falsa; só podemos dizer que constituem uma etapa mais baixa.
Perg. Qual é o procedimento especial pelo qual alguém chega a conhecer o Absoluto?
Resp. Nós dizemos que há procedimentos: um positivo e outro negativo. O positivo é aquele pelo qual o universo marcha, ou seja, o do amor. Se este círculo de amor se dilata indefinidamente, chegamos ao amor universal único. O outro é o “neti”, “neti” – “não isto”, “não isto”; detendo cada onda na mente que trate de desvia-la; ao fim, a mente morre, por assim dizer e a Real descobre a si mesma. Nós chamamos a isso “samadhi” ou superconsciência.
Perg. Isso seria, então, fundir o sujeito com o objeto!
Resp. Fundir o objeto no sujeito, não fundir o sujeito no objeto. Na realidade, este mundo morre e eu permaneço. Eu sou o único que permanece.
Perg. Alguns de nossos filósofos, na Alemanha, têm opinado que a doutrina inteira é bhakti (amor ao divino) e a Índia foi, muito provavelmente, resultado de influência ocidental.
Resp. Não apoio tal idéia, essa suposição foi efêmera. O hbakti da Índia não é o mesmo que o do Ocidente. A idéia nossa central é que não devem existir pensamentos de temor; repete sempre: ama a Deus. Não há adoração por medo, mas sempre por amor, do princípio ao fim. Em segundo lugar a suposição não é necessária. Fala-sede bhakti no mais antigo dos Upanishads, o qual é muito mais velho que a Bíblia cristã. Os germes de bhakti se encontram até nos “samhita” (hinos védicos). A palavra bhakti não é ocidental; foi sugerida pela palavra ”shraddha”.
Perg. Que idéia tem a Índia sobre a fé cristã?
Resp. Que é muito boa. A vedanta aceita todos. Na Índia pensamos de um modo peculiar. Suponhamos que tenho um filho; não devo ensinar-lhe religião alguma, hei de ensinar-lhe respirações; a prática de concentração da mente e só uma brevíssima oração; não oração no vosso sentido, mas simplesmente algo assim: “Eu medito Nele que é o criador deste universo; que Ele ilumine minha mente”. Desta maneira será educado; logo irá ouvir aos diferentes filósofos e instrutores. Entre estes escolherá aquele que melhor lhe acomode. E será este seu guru ou instrutor e ele se converterá em um “shishya” ou discípulo. Dirá a esse homem: “Esta forma de filosofia que vos pregais é a melhor; sendo assim, ensina-me”. Nossa idéia fundamental é que vossa doutrina não pode ser a minha, nem a minha a vossa. Cada um há de ter sua maneira própria. Minha filha pode ter um método; meu filho, outro e eu, de minha parte, outro. Cada um tem, pois, seu “ishta”, ou caminho escolhido; mas não o revelamos. O segredo se conserva entre o instrutor e o discípulo para não suscitar querelas. De nada serve falar destas coisas com outros, porque cada um terá que encontrar seu próprio caminho, de maneira que só se pode ensinar filosofia geral e métodos gerais universalmente. Tomemos um caso, dando um exemplo ridículo, que me convenha dizer que para meu melhor desenvolvimento espiritual devo manter-me parado sobre um pé. Os pareceria ridículo se eu dissesse que todos devem fazer o mesmo; mas convém a mim. Me é perfeitamente possível ser dualista e para minha esposa, monista, etc. Um de meus filhos pode adorar Cristo, ou Buda, ou a Maomé, contanto que obedeça as leis da casta. Tal é o ponto “ishta”.
Perg. Crêem todos os hindus em castas?
Resp. Estão obrigados a isso. Pode ser que não creiam, mas têm que obedecer.
Perg. Praticam-se universalmente os exercícios de respiração e concentração?
Resp. Sim. Só que alguns praticam um pouco, o justo para satisfazer os requisitos de sua religião. Os templos da Índia não são como as igrejas daqui; embora todos desapareçam amanhã, não sentirão sua falta. Constrói um templo quem quer ir ao céu, ou ter um filho, ou algo semelhante, logo empregam alguns sacerdotes para que celebrem serviços nele. Eu não necessito ir ali, porque faço meu culto em minha casa. Em cada casa há uma habitação especial, separada, que se chama capela. O primeiro dever da criança, depois de sua iniciação, é tomar um banho e logo render culto; seu culto consiste em praticar a respiração, a meditação e repetir certo nome; ademais deve manter o corpo erguido. Cremos que a mente tem completo poder para manter sadio o corpo. Depois de se fazer isto, vem outro e se senta; cada um guarda silêncio. Às vezes estarão reunidos três ou quatro na mesma habitação, mas cada qual pode ter um método diferente. Este culto é repetido pelo menos duas vezes por dia.
Perg. Esse estado de unidade que o senhor fala é um ideal, ou é algo que se alcança realmente?
Resp. Nós dizemos que está dentro da realidade; dizemos que realizamos tal estado. Se fosse só falácia, de nada valeria. Os Vedas ensinam três coisas; primeiro se há de ouvir acerca de Eu, logo se há de racionalizar e depois, há de meditar sobre ele. Quando um homem ouve estas coisas pela primeira vez, há de racionalizar para não crer com ignorância, mas com conhecimento e, depois, há de realiza-las. E isto é religião. A crença não forma parte da religião. Nós dizemos que a religião é um estado superconsciente.
Perg. Se o senhor chega alguma vez a esse estado de superconsciência, pode dizer algo sobre o mesmo?
Resp. Não; mas o conhecemos por seus frutos. Quando um idiota dorme, ao despertar segue sendo idiota ou algo pior. Outro homem se abisma na meditação e quando sai dela, é um filosofo, um sábio ou um grande homem. Isso mostra a diferença entre estes estados.
Perg. Queria perguntar, prosseguindo a pergunta do professor..., se conhece o senhor pessoas que tenham estudado os princípios do auto-hipnotismo, que indubitavelmente se praticou muito extensamente na Índia e o que se tem dito e praticado recentemente sobre esta questão. Supostamente que não abunda tanto na Índia moderna.
Resp. O que no Ocidente chamais de hipnotismo não é senão uma parte do real. Os hindus o chamam auto-hipnose. Dizem que vós estais já hipnotizados, que deveis sair de tal estado e des-hipnotizar vós mesmos. “Ali o sol não pode iluminar, nem a lua, nem as estrelas; nem tampouco o resplendor do raio; que dizer deste fogo mortal! Brilhando isso, tudo o mais brilha”. Isto não é hipnose, mas des-hipnose. Nós dizemos que toda religião que pregue essas coisas como reais, pratica uma forma de hipnotismo. O seu é o único sistema que sabe, mais ou menos, que o hipnotismo acompanha toda forma de dualismo. Mas o advaita diz: arremessa até o Deus pessoal; arremessa longe mesmo os Vedas; arremessa até teu próprio corpo e mente e não deixes nada, a fim de ver-te perfeitamente livre do hipnotismo. “Ali, nem a mente, nem a palavra, alcançam; conhecendo a bem-aventurança de Brahman, já não existe o medo”. Isto é des-hipnose. “Não tenho nem vício nem virtude, nem infelicidade nem felicidade; não me interessa os Vedas, nem sacrifícios, nem cerimônias; não sou nem alimento, nem comida, nem o que a come, porque eu sou Existência Absoluta, Conhecimento Absoluto, Bem-aventurança Absoluta; eu sou Ele, eu sou Ele”. Sabemos tudo sobre o hipnotismo. Temos uma psicologia que o Ocidente começa agora a conhecer, mas inadequadamente, lamento dizê-lo.
Perg. A que chamais de corpo astral?
Resp. O corpo astral é o que chamamos “linga sharira”. Quando este corpo morre, como pode vir a tomar outro corpo? A força não pode manter-se sem matéria. Assim permanece uma pequena porção de matéria sutil, por meio da qual os órgãos internos constroem outro corpo. Porque cada qual está fabricando seu próprio corpo. É a mente que faz o corpo. Se eu chego a ser um sábio, meu cérebro se transforma no de um sábio; e os yoguis dizem que, mesmo nesta vida, um yogui pode mudar seu corpo em um corpo-deus.
Os yoguis exibem muitas coisas maravilhosas. Uma onça de prática vale como mil libras de teoria. Portanto, eu não tenho direito de dizer que, por não ter visto fazer isto ou outro, é falso. Os livros yoguis dizem que, mediante a prática, pode-se conseguir múltiplos resultados maravilhosos. Os resultados pequenos se podem conseguir em curto tempo, mediante prática regular; de modo que se vê que não há fraude, nem charlatanismo nisso. Estes yoguis explicam, de maneira cientifica, as mesmas coisas maravilhosas mencionadas em todas as escrituras. A questão está em como estes registros de milagres penetraram em todas as nações. O homem que diz que todos são falsos e que não necessita explicação, não é razoável. Vós não tendes o direito de nega-los enquanto não possais demonstrar sua falsidade. Só depois de provar que carecem de todo fundamento, tereis o direito de levanta-los e nega-los. Mas isto vós não fizestes. Por outro lado, os yoguis dizem que não são milagres e afirmam que podem realiza-los também hoje. Na atualidade se fazem coisas maravilhosas na Índia, mas nenhuma delas se faz por milagre. Existem muitos livros sobre o tema. Portanto, se nada é feito a esse respeito, aparte da cientifica aproximação da psicologia, se há de dar crédito aos yoguis.
Perg. Pode o senhor dizer, no concreto, que demonstrações pode fazer o yogui?
Resp. O yogui não quer que tenhamos em sua ciência mais fé que a que temos nas outras ciências; só nos pede que façamos os experimentos com sinceridade. O ideal dos yoguis é tremendo. Eu presenciei as coisas mais baixas que se podem fazer pelo poder da mente; não tenho, pois, direito de negar que possam ser feitas as coisas maiores. O ideal do yogui é paz eterna e amor mediante onisciência e onipotência. Conheço um yogui que foi mordido por uma cobra e caiu exânime ao chão. À tarde se reanimou e ao perguntar-lhe o que havia acontecido, respondeu: “Vi um Mensageiro e meu Bem-amado”. Todo ódio, ira e inveja, foram eliminados naquele homem. Nada o pôde fazer reagir; ele é amor infinito, em todo tempo, e é onipotente em seu poder de amar. Tal é o yogui verdadeiro. E isto de manifestar coisas diferentes é acidental, transitório; não é o que ele quer alcançar. O yogui disse: todo ser humano é um escravo, exceto o yogui. O homem é escravo de seu alimento, do ar, de sua esposa, de seus filhos, do dólar; escravo de sua nação; escravo do nome e da fama e de mil coisas deste mundo. O homem não dominado por nenhuma dessas ligações, é o único homem real, um verdadeiro yogui. “Conquista existência relativa nesta vida quem está firmemente fixado na igualdade. Deus é puro e igual para todos. Por conseguinte, se diz que eles vivem em Deus”.
Perg. Os yoguis atribuem alguma importância à casta?
Resp. Não. A casta é só a escola de treinamento para mentes mesmo não desenvolvidas.
Perg. Não existe conexão entre esta idéia de superconsciência e o calor da Índia?
Perg. Eu não creio; porque esta filosofia foi idealizada a uma altura de mais de quinze mil pés sobre o nível do mar, nos Himalaias, com uma temperatura quase glacial.
Perg. É fácil alcançar êxito num clima frio?
Resp. É; é o único factível neste mundo. Nós dizemos que cada um de vós é vedantista nato. Estais manifestando vossa unidade com tudo, em cada momento de vossa vida. Cada vez que vosso coração se comove sois verdadeiros vedantistas, embora não o sabeis. Sois morais, sem saber porque; e a vedanta é a filosofia que analisou e ensinou ao homem como ser moral conscientemente; é a essência de todas as religiões.
Perg. Diria o senhor que em nosso povo ocidental existe um princípio insociável que nos faz pluralistas e que o povo oriental é mais simpatizante que nós?
Resp. Eu creio que o povo ocidental é mais cruel e o povo oriental mais misericordioso para todos os seres. Mas isso se deve simplesmente a que vossa civilização é muito mais recente. Leva tempo conseguir que algo desperte nossa misericórdia. Possuis muito poder; mas haveis praticado pouco o poder da mente. Tomará tempo fazê-los gentis e bons. Este sentimento colore cada gota de sangue na Índia. Se vou às aldeias ensinar política às pessoas, não me entenderão; mas se vou ensinar-lhes vedanta, dirão: “Agora, swami, o senhor tem razão”. Este “vairagya”, desapego, está em toda a Índia, até hoje. Temos degenerado muito, mas mesmo assim temos reis que abandonam seus tronos e vagam pelo país sem possuir coisa alguma.
Em alguns lugares a aldeã comum com sua roca de fiar disse: “Não me faleis de dualismo, minha roca disse: ‘Soham, Soham’, ‘Eu sou Ele’, ‘Eu sou Ele’”. Ide e falai com essa gente e pergunta-lhes por que falam assim e, no entanto, se ajoelham ante uma pedra. Eles dirão que para vós religião é dogma, mas para eles é realização. “Eu serei vedantista, dirá um deles, unicamente quando tudo isto se desvanecer e possa ver a Realidade. Até então não haverá diferença entre eu e o ignorante. Assim, utilizo estas pedras e vou aos templos, etc., para chegar à realização. Eu ouvi, mas quero ver e realizar”. “Métodos diferentes de falar, diferentes maneiras de explicar os métodos das Escrituras, só são para o gozo dos eruditos, não para alcançar liberdade” (Shankara).
Perg. É esta liberdade espiritual entre o povo compatível com a atenção à casta?
Resp. Certamente que não. Eles dizem que não deveria haver castas. Até os que pertencem à uma casta dizem que não é uma instituição muito perfeita. Mas aderem, quando encontramos outra e melhor, a abandonaremos. Perguntam: que nos dareis em troca? Onde não existem castas? Em vossa nação lutais constantemente para formar uma casta. Enquanto alguém possui uma boa quantidade de dólares, diz: “Eu sou um dos Quatrocentos”. Só nós conseguimos constituir uma casta permanente. Outras nações lutam e não conseguem. Temos bastantes superstições e males. Devido às castas é que trezentos milhões de pessoas encontram, talvez, um pedaço de pão para comer. É, sem dúvida alguma, uma instituição imperfeita. Mas se não fosse pelas castas, vós não teríeis livros em sânscrito para estudar. Esta casta levantou muralhas que rodearam e sitiaram exércitos invasores de toda espécie sem poder penetra-las. Essa necessidade não desapareceu e por isso a casta se mantém. A que temos agora não é a mesma de setecentos anos; cada golpe a reforçou. Percebeis que a Índia é o único país que nunca saiu de sua fronteira em busca de conquistas? O grande imperador Asoka insistiu para que nenhum de seus descendentes devesse sair para conquistar. Se os povos querem enviar-nos instrutores, que nos ajudem; mas que não nos prejudiquem. Por que viriam todos estes povos para conquistar os hindus? Acaso eles prejudicaram alguma nação? O pouco bem que puderam fazer, o fizeram para o mundo; ensinaram ciência, filosofia, religião e tem civilizado as hordas selvagens da terra. E esta é a recompensa; só assassinato e tirania e chamá-los de velhacos pagãos. Ledes os livros escritos por ocidentais sobre a Índia e os relatos de muitos viajantes que vão ali. Em represália de que danos assim se expressam?
Perg. Qual é o conceito vedantista sobre a civilização?
Resp. Vós sois filósofos e não credes que uma bolsa de ouro estabelece diferença entre homem e homem. Que valor tem todas estas máquinas e ciências? Produzem um só resultado; difundem conhecimento. Vós não haveis resolvido o problema da necessidade; só haveis aguçado essa necessidade. As máquinas não resolvem a questão da pobreza; simplesmente fazem com que os homens lutem mais. A competição aumenta. Que valor tem a natureza em si mesma? Por que levantais um monumento a um homem que envia eletricidade por um arame? Não faz a natureza isso mesmo milhões de vezes? Já não existe tudo na natureza? Que valor tem que o que tens, posto que está ali? Seu único valor consiste em que permite o desenvolvimento. O universo é, simplesmente, um ginásio em que a alma faz exercício; depois destes exercícios, nos convertemos em deuses. De maneira que o valor de tudo se julgará calculado até que ponto é manifestação de Deus. A civilização é a manifestação dessa divindade no homem.
Buda foi um dos sannyasines da vedanta. Iniciou uma nova seita, como outras que se iniciam na atualidade. As idéias que hoje se classificam como budistas não eram suas, eram muito mais antigas. Foi um grande homem que deu força às idéias. O elemento exclusivo do budismo foi o social. Os brahmanes e os kshatriyas têm sido sempre nossos instrutores; a maior parte dos Upanishads foi escrita por kshatriyas, enquanto que as porções ritualistas dos Vedas vieram dos brahmanes. A maioria de nossos grandes instrutores na Índia tem sido kshatriyas, cujos ensinamentos foram sempre universais; enquanto que os profetas brahmanes foram, com exceção de dois deles, muito exclusivistas. Rama, Krishna e Buda, adorados como encarnações de Deus, foram kshatriyas.
Perg. Ajudam a realização das seitas, as cerimônias e as escrituras?
Resp. Quando um homem alcança a realização, abandona tudo. As diversas seitas, cerimônias e livros, servem como meios para chegar a este ponto, são bons; mas se não servem para isso, devem ser trocados. “O que sabe, não há de depreciar a condição dos ignorantes, nem tampouco deve destruir a fé do ignorante em seu método próprio; senão que mediante ação adequada o há de guiar e mostrar o caminho para chegar onde ele está”.
Perg. Como explica a vedanta a individualidade e a ética?
Resp. O individuo real é o Absoluto; esta personificação é o resultado de maia. É só aparente; na realidade ela é sempre o Absoluto. Na realidade existe só o Uno, mas em maia aparece como muitos. Esta variação está em maia. Não obstante, até na mesma maia há sempre tendência a voltar ao Uno. Como o expressa a ética e a moralidade de cada nação, enquanto é necessidade constitucional da alma. Encontrar a unidade; esta luta por encontrar a unidade é o que chamamos ética e moralidade. Portanto, temos de pratica-la sempre.
Perg. Acaso, a maior parte de ética não se refere à relação entre indivíduos?
Resp. Isso é tudo o que é. O Absoluto não entra em maia.
Perg. O senhor disse que o individuo é o Absoluto, eu ia lhe perguntar se o individuo possui conhecimento.
Resp. O estado de manifestação é individualidade e a luz de tal estado é o que chamamos conhecimento. Por conseguinte, empregar a palavra conhecimento para designar a luz do Absoluto não é exato, pois o estado de Absoluto transcende o conhecimento relativo.
Perg. O inclui?
Resp. Sim, neste sentido. Assim como um pedaço de ouro se pode converter em toda sorte de moedas, o mesmo ocorre com este estado. Pode-se separar em conhecimentos de toda espécie. Se este estado de super-consciência inclui tanto a consciência como a inconsciência. O homem que alcança tal estado possui tudo o que chamamos conhecimento. Quando quer realizar a consciência do conhecimento, há de descer a um escalão mais baixo. O conhecimento é um estado inferior; só em maia podemos possuir conhecimento.
“ ENSINAMENTOS INSPIRADOS ”
1
“Platicas
Inspiradas” (em espanhol)
Swami Vivekananda
(Notas tomadas por Miss S.E. Waldo, uma discípula)
Terça-feira, junho 25.
1. Ensinamentos dados pelo
Swami Vivekananda a um grupo de discípulos seletos em Thousand Island Park,
EE.UU., verão de 1895.
Depois de cada felicidade, vem a infelicidade; pode estar afastada ou próxima. Quanto mais avançada se acha a alma, tanto mais rapidamente segue uma a outra. O que necessitamos não é a felicidade nem a infelicidade. As duas nos fazem esquecer nossa verdadeira natureza; ambas são cadeias, uma de ferro, a outra de ouro; por detrás delas está o Atman, que não conhece a felicidade nem o sofrimento. Esses são estados e, portanto, sujeito a mudanças; mas a natureza da alma é felicidade, paz imutável. Não necessitamos obtê-la, já a temos; tira a escória e a vereis.
Afirma-vos no Ser, só então podereis amar verdadeiramente o mundo. Mantendes-vos em uma posição muito, muito elevada; conhecendo vossa natureza universal, devemos contemplar com perfeita serenidade todo o panorama do mundo. Só é um jogo infantil; bem o sabemos e por isso não deve perturbar-vos. Se a mente se deleita com o louvor, o desagradará a censura. Todos os prazeres dos sentidos e até os da mente são fugazes, mas dentro de nós mesmos se acha o único verdadeiro prazer que de nada depende e com nada se relaciona. É perfeitamente livre, é a felicidade. Quanto mais interior for nossa felicidade, tanto mais espirituais somos. O prazer do Eu Superior é o que o mundo denomina de religião.
O universo interno, o real, resulta infinitamente maior que o externo, sombria projeção do verdadeiro. Este mundo não é verdadeiro nem ilusório, é a sombra da verdade. “A imaginação é a dourada sombra da verdade”, disse o poeta.
Penetramos na criação e então ela se torna vivente para nós. As coisas em si mesmas estão mortas; somos nós que damos vida e logo, como loucos, giramos ao se redor, nos assustando e gozando delas. Mas procureis não vos parecer com aquelas pescadoras que, surpreendidas por uma tormenta ao regressar do mercado aos seus lares, tiveram que se refugiar na casa de uma florista. Foram alojadas para passar a noite em uma habitação próxima, onde o ambiente estava saturado da fragrância das flores. Em vão trataram de dormir, até que uma delas propôs que umedecessem as cestas e as aproximassem de suas cabeças. Então dormiram profundamente.
O mundo é nossa cesta de pescado; não devemos depender dela para nosso bem-estar; quem o faz são tamasas, ligados. Depois estão os rajasas, ou seja, os egoístas, que sempre dizem eu, eu; às vezes fazem o bem e podem chegar a ser espirituais. Mas os mais elevados são os sattwikas, os introspectivos, que só vivem no Eu. Estas três qualidades: tamas, rajas e sattwa se acham em todos nós e em todo momento predomina uma delas.
A criação não implica na construção de algo, mas na luta por recobrar o equilíbrio como as de cortiças atiradas no fundo de um cubo de água e que sobem precipitadamente à superfície, juntas ou separadas. A vida está e deve estar acompanhada pelo mal. Um pouco de mal é a origem da vida; a pouca perversidade que existe no mundo é muito conveniente, pois ao se recuperar o equilíbrio, o mundo terminaria, já que a homogeneidade e a destruição são uma mesma coisa. Enquanto o mundo marcha, o bem e o mal vão com ele; mas quando o transcendemos, nos liberamos do bem e do mal e obtemos a felicidade.
Jamais será possível conseguir prazer sem dor, bem sem mal, porque a mesma vida não é senão o equilíbrio perdido. O que necessitamos é liberdade, não vida, nem prazer, nem bem. A criação é infinita, carece de principio e de fim; é uma incessante onda em um lago infinito. Existem profundidades não alcançadas ainda e outras, onde o equilíbrio já foi recuperado, mas a onda progride constantemente, é eterna a luta por recobrar o equilíbrio. Vida e morte são só diferentes nomes de um mesmo fato, o verso e reverso de uma moeda. Ambos são Maia, o inexplicável estado de esforçar-se em viver em certo momento e morrer um instante depois. Além disto encontra-se a verdadeira natureza, o Atman. Ainda que reconheçamos um Deus, é na realidade só o Eu, do qual nos separamos e que adoramos como se estivesse fora de nós, mas Ele é sempre nosso verdadeiro Ser. Ele somente e o único Deus.
Para recuperar o equilíbrio devemos contrabalançar o tamas com rajas e depois conquistar o rajas com satwa, esse estado tranqüilo e belo que irá crescendo constantemente até que tudo o mais tenha desaparecido. Rompe teus vínculos, converte-te em filho, se livre e então poderás ver o Pai, como Jesus O viu. A força infinita é religião e Deus. Evita a debilidade e a escravidão. Só és uma alma se fores livre; alcançarás a imortalidade se fores livre; existe um Deus se Ele é livre.
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O mundo para mim, não eu para o mundo. O bem e o mal são nossos escravos, não nós os seus. Na besta é natural permanecer onde está (não progredir); é natural no homem buscar o bem e iludir o mal; em Deus, é natural não buscar nem um nem outro, mas ser eternamente feliz. Sejamos deuses! Fazei do coração um oceano; ide mais além das trivialidades mundanas. Enlouquecei de júbilo mesmo ante o mal; considerai o mundo como um quadro e desfrutai de sua beleza sabendo que nada vos afeta. Crianças que encontram miçangas em um pântano, tal é o bem no mundo. Contemplai o mundo com serena complacência, considerai o bem e o mal como numa e mesma coisa, pois ambos são simplesmente o jogo de Deus; gozai de tudo.
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Meu Mestre costumava dizer: “Tudo é Deus, mas o Deus-tigre deve ser evitado. Toda a água é água, mas a água suja não serve para beber”.
O firmamento inteiro é o incensário de Deus; o sol e a lua são as lâmpadas. Que templos necessitamos? Todos os olhos são Teus e no entanto Tu não tens olhos; todas as mãos são Tuas e não obstante Tu não tens mãos.
Não busques nem recuses, toma o que vier. A liberdade consiste em não deixar que coisa alguma nos afete. Não te contentes em suportar; mantenha-te desligado. Recorda o conto do touro: um mosquito pousou durante longo tempo no chifre de um touro, mas lhe remoeu a consciência e disse: “Senhor touro, permaneci aqui um longo tempo, talvez tenha-o incomodado; lamento muito, vou embora”. O touro lhe respondeu: “Não, de maneira nenhuma! Podes trazer também toda sua família e viver com ela em meu chifre, que isso me importa?”.
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Quarta-feira, junho 26.
Efetuamos nosso melhor trabalho, exercemos nossa maior influência quando esquecemos por completo o eu. Todos os grandes gênios o sabem. Nos abramos ao único Divino Ator e deixemo-lo obrar; nada façamos. “Oh, Arjuna! Eu não tenho dever algum no mundo”, disse Krishna. Sedes perfeitamente resignados, perfeitamente indiferentes; só então podereis realizar a verdadeira obra. Não há olhos que possam ver as forças reais, só podemos ver os resultados; deixe de lado o eu, perca-o, esqueça-o; deseje simplesmente que Deus atue, pois é assunto Seu. Não temos nada a fazer, senão que nos afastar e deixar que Deus atue. Quanto mais nos afastamos, tanto mais se aproxima Deus. Despoja-te do pequeno eu e deixe viver só o grande Eu.
Somos o que nossos pensamentos nos tornaram; portanto tem cuidado com o que pensais. As palavras têm importância secundária. Os pensamentos vivem e vão muito longe. Cada pensamento que pensamos está colorido com nosso próprio caráter; por conseguinte, no homem santo e puro até suas repreensões e brincadeiras levarão o selo de seu próprio amor e pureza e farão bem.
Nada desejeis; penseis em Deus e não busqueis recompensas; é o homem carente de desejos quem obtém resultados. Os monges mendicantes levam a religião até a porta de casa, mas crêem que nada fazem; não pretendem coisa alguma; fazem sua obra inconscientemente. Se comerem o fruto da árvore do conhecimento, tornar-se-iam egoístas e desapareceria todo o bem que fizeram. Tão logo como dizemos eu, nos referimos a nós mesmos e a isto chamamos conhecimento, mas não é senão dar voltas e mais voltas, como o boi atado a uma árvore. O Senhor é quem tem conseguido ocultar melhor e Sua obra é a melhor; assim que, quem melhor se oculta é o que mais faz. Conquista a vós mesmos e o universo será vosso.
No estado de sattwa vemos a natureza das coisas, transcendemos os sentidos e a razão. A diamantina muralha que nos encerra é o egoísmo; tudo o que referimos a nós mesmos, pensando eu faço isto, eu faço aquilo e tudo o mais. Voa despojais do mesquinho eu; matais em vós este demônio; não eu, mas Tu; dize-o, sinta-o, vive-o. Enquanto não deixarmos o mundo manufaturado pelo ego, não poderemos entrar no reino dos céus. Ninguém o alcançou e nem o alcançará dessa forma. Afastar-se do mundo é esquecer do ego, desconhece-lo por completo, viver no corpo, mas não ser dele. Este ego patife deve ser eliminado. Bendizeis a quem os injuriam; pensais bem no que eles estão fazendo; eles só podem causar dano a si mesmos. Ide onde as pessoas odeiem, deixai que lhes açoitem o ego e o arranque, assim vos aproximareis mais do Senhor. Façamos como a macaca 1, abracemos a nosso filho, o mundo, enquanto podemos; mas no fim, quando nos vermos obrigados a pisoteá-lo e passar por cima dele, então estaremos prontos para chegar a Deus. Bem-aventurado aquele que é perseguido por amor à justiça. Bem-aventurados se não sabemos ler, porque será menos o que nos separa de Deus.
1.
A macaca sente muito carinho para com seus filhos, enquanto não existe
perigo, mas quando este chega, não tem escrúpulos em atira-los ao chão e
pisoteá-los, se for necessário, para se salvar. (Ed.).
Devemos pisotear e esmagar o prazer, a serpente de um milhão de cabeças. Renunciamos, continuamos avançando, logo nada achamos e nos desesperamos; mas perseverai, perseverai. O mundo é um demônio, é um reino com um pequeno ego como rei. Destronai-o e mantenha-vos firmes. Abandonai a luxúria, o ouro e a fama e apegue-se ao Senhor; desta maneira chagareis finalmente a um estado de perfeita indiferença. A idéia de que o deleite dos sentidos constitui um prazer, é puramente materialista; não há nem uma chispa de verdadeiro prazer nisso; toda a alegria que produz é um mero reflexo da verdadeira felicidade.
Aqueles
que se entregam ao Senhor, fazem mais pelo mundo que todos os chamados
trabalhadores. O homem que se purificou completamente, faz mais que um
regimento de pregadores. Da pureza e do silêncio procede a palavra poderosa.
“Sede como a açucena, permaneceis quietos em seu lugar, abris vossas pétalas e as abelhas virão por si mesmas”. Era grande o contraste entre Keshab Chunder Sem e Sri Ramakrishna; este nunca reconheceu no mundo nenhum pecado, nem dor, nem mal contra o qual lutar. O primeiro era um grande reformador ético, dirigente e fundador da Brahmo-Samaj. Em doze anos o tranqüilo profeta de Dakshineswar produziu uma revolução, não só na Índia, mas no mundo todo. O poder pertence aos silenciosos que só vivem e amam e logo retiram sua personalidade. Nunca dizem mim, nem meu; sentem-se felizes sendo instrumentos. Tais homens são os construtores de Cristos e Budas, sempre viventes, completamente identificados com Deus, existências ideais que nada pedem, nem estão conscientes de que fazem algo. São os verdadeiros impulsionadores, os jivanmuktas 1, absolutamente desprovidos de eu, nos quais desapareceu por completo a pequena personalidade e não existe a ambição. São todo princípio, sem personalidade.
1.
Jivanmuktas, literalmente: livres mesmo em vida. (Ed.).
Segunda-feira, julho 1.
(Sri Ramakrishna Deva)
Sri Ramakrishna era filho de um brahmin muito ortodoxo que recusava até um favor, se não lhe era oferecido por certa classe de brahmines; não podia trabalhar, nem sequer ser sacerdote em um templo, nem vender livros, nem servir a ninguém. Só podia aceitar o que lhe “caísse dos céus” (esmolas) e até estas não podiam proceder de um brahmin caído. A religião hindu não dá importância aos templos; se todos fossem destruídos, a religião não ficaria afetada o mínimo por isso. O homem deve construir uma casa somente para “Deus e para os hóspedes”; faze-la para si mesmo seria incorrer no egoísmo; por conseguinte, ele erige os templos como moradas para Deus.
Devido à extrema pobreza de sua família, Sri Ramakrishna se viu obrigado, em sua adolescência, a aceitar o cargo de sacerdote em um templo dedicado a Divina Mãe, chamada também prakriti ou Kali, representada pela figura feminina de pé sobre outra masculina; a qual significa que até que desapareça maia, nada podemos conhecer. Brahman é neutro, desconhecido e incognoscível, mas para objetivar-se, se cobre com o véu de maia, se converte na Mãe do universo e desse modo produza criação. A figura prostrada (Shiva ou Deus) se torna sava (morta, inerte) por estar coberta de maia. O jnani diz: “Eu descobrirei Deus pela força” (advaitismo); mas os dualistas exclamam: “Descobriremos Deus orando à Mãe, rogando-lhe que nos abra a porta cuja chave só Ela possui”.
O serviço diário da Mãe Kali despertou gradualmente tão intensa devoção no coração do jovem sacerdote, que chegou um momento em que não pode continuar o culto regular do templo, de modo que abandonou seus deveres e se retirou a um pequeno bosque próximo, onde se entregou por inteiro à meditação. O bosque estava nas margens do Ganges e certo dia a corrente atirou aos pés de Sri Ramakrishna os exatos materiais necessários para construir uma pequena choupana. Naquela choupana residiu, chorou e orou, sem preocupar-se com seu corpo, nem de coisa alguma que não fosse sua Divina Mãe. Um parente lhe dava de comer uma vez por dia e zelava por ele. Mais tarde chegou a ele uma dama sannyasini (asceta) para ajuda-lo a achar a sua Mãe. Qualquer mestre que necessitava, vinha a ele sem buscar-lhe; apresentou-se a ele um santo de cada seita para oferecer-lhe instruções e a cada um escutou ansiosamente. Mas ele adorava só a Mãe; tudo era a Mãe, para ele.
Sri Ramakrishna jamais pronunciou uma palavra dura contra ninguém. Era tão belamente tolerante, que cada seita considerava que lhe pertencia; amava a todas e para ele todas as religiões eram verdadeiras. Achou lugar para cada uma delas. Ele era livre, mas livre em amor, não em violência. O tipo suave crê, o violento espalha. Paulo foi o tipo da violência para espalhar a luz 1.
1.
Muitos têm dito que o swami Vivekananda foi, de certo modo, o São Paulo
de Ramakrishna. (Ed.).
A época de São Paulo, porém, passou; temos que ser as novas luzes para a época atual. Hoje necessitamos de uma organização adaptada aos nossos dias. Quando a tivermos, esta será a última religião do mundo. A roda deve girar e nós devemos ajuda-la e não entorpecer seu movimento. As ondas do pensamento religioso sobem e descem; sobre a mais alta está o profeta da época. Ramakrishna veio para ensinar a religião de hoje, construtiva, não destrutiva. Teve que voltar à natureza em busca de fatos e adquiriu uma religião cientifica que nunca disse crer, mas ver; eu vejo, e tu também podes ver. Empregueis os mesmos meios e alcançareis a mesma visão. Deus chegará a cada um de nós; a harmonia se encontra ao alcance de todos. Os ensinamentos de Ramakrishna constituem a essência do hinduismo; não lhe pertencia como coisa própria, nem jamais pretendeu que o fosse; nada lhe importava, nome nem fama.
Começou a pregar quando tinha uns quarenta anos, mas nunca saiu para faze-lo. Esperava que quem necessitasse de seus ensinamentos viesse a ele. De acordo com o costume hindu, foi casado por seus pais numa idade precoce, com uma menina de cinco anos que ficou na casa com sua família, em uma aldeia distante, inconsciente da grande luta pela qual seu jovem esposo estava passando. Quando ela chegou a maturidade, já ele estava profundamente absorvido na devoção religiosa. Ela viajou a pé desde sua casa até o templo de Dakshisneswar, onde ele residia e assim que o viu, conheceu sua grandeza, porque ela também era uma grande alma, pura e santa, que só aspirou a ajudar-lhe em sua obra, sem intentar nunca faze-lo descer ao nível de grihastha (chefe de família).
Índia adora a Sri Ramakrishna como uma das grandes Encarnações; o aniversário de seu nascimento celebra-se ali como festival religioso.
Terça-feira, julho 2.
(A Divina Mãe)
Swami Vivekananda
Os saktas adoram a Energia Universal como Mãe, o nome mais doce que conhecem; porque representa o ideal mais elevado de feminilidade na Índia. Os hindus chamam o caminho da direita e a adoração de Deus como Mãe, como Amor; que conduz à espiritualidade, mas nunca à prosperidade material. O adorar a Deus em seu aspecto terrível é dizer no caminho da esquerda e conduz, geralmente, à grande prosperidade material, mas raras vezes à espiritualidade e, eventualmente, leva à degeneração e extinção da raça que o pratica.
A mãe é a primeira manifestação de poder e é considerada como um conceito mais elevado que o pai. Com o nome de mãe vem a idéia de sakti, a Energia Divina e a onipotência, da mesma maneira que a criança crê que sua mãe é todo-poderosa, capaz de fazer qualquer coisa. A Divina mãe é o Kundalini 1 que dorme em nós; sem adora-la nunca poderemos conhecer a nós mesmos. A onipresença, onipotência e absoluta misericórdia, constituem os atributos da Divina Mãe. Constituem a soma total da energia no universo. Cada manifestação de poder no universo é a Mãe. Ela é a Vida, é a Inteligência e é o Amor. Está no universo e, no entanto, está separada dele. É uma pessoa e pode ser vista e conhecida (como a viu e conheceu Sri Ramakrishna). Apoiados no conceito de Mãe, podemos fazer qualquer coisa. Ela responde rapidamente as orações.
1.
Kundalini: “Enrolado na forma de espiral”. A energia existente, que
segundo os yoguis está situada na base da coluna vertebral, é a que nos homens
comuns produz sonhos, imaginações, percepções psíquicas, etc., e a que conduz à
percepção direta de Deus quando está completamente desperta e purificada.
(Ed.).
Pode mostrar-se a nós sob qualquer forma e em qualquer momento. A Divina Mãe pode ter forma (rupa) e nome (nama) ou nome sem forma e ao adora-la nesses variados aspectos, podemos nos elevar a Existência pura que carece de forma e de nome.
O conjunto de todas as células de um organismo constitui uma pessoa; da mesma maneira, cada alma é como uma célula e a soma delas é Deus; mais além disto está o Absoluto. O Absoluto é o mar em calma; o mesmo mar com ondas, é a Divina Mãe. Ela é tempo, espaço e causalidade; Deus é Mãe e possui duas naturezas, a condicionada e a não-condicionada. Como condicionada é Deus, natureza e alma (homem). Como não-condicionada é desconhecida e incognoscível. Do incondicionado provém a trindade: Deus, natureza e alma, o triângulo da existência. Esta é a idéia vishihtadvaista 1.
1.
Vishishtadvaista: monismo qualificado (Ed.).
Krishna foi um fragmento, uma gota da Mãe; Buda foi outra e outra foi Cristo. A adoração, embora seja de uma chispa da Mãe em nossa mãe terrena, conduz à grandeza. Adorai a Ela, se quereis amor e sabedoria.
Sábado, julho 20.
A percepção constitui nosso único conhecimento real ou religião. Embora falemos de nossa alma durante séculos, não a conheceremos com isso. Não existe diferença entre teorias e ateísmo. Na realidade, o ateu é o homem mais sincero. Cada passo que dou para a luz é meu para sempre. Quando vais a um país e o vistes, então é vosso. Cada um de nós deve ver por si mesmo; os mestres só podem trazer o alimento, nós temos que come-lo para nos nutrir. Os argumentos nunca podem demonstrar Deus, exceto como uma conclusão lógica.
É impossível achar Deus fora de nós. Nossas próprias almas produzem toda a divindade que há fora de nós. Somos o maior de todos os templos. A objetivação é só uma débil imitação do que vemos dentro de nós mesmos.
A concentração dos poderes da mente é o único instrumento de que dispomos para ver a Deus. Se conhecerdes uma alma (a vossa), conhecereis todas as almas passadas, presentes e futuras. A vontade concentra a mente e certas coisas excitam e controlam esta vontade, tais como a razão, o amor, a devoção, a respiração, etc. A mente concentrada é uma lâmpada que nos mostra todos os rincões da alma.
Não existe um método que convença a todos. Os diferentes métodos não são passos necessários que devem dar-se uns depois dos outros. As cerimônias constituem a forma inferior, depois vem o Deus externo e logo o interno. Em alguns casos pode se necessitar de graduação, mas em muitos é necessário um só caminho. Seria a maior loucura dizer a todos: “Deveis passar por carma e bhakti antes de poder alcançar jnana”.
Aferreis-vos à vossa razão até que alcanceis algo mais elevado e sabereis que é mais elevado, porque não estará em choque com a razão. O estado superior à consciência é a inspiração (samadhi), mas não confundais os transes histéricos com a inspiração real. É coisa terrível pretender falsamente que se sinta tal inspiração e confundi-la com instinto. Não existe prova externa da inspiração, a conhecemos por nós mesmos; nosso guardião contra o erro é negativo: a voz da razão. Toda religião consiste em ir além da razão, mas a razão é a única guia para chegar a ela. O instinto se parece ao gelo, a razão com a água e a inspiração com a forma mais sutil, o vapor; cada um sucede ao outro. Em todas as partes se acha este eterno encadeamento; inconsciência, consciência, inteligência; matéria, corpo e mente; e a nós parece como se a cadeia começasse no elo particular que primeiro nos vem a mão. Os argumentos de ambos os lados são de igual peso e verdadeiros. Devemos chegar mais além deles, onde não existe nem um, nem outro. Todas essas sucessões, são maia.
A religião se acha por cima da razão, é sobrenatural. A fé não é crença, senão apoderar-se do Último, uma iluminação. Primeiro se deve ouvir, logo racionalizar e achar quando pode oferecer a razão próxima de Atman; deixai que a aluvião da razão passe sobre ele, depois tome o que ficar. Se não ficar nada, dês graças a Deus por haver escapado da superstição. Quando houveres determinado que nada pode arrebatar o Atman, que ele resiste a todas as provas, aferra-vos a isto e ensina-o a todos. A verdade não pode ser parcial, é para o bem de todos. Finalmente meditai nela em perfeita paz e repouso, concentrai vossa mente e unificai-vos com ela. Então não será necessária nenhuma palavra; o silêncio conduzirá a verdade. Não gasteis vossas energias em falar; meditais em silêncio e não permitais que o burburinho do mundo externo vos perturbe. Quando vir, a mente se achará no estado mais elevado, sereis inconscientes dele. Acumuleis potência em silêncio e converte-os num dínamo de espiritualidade. Que pode dar um mendigo? Somente o rei pode dar unicamente quando nada necessita para ele.
*
* *
Considerai vosso dinheiro como se fosseis simplesmente custodias de algo que pertence a Deus. Não tenhais apego por ele. Abandoneis nome, fama e dinheiro; constituem uma escravidão terrível. Sentis a maravilhosa atmosfera de liberdade. Sois livres, livres, livres! Bem-aventurado sou! Sou livre! Sou o infinito! Não posso achar princípio nem fim em minha alma. Tudo é meu Eu. Repetis incessantemente.
Segunda-feira, julho 29.
Às vezes indicamos uma coisa descrevendo aquilo que a rodeia. Quando dizemos Satchidananda (Existência, Conhecimento, Felicidade), indicamos simplesmente as costas de um indescritível Mais Além. Ao nos referirmos a isso, nem sequer podemos dizer é, porque isto também é relativo. Qualquer imaginação, qualquer conceito, resulta vão; neti, neti (isto não, isto não) é tudo quanto podemos dizer, porque até o pensar implica em limitar e, portanto, perder.
Os sentidos os enganam dia e noite. A vedanta o descobriu há muito tempo; a ciência moderna recém está observando o mesmo fato. Um quadro só tem comprimento e largura e o pintor copia o erro da natureza, dando-lhe artificialmente a aparência de profundidade. Não existem duas pessoas que vejam o mesmo mundo. O mais elevado conhecimento lhes dirá que não há movimento nem mudança em nada; que somente a idéia disso já é mais. Estudar a natureza como um todo é dizer estudar o movimento. Nem a mente, nem o corpo, são o nosso Ser real; ambos pertencem à natureza; mas eventualmente podemos conhecer o ding na sich 1. Então, tendo transcendido o corpo e a mente, desaparece quando eles concebem. Quando deixeis completamente de conhecer e ver o mundo, realizareis o Atman. O que necessitamos é a supressão do conhecimento relativo. Não há mente infinita nem infinito conhecimento, porque tanto a mente como e conhecimento, são limitados. Vemos agora através de um véu; depois alcançamos a incógnita, que é a Realidade de todo nosso conhecimento.
1.
Ding an sich: expressão alemã que significa “a coisa em si”. (Ed.).
Se olharmos um quadro através de um orifício feito em um cartão com a ponta de um alfinete, adquirimos uma noção completamente equivocada; no entanto, vemos realmente a pintura. A medida em que ampliamos o orifício, teremos uma idéia mais clara. Obtemos as diferentes visões da realidade, de acordo com nossas incorretas percepções de nome e forma. Ao tirar o cartão, veremos o mesmo quadro, mas o vemos tal como é. Nós absorvemos todos os atributos, todos os erros, sem que por isso se altere o quadro. Isto é porque o Atman é a realidade de tudo; tudo o quanto vemos é Atman. Mas não tal como o vemos, como homem e forma; isto está em nosso véu, em maia.
Se parecem com as manchas na objetiva de um telescópio; contudo, é a luz do sol quem nos mostra as manchas. Não poderíamos ver nem sequer a ilusão, a não ser pelo fundo da realidade que é Brahman. O swami Vivekananda é precisamente a pequena mancha que está sobre a objetiva. Eu sou Atman, real, imutável e só essa realidade me permite ver o swami Vivekananda. Atman é a essência de toda alucinação; mas o sol nunca se identifica com as manchas que existem no cristal do telescópio; só nos faz ver. Nossas ações, segundo sejam boas ou más, aumentam ou diminuem as manchas, mas nunca afetam a Deus que existe em nosso interior. Se limparmos perfeitamente a mente de manchas, instantaneamente vemos que “Eu e meu Pai somos um”.
Nós percebemos primeiro e racionalizamos depois. Devemos ter esta percepção como um fato e isto de chama religião, realização. Não importa que alguém nunca tenha ouvido falar de credo, profeta ou livro; que adquira essa realização e não necessite de mais nada. Depuremos a mente, nisto consiste toda a religião; e até que nós mesmos eliminemos todas as manchas, não poderemos ver a Realidade tal como é. A criança não vê o pecado; carece até de capacidade suficiente para isso. Livrais-vos dos defeitos dentro de vós mesmos e já não podeis vê-los fora. Uma criança vê um roubo sem que tenha significado para ela. Enquanto tenhais visto uma vez a figura oculta em um quebra-cabeça, a vereis sempre depois; da mesma maneira, quando vos acheis livres e imaculados, só vereis liberdade e pureza no mundo que os rodeia. “Nesse momento se desatam todos os nós do coração; o tortuoso torna-se reto e este mundo se desvanece como um sonho”. E ao despertar, como nos admiramos de ter conseguido sonhar algo tão disparatado!
“Adquirido isso, nem o sofrimento, grande como uma montanha, possui o poder de comover a alma”.
Com a tocha do conhecimento, cortais e separais as rodas: o Atman fica livre, embora o impulso do movimento adquirido faça girar a roda da mente e do corpo. Esta roda só poderá, agora, marchar retamente e fazer o bem. Se o dito corpo fizer algo mau, sabereis que o homem não é jivanmukta; mentireis, se afirmareis tal coisa. Somente quando as rodas tiverem alcançado um movimento reto e bom (pela depuração da mente), se pode aplicar a machadada. Toda a ação purificadora dá, consciente ou inconscientemente, golpes sobre a ilusão. Chamar pecador a outro é o pior que poderíeis fazer. Uma boa ação efetuada com ignorância, produz o mesmo resultado e ajuda a romper as ligações.
O erro fundamental consiste em identificar o sol com as manchas que podem existir na objetiva do telescópio. Sabeis que nada afeta, jamais, o sol, o Eu e consagrai-vos a eliminar as manchas. O homem é o ser maior que pode existir. O culto mais elevado é adorar ao homem como Krishna, Buda, Cristo. Acrediteis quanto desejeis. Livre-vos do desejo.
* * *
Os anjos e os defuntos estão todos aqui, vendo este mundo como céu. Cada um vê a incógnita de acordo com sua disposição mental. A melhor visão da incógnita pode ser alcançada aqui, na terra. Nunca trateis de ir ao céu; esta é a pior das ilusões. Mesmo aqui a excessiva riqueza e a aniquiladora pobreza são limitações que nos apartam da religião. Possuímos três grandes dons; primeiro, um corpo humano. (A mente humana é o reflexo mais imediato de Deus; nós somos “sua própria imagem”). Segundo, o desejo de sermos livres. Terceiro, a ajuda de uma alma nobre que tenha cruzado o oceano da ilusão e nos serve de mestre. Se possuíres estas três coisas, bendizei ao Senhor; podeis estar seguros de libertar-vos.
O que só alcanceis intelectualmente pode ser destruído por um novo argumento; mas o que realizeis é vosso para sempre. De pouco serve falar e falar de religião. Ponhais Deus por trás de todas as coisas, homens, animais, alimentos, trabalhos; fazeis disto um hábito.
Certa vez disse Ingersoll: “Creio que devemos aproveitar este mundo o mais possível, espremer a laranja até que fique seca, porque este mundo é o único no qual estamos seguros”. Respondi-lhe: “Conheço uma maneira melhor de espremer a laranja deste mundo e tirar mais suco. Sei que não posso morrer, por isso não me apresso; sei que nada há que temer; e por isso gozo ao espreme-la. Não tenho deveres, nenhum laço de esposa, filhos ou propriedades; posso amar a todos os homens e mulheres. Cada um deles é Deus para mim. Considerai a alegria de amar o homem como a Deus! Espremei, assim, vossa laranja e obtereis mil vezes mais suco. Não perdereis nem uma só gota”.
Aquilo que parece ser a vontade, é o Atman que está atrás dela e é realmente livre.
Segunda-feira à tarde.
Jesus foi imperfeito porque não viveu completamente seu próprio ideal e, sobretudo porque não deu à mulher um lugar igual ao do homem. As mulheres fizeram tudo por ele, mas estava tão influenciado pelos costumes judeus, que a nenhuma delas fez seu apóstolo. Não obstante, Cristo foi o homem maior depois de Buda, que tampouco foi completamente perfeito. Buda, no entanto, reconheceu que na religião, os direitos da mulher eram iguais aos do homem e seu primeiro e um de seus maiores discípulos foi sua própria esposa, que chegou a ser a cabeça de todo o movimento budista entre as mulheres da Índia. Mas não devemos criticar a estes grandes homens; deveríamos considera-los somente como muito superiores a nós. No entanto, não devemos depositar nossa fé em nenhum homem, por maior que seja; devemos tratar de ser também Budas e Cristos.
Nenhum homem deve ser julgado por seus defeitos. As grandes virtudes que tem um homem são suas, enquanto que seus erros são as debilidades comuns da humanidade e nunca deveriam levar-se em conta ao estimar seu caráter.
* * *
Vira, a palavra sânscrita equivalente a “heróico”, é de origem do vocábulo virtude, porque nos tempos antigos o melhor lutador era considerado como o homem mais virtuoso.
Terça-feira, julho 30.
Os Cristos e Budas são simplesmente ocasiões sobre as quais objetivamos nossos poderes internos. Na realidade, somos nós que respondemos a nossas próprias orações.
É uma blasfêmia pensar se não houvesse nascido Jesus, a humanidade não tinha sido salva. É horrível esquecer assim a divindade da natureza humana, uma divindade que deve manifestar-se. Nunca esqueceis da glória da natureza humana. Nós somos o Deus maior que já houve, que há ou que possa haver. Os Cristos e os Budas são somente ondas no oceano ilimitado que Sou Eu. Não vos inclineis ante nada, a não ser ante vosso próprio eu superior. Até saber que sois esse mesmo Deus de deuses, não haverá libertação para vós.
Todas nossas passadas ações foram realmente boas porque nos trouxeram ao que atualmente somos. A quem temos de mendigar? Eu sou a existência real e tudo o mais é um sonho, exceto eu. Eu sou todo o oceano; não chameis eu a pequena onda que haveis formado; sabeis que é somente uma onda. Satyakama (amante da verdade) ouvia uma voz interna que dizia: “Tu és o infinito, o universal está em ti. Controla a ti mesmo e escuta a voz de teu verdadeiro Eu”.
Os grandes profetas que lutam hão de ser menos perfeitos que os que vivem uma vida de santidade silenciosa, concebendo grandes pensamentos e ajudando, deste modo, o mundo. Esses homens, ao morrer um após outro, produzem como resultado final, o homem poderoso que prega.
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O conhecimento existe, o homem só o descobre. Os Vedas são o conhecimento eterno por meio do qual Deus criou o mundo. Pregam filosofia superior (a mais elevada) e fazem esta tremenda afirmação.
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Dizei a verdade ousadamente, sem pensar se causará dano ou não. Não transigis com a debilidade. Se a verdade é demasiado forte para os intelectuais e os derruba, deixe-os cair, quanto mais rápido, melhor. As idéias infantis são para as crianças e os selvagens; e não todas elas se acham nas nurseries e nos bosques, algumas caíram nos púlpitos.
É mal ficar em uma igreja depois de haver crescido espiritualmente. Saias e morres no campo raso da liberdade.
Todo progresso está no mundo relativo. A forma humana é a mais elevada e o homem é o maior dos seres, porque aqui e agora podemos nos livrar por completo do mundo relativo e alcançar a liberdade e esta é a meta. Não só podemos alcança-la, mas também alguns chegarão à perfeição; de maneira que não nos importa quão delicados sejam os corpos futuros, mas só podem pertencer ao plano relativo e nada farão mais que nós, porque alcançar a liberdade é o quanto se pode fazer.
Os anjos jamais cometem ações perversas, portanto não são castigados nem salvos nunca. São os golpes que despertam e nos ajudam a interromper o sonho. Nos demonstram a insuficiência deste mundo e nos fazem sentir ânsias de escapar, de ter liberdade.
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A uma coisa percebida tenuemente denominamos com um nome; e a mesma, ao ser percebida plenamente, recebe outro. Quanto mais elevada for a natureza moral, tanto mais elevada será a percepção, e mais forte a vontade.
Terça-feira, pela tarde.
O pensamento e a matéria se harmonizam porque são os dois lados de uma mesma coisa (chamada x), que divide em interno e externo.
A palavra paraíso procede do sânscrito para-desa, que foi introduzida na linguagem persa e significa, literalmente, mais além da terra ou realmente o mais além ou outro mundo. Os antigos ários sempre acreditaram em uma alma, nunca que o homem fosse o corpo. Seus céus e infernos eram todos temporários, porque nenhum efeito pode durar mais que sua causa e nenhuma causa é eterna; portanto, todo efeito deve ter um fim.
Toda a filosofia vedanta sintetiza-se nesta história: Dois pássaros de plumagem dourada estão pousados na mesma árvore. Um acima, sereno, majestoso, sumido em sua própria glória. O outro abaixo, intranqüilo e comendo os frutos da árvore, umas vezes doces e outras, amargos. Certa vez come um fruto excepcionalmente amargo, então se detém e olha o majestoso pássaro mais acima; mas logo se esquece do outro pássaro e segue comendo os frutos da árvore, como antes. Novamente come outro fruto amargo e desta vez salta para uns ramos acima, aproximando-se mais do pássaro que está no alto. Assim acontece muitas vezes até que, finalmente, o pássaro de baixo chega onde está o mais elevado e perde a si mesmo. Dá-se conta, então, que nunca tinha sido dois pássaros, mas que ele sempre foi o pássaro do alto, sereno, majestoso e sumido em sua própria glória.
Quinta-feira, pela tarde, agosto 1.
Existem inumeráveis séries de manifestações, como tiovivo (carrocel), no qual as almas cavalgam, por assim dizer. As séries são eternas; as almas individuais pretendem sair, mas os sucessos se repetem eternamente e a isso se deve ao fato de que pode ser lido o passado e o futuro de uma pessoa, porque tudo é, na realidade, o presente. Quando a alma se acha em uma determinada cadeia, tem que passar pelas experiências dessa cadeia. De uma série passa a outras. Algumas delas se evadem para sempre, mediante a realização de que é Brahman. Apoderando-se de um sucesso proeminente em uma cadeia e sujeitando-o, pode atrair-se e ler-se toda a cadeia. Este poder se adquire com facilidade, mas não possui valor real e pratica-lo nos despoja de outra tanta força espiritual. Não corrais atrás destas coisas: adorai a Deus.
Nishtha (devoção a um ideal) constitui o princípio da realização. Sugai o mel de todas as flores; sede amigo de todos, rendei homenagem a todos, dizei-lhes: “Sim, irmãos, sim, irmão”, mas mantenha-vos firmes em vossa própria senda. Um estado mais elevado consiste em tomar praticamente a posição de outro. Se eu sou tudo, por que não hei de poder simpatizar real e ativamente com meus irmãos e ver com seus olhos? Enquanto sou débil, devo seguir um só caminho (nishta), mas quando sou forte, posso sentir com cada um de meus semelhantes e simpatizar perfeitamente com suas idéias.
A teoria antiga era “desenvolver uma idéia apesar de todas as demais”; a moderna é “desenvolver a mente e controla-la” e coloca-la, depois, onde se queira; rapidamente se obterá o resultado. Esse é o método mais seguro de desenvolvermo-nos. Aprendeis a concentração e valei-se delas em qualquer sentido. Assim não perdereis nada. Quem obtém o todo deve, por força, obter as partes. O dualismo se acha incluído no advaitismo (monismo).
“Primeiro vi a ele e ele viu a mim.
Um relâmpago cruzou de meus olhos aos seus, e dos seus aos meus”.
Assim ocorreu até que as duas almas se uniram tão estreitamente que se converteram realmente em uma.
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Existem duas espécies de samadhi; uma consiste em concentrar-se em si mesmo e a outra em concentrar-se até alcançar a unidade do sujeito e objeto.
Deveis poder simpatizar completamente com cada uma em particular e depois, de um salto, passar ao mais elevado monismo. Depois de tê-los aperfeiçoado, os limitais voluntariamente. Empregai todo vosso poder em cada uma de vossas ações. Sede capazes de tornar-se dualistas em um dado momento, esquecendo a advaita e tomando-a logo outra vez a sua vontade.
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Causa e efeito, tudo é maia. Já chegaremos a compreender que tudo o quanto vemos é tão desconexo como nos parecem agora os contos de fadas. Na realidade não existem causa e efeito; já chagaremos a compreende-lo. Depois, se podeis, rebaixais vosso intelecto e deixais que qualquer alegoria passe por vossa mente, sem vos preocupar sobre sua coerência. Desenvolve amor à ficção e à poesia formosa, gozando logo de todas as mitologias como poesia. Não vos aproximeis da mitologia com idéias de história e racionalização. A deixeis fluir através de vossa mente, que gire como uma candeia ante vossos olhos, sem perguntar quem a sustém; e assim vos apoderareis do círculo; permanecerá em vossa mente o resíduo de verdade.
Os autores de todas as mitologias escreveram em símbolos que viram e ouviram, pintando formosos quadros. Não intenteis escolher demasiadamente os temas, desse modo destruirias a pintura, aceita-os como são e deixe-o atuar sobre vós. Julga-os só pelo efeito e escolhes o bom que haja neles.
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Vossa própria vontade é a que responde às pregações, mas se apresenta à cada mente sob o disfarce dos diferentes conceitos religiosos. Podemos denominar-lhe Buda, Jesus, Krishna, Alá, Agni, mas só o Ser, o Eu.
Os conceitos evoluem, mas as alegorias que os apresentam carecem de valor histórico. As visões de Moisés talvez sejam mais equivocadas que as nossas, porque nós temos mais conhecimento e é menos provável que nos deixemos enganar pelas ilusões.
Os livros são inúteis para nós até que nosso próprio livro se abra; depois, todos os demais livros são bons até onde estão de acordo conosco. Só o forte compreende a força, só o elefante compreende o leão, não ao rato. Como poderemos compreender Jesus enquanto não formos seus iguais? Tão ilusório é alimentar cinco mil pessoas com dois pães, como dois com cinco pães; são coisas irreais que não se afetam uma a outra. Só a grandeza aprecia a grandeza; só Deus realiza a Deus. O sonho é só o sonhador, não possui outra base. Não são coisas diferentes. A tônica presente em toda a partitura é “Eu sou Ele, Eu sou Ele”; as demais notas são unicamente variações que não afetam o tema real. Somos os livros viventes e os livros são tão somente as palavras que temos pronunciado. Tudo é o Deus vivente; o vivente Cristo; vedes-lo como tal. Ledes ao homem, que é o poema vivente. Somos a luz que ilumina todas as Bíblias, Cristos e Budas que existiram no mundo. Sem isso, eles estariam mortos para nós, inertes.
Aferras-vos a vosso próprio Eu.
O cadáver nada sente; façamos como se nossos corpos estivessem mortos e cessemos de nos identificar com eles.
Sábado, agosto 3.
Quem obteve a liberdade nesta vida, deve viver milhares de anos somente no término dela. Tem que se colocar à vanguarda de seus tempos, enquanto que as massas só podem arrastar-se. Assim temos Cristos e Budas.
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Certa vez havia uma rainha hindu que ansiava de tal modo que seus filhos alcançassem a libertação nesta vida, que ela mesma tomou a seu encargo o cuidado dos meninos e enquanto os embalava para que dormissem, lhes cantava sempre a mesma canção: “Tat tvam asi, Tat tvam asi” (Tu és Aquele, Tu és Aquele). Três dos príncipes chegaram a ser sannyasines, mas o quarto foi eleito soberano de certo reino. A ponto de retirar-se de seu lar, a rainha lhe entregou um pedaço de papel que devia ser lido quando fosse homem. Ali estava escrito: “Só Deus é verdade; tudo o mais é falso. A alma nunca mata nem pode ser morta. Vive só ou em companhia de santos”. Quando o jovem príncipe leu isto, renunciou também ao mundo e se fez sannyasin.
Abandonai, renunciai ao mundo. Parecemos cães soltos na cozinha comendo um pedaço de carne, olhando em torno, receosos de que em algum momento entre alguém e nos expulse dali. Em vez disso, sedes reis e sabeis que o mundo vos pertence. Isto não poderá ser alcançado até que renuncieis e cesseis de estar ligados. Renunciais desde o fundo e o mais profundo de vossos corações. Tendes vairagyam (renúncia). Este é o sacrifício real e sem ele é impossível obter espiritualidade. Não desejeis, porque o que se deseja se obtém e acarreta em terrível escravidão. Não é senão produzirmos “narizes” como sucedeu no caso do homem que devia pedir três graças 1. Nunca obteremos a liberdade até não possuirmos domínio sobre nós mesmos. “É o Eu quem salva ao eu, ninguém mais”.
1. Certa vez, um pobre homem
alcançou consagrar-se com um deus que lhe ofereceu três dons, jogando três
vezes os dados. O homem voltou feliz para sua casa e comunicou à sua mulher a
noticia de tal felicidade. Ela, cheia de alegria, lhe disse, em seguida, que
jogasse os dados para pedir, primeiro, riquezas. O homem respondeu a isto: Nós
dois temos o nariz pequeno e feio, pelo que as pessoas riem-se de nós; peçamos
primeiro um formoso nariz aquilino, pois a riqueza não pode tirar tal
deformidade. Mas a mulher preferia obter primeiro a riqueza e tomando-lhe a
mão, conteve a jogada de dados; ele a retirou apressadamente e no mesmo
instante atirou os dados exclamando: “Que tenhamos belos narizes e nada mais
que narizes”. O corpo deles cobriu-se de imediato de muitos formosos narizes,
mas isto se tornou um estorvo tão grande que convinha lançar os dados pela
segunda vez para pedir sua eliminação. Assim aconteceu, mas, perdendo seus
próprios narizes, ficaram desnarigados. Dessa maneira desperdiçaram dois dons
e, completamente aflitos, não sabiam o que fazer. Só lhes restava um dom a
pedir. Tendo perdido seus próprios narizes, ficaram piores do que antes. Nem em
sonhos imaginaram que se achariam em tal situação. Desejaram ter um formoso
nariz, mas temiam que os interrogassem sobre tal transformação e que os tomassem
por dois grandes tolos, incapazes de remedia-lo nem até com a ajuda de três
graças, de maneira que se puseram de acordo e voltaram a jogar os dados,
pedindo novamente o mesmo feio e pequeno nariz de antes.
Este relato ilustra a frase
citada: “Não desejeis, porque o que se deseja se obtém e acarreta terrível
escravidão”.
Aprendeis a sentir-vos nos outros corpos, a sabeis que todos somos um. Atirais ao vento as demais tolices. Lanceis vossas ações, boas ou más e não voltais a pensar nelas. O feito, feito está. Despojai-vos de superstições. Não tenhais debilidade até na presença da morte. Não vos arrependeis, nem rumineis ações passadas, nem recordeis vossas boas obras; sede azad (livres). O fraco, o medroso e o ignorante nunca alcançarão o Atman. Não podeis desfazer o feito, o efeito deve chegar; enfrentai-o, mas cuidai-vos de não repetir a mesma coisa. Cedeis a carga de vossos atos ao Senhor; dá-lhe tudo, tanto o bem como o mal. Não guardeis o bem dando só o mal. Deus ajuda a quem não ajuda a si mesmo.
“Bebendo a taça do desejo, o mundo enlouquece”. Jamais se une o dia e a noite; da mesma maneira, tampouco podem ir juntos o desejo e o Senhor. Rejeita o desejo.
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Existe grande diferença entre dizer alimento, alimento e ingeri-lo; entre repetir água, água e bebe-la. Do mesmo modo, em só repetir a palavra Deus, Deus, não podemos esperar alcançar a realização. Devemos nos esforçar e praticar.
Só ao retornar a onda ao mar, pode tornar-se ilimitada; nunca como onda, pode chegar a sê-lo. Logo, depois de ser mar, pode voltar a ser onda novamente, uma onda tão grande como queria ser. Rompeis vossa identificação com a corrente e sabeis que sois livres.
A verdadeira filosofia consiste na sistematização de certas percepções. O intelecto termina onde começa a religião. A inspiração é muito mais elevada que a razão, mas não deves contradizê-la. A razão é a ferramenta tosca para os trabalhos rudes; a inspiração é a luz deslumbrante que nos mostra toda a verdade. A vontade de fazer um coisa não é necessariamente inspiração.
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Em maia, a progressão é um círculo que os leva novamente ao ponto de partida; mas partis ignorantes e chegais ao fim com todo o conhecimento. A devoção a Deus e aos santos, a concentração, a meditação e a obra altruísta, são os caminhos para livrar-se faz redes de maia; mas antes devemos ter um veemente desejo de nos libertar. O raio de luz que iluminará nossas trevas está em nós; é o conhecimento e é nossa natureza (não existem “direitos de nascimento”, pois nunca nascemos). A única coisa que devemos fazer é dissipar as nuvens que o cobrem.
Abandoneis todo desejo de gozos terrenos e celestiais. Governais os órgãos dos sentidos e controlais a mente. Suportais todas as desventuras sem saber sequer que sois desventurados. Não pensais senão na libertação. Tenhais fé no guru, em seus ensinamentos e na segurança de que podereis ser livres. Dizei Soham, Soham (Eu sou Ele), suceda o que suceder. Diga-los até ao comer, ao andar, quando sofres; repitas-lo na mente sem cessar; que tudo o quanto vimos jamais existiu, que só existe o Eu. Um relâmpago e o sonho se desvanecerão! Penseis dia e noite: este universo é zero, só existe Deus. Mantenhais latente o intenso desejo de ser livres.
Nossos parentes e amigos só são “velhos poços secos”; caímos neles e sonhamos com deveres e ligações, sem que esses sonham tenham fim. Não crieis ilusão ajudando a alguém. És como a árvore baniano que cresce incessantemente. Se sois dualistas, é loucura tratar de ajudar a Deus. Se sois monistas, sabeis que sois Deus; donde encontrareis o dever? Não tenhais deveres para vosso marido, nem para vossos filhos e amigos. Tomai as coisas como vêm, fiqueis tranqüilos e quando vosso corpo flutuar, deixes-vos levar, eleves-vos com a crescente dos mares e desceis com a vazante. Deixeis que morra o corpo; esta idéia do corpo é uma fábula muito gasta.”Ficai-vos tranqüilos e sabeis que sois Deus”.
O único que existe é o presente. Não há passado nem futuro, nem mesmo em pensamento, porque para pensar neles tereis que converte-los em presente. Abandonais tudo e desejai que voltes de onde queira. Este mundo é só uma ilusão, não permitais que os enganem de novo. Vos haveis tomado pelo que não és; se o corpo é arrastado a alguma parte, deixa-o ir; não vos preocupeis com o lugar onde está. Tão tirânica idéia do dever, constitui um terrível veneno que vai destruindo o mundo.
Não espereis ter uma harpa e descansar por etapas. Por que não tomar a harpa e começar aqui? Por que esperar o céu? Faças-lo aqui. No céu não há casamentos; por que não começa-los e termina-los aqui? O hábito amarelo do sannyasin é o sinal de liberdade. Abandoneis as mundanas vestes de mendigo; usais o ensinamento da liberdade, o hábito ocre.
Domingo á tarde.
A mente é um instrumento nas mãos do Atman, do mesmo modo que o corpo é um instrumento da mente. A matéria é o movimento exterior e a mente o movimento interior. Todas as mudanças começam e terminam no tempo. Se o Atman é imutável, deve ser perfeito; se é perfeito, deve ser infinito e se é infinito deve ser só Um; não pode haver dois infinitos. Por conseguinte, o Atman, o Eu, só pode ser Um. Embora pareça ser vários, é realmente só Um. Se um homem se dirigisse para o sol, a cada passo veria um sol diferente e, no entanto, o sol seguiria sendo sempre o mesmo.
Asti (essência) é a base de toda a unidade e quando a achamos, começa a perfeição. Se todas as cores se resumissem a uma só, a pintura deixaria de existir. A unidade perfeita é repouso; nós referimos todas as manifestações a um só Ser. Taoístas, confucionistas, budistas, hindus, judeus, maometanos, cristãos e zoroastrianos, todos pregam a regra de ouro e quase com as mesmas palavras; mas só os hindus tem dado a racionalização, porque eles vêem a razão; o homem deve amar aos outros, porque esses outros são ele mesmo. Só há Um.
Dos grandes mestres religiosos que o mundo tem conhecido, só Lao Tse, Buda e Jesus transcenderam a regra de ouro e disseram: “Faz bem a teus inimigos”. “Ama a quem te odeia”.
Os princípios existem; só os descobrimos, não os criamos. A religião consiste só em realização. As doutrinas são métodos, não religião. As diferentes religiões são somente aplicações de uma religião única, moldada às necessidades das diferentes nações. As teorias levam à luta; por isso o Nome de Deus, que deveria trazer unicamente paz, tem sido a causa da metade do sangue derramado no mundo. Ide à fonte direta. Perguntai a Deus o que Ele é. Se não responde, não é; mas todas as religiões ensinam que Ele responde.
Tendes algo a dizer a vós mesmos, porque do contrário como teríeis idéia alguma do que os outros dizem? Não vos aferreis às velhas superstições e estais sempre dispostos para as novas verdades. “Néscios são aqueles que bebem água salobra no poço cavado por outros”. Até que realizemos Deus, não saberemos nada sobre Ele. Cada homem é perfeito por sua mesma natureza; os profetas manifestaram esta perfeição, mas está potencialmente em nós. Como poderemos compreender que Moisés viu Deus a não ser que nós O vejamos também? Se Deus veio alguma vez para alguém, tem que vir para mim também. Eu irei diretamente a Deus; que Ele fale a mim. Não posso tomar como base a crença, isso é ateísmo e blasfêmia. Se Deus falou a um homem faz dois mil anos nos desertos da Arábia, também pode falar hoje comigo; do contrário, como posso saber se Ele não está morto? Chegais a Deus pelo caminho que possais, contanto que chegueis. Mas não derrubem outros para chegar.
Os que conhecem, devem apiedar-se dos ignorantes. O que conhece está disposto a dar seu corpo até por uma formiga, porque sabe que o corpo não vale nada.
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Segunda-feira, agosto 5.
A pergunta é: Para chegar aos estados mais elevados é necessário passar por todos os inferiores, ou se podem alcançar de um salto? Os americanos modernos levaram vinte e cinco anos para obter o que seus antepassados alcançaram em séculos. Os hindus chegam em vinte anos a altura alcançada em oito mil, por seus antepassados. No campo físico, o embrião percorre, na matriz, a escala de ameba ao homem. Tais são os ensinamentos da ciência moderna. A vedanta chega mais longe e nos diz que só temos que viver a vida de toda a humanidade passada, senão também a vida futura de toda a humanidade. O homem que faz o primeiro, é o instruído; o segundo é o jivanmukta, livre para sempre.
O tempo é simplesmente a medida de nossos pensamentos e como eles possuem uma velocidade inconcebível, não há limite para a velocidade com que poderemos viver a vida futura. Por conseguinte, não pode dizer-se quanto durará esta. Pode transcorrer um segundo ou levar cinqüenta vidas; depende da intensidade do desejo. Portanto, o ensinamento deve ser modificado segundo as necessidades do discípulo. O fogo consumidor está disposto para todos, até a água e os pedaços de gelo se consomem rapidamente. Disparai um tiro com espingardas de chumbo e pelo menos um dará em branco; dês a um homem um museu de verdades, levará o tempo que melhor se adapte a ele. As vidas passadas têm modelado nossas tendências. O intelectual, o místico, o devocional, o prático, constituem a base; tomai como base um destes aspectos, mas ensinai aos demais ao mesmo tempo. O intelecto deve ser equilibrado com o amor, a natureza mística com a razão e a prática deve tomar parte de cada um dos métodos. Tomai cada qual onde está e faça-o avançar. O ensinamento religioso deve ser sempre construtivo, não destrutivo.
Cada tendência mostra a ação de uma vida passada, a linha ou raio que deve recorrer o homem. Todos os raios conduzem ao centro. Nunca intenteis obstaculizar as tendências de ninguém. Pois isso faz retroceder o mestre a o discípulo. Quando ensinas jnanam, deves fazê-los jnanis e coloca-los mentalmente no lugar do discípulo. Do mesmo modo se deve proceder em cada uma das outras yogas. Desenvolveis cada faculdade como se fosse a única que possuis; tal é o verdadeiro segredo do denominado desenvolvimento harmônico. Isto significa: adquires extensão e intensidade, mas não uma coisa na dependência da outra. Nós somos infinitos. Não temos limitações e podemos ser tão intensos como o mais devoto maometano, e tão amplos como o mais furioso ateu.
Isto não se alcança dedicando a mente a um só objetivo, mas desenvolvendo e controlando a mente; depois podereis dirigi-la sobre qualquer ponto que os agrade. De tal maneira obtereis a intensidade e a extensão. Sentis jnana como se fosse o único que existe, depois fazei o mesmo com bhakti, com raja e com carma. Abandoneis as ondas e ide ao oceano; depois podereis ter as ondas quando queirais. Controlai o lago da vossa própria mente, do contrário não podereis compreender o lago da mente alheia.
O verdadeiro mestre é aquele que pode somar todas suas energias à tendência do discípulo. Sem verdadeira simpatia nunca poderemos ensinar bem. Afastais o conceito de que o homem é um ser responsável; só o homem perfeito é responsável. Os ignorantes beberam da taça da ilusão até esgota-la e não estão em seu são juízo. Vós que sabeis, tendes infinita paciência com eles. Não sintais senão amor para com eles e tratais de descobrir a enfermidade que contraíram, ao ver o mundo de maneira tão errônea; ajudais-lhe a curar-se e a ver com retidão. Recordais sempre que só os livres possuem livre arbítrio; os demais estão escravizados e não são responsáveis pelo que fazem. A vontade, como tal, está ligada. A água produzida ao derreter-se a neve no pico do Himalaia é livre, mas ao converter-se em rio, cai atraída no leito; contudo, o impulso original a leva ao oceano, onde recobra sua liberdade. Primeiro se produz a “caída do homem” e logo sobrevém “a ressurreição”. Nem um só átomo encontrará repouso até que encontre sua liberdade.
Certas imaginações ajudam a romper as ligações de outras. Todo o universo é imaginação, mas uma série de imaginações cura a outra. Aquelas que nos dizem que no mundo há pecado, sofrimento e morte, são terríveis; mas as que sempre nos repetem “sou santo, há Deus, não há dor”, são boas e ajudam a romper as ligações causadas pelas outras imaginações. A imaginação mais elevada e que melhor pode romper todos os elos da cadeia, é a do Deus pessoal.
“Om Tat Sat” é o único que está mais além de maia, mas Deus existe eternamente. Enquanto existir as cataratas do Niágara, existirá o arco-íris; mas a água corre incessantemente. As cataratas são o universo, o arco-íris é o Deus pessoal e ambos são eternos. Enquanto existir o universo, Deus deve existir. Deus cria o universo, o universo cria Deus e ambos são eternos. Maia não é existência nem não-existência. Tanto as cataratas do Niágara como o arco-íris mudam eternamente; Brahman visto através de maia. Os persas e os cristãos dividem a maia em dois e chamam Deus de a metade boa e o diabo a metade má. A vedanta considera a maia como um todo e reconhece uma unidade mais além dela: Brahman.
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Maomé observou que o cristianismo estava se apartando da grei semítica e seus ensinamentos se dirigiram para demonstrar que o cristianismo deve ser uma religião semítica, porque sustenta a existência de um Deus único. O conceito ário de que “Eu e meu Pai somos um”, lhe causou desgosto e terror. Na realidade, o conceito da Trindade foi um grande impulso sobre a idéia dualista de um Jeová separado do homem para sempre. A teoria da encarnação é o primeiro elo na cadeia de idéias que conduzem ao reconhecimento da unidade de Deus e o homem. Deus, que aparece primeiro em forma humana e reaparece depois em diferentes épocas e outras formas humanas, é finalmente reconhecido como residindo em cada forma humana ou em todos os homens. O monismo é o estado mais elevado; o monoteísmo é um estado inferior. A imaginação os levará ao mais elevado com mais rapidez e facilidade, até que o racionalizes.
Deixes que uns poucos se afastem e vivam somente para Deus e salvem a religião para o mundo. Não pretendeis ser como Janaka quando somente sois progenitores de ilusões. (Janaka significa progenitor e é o nome de um rei que, mesmo quanto conservava o reinado por amor a seu povo, havia abandonado tudo, mentalmente). Sois honestos e dizeis: “vejo o ideal, mas não posso pratica-lo”; não simuleis que renunciais quando, na realidade, não o fazeis. Se renunciais, vos mantenhais firmes. Embora na batalha caiam cem soldados, tomais a bandeira e a levais adiante. De todo modo Deus é verdade, não importa quem caia. Aquele que cai deve entregar a bandeira a outro para que a leve adiante; a bandeira nunca deve cair.
Se estou banhado e limpo, por que me hão de atirar impurezas sobre mim? Busqueis primeiro o reino dos céus e abandonais tudo o mais. Não desejeis que vos agreguem algo; alegrai-vos de ficar livres de tudo. Renunciais e sabeis que o êxito será a conseqüência, embora jamais o vejais. Jesus só deixou doze pescadores e, no entanto, estes poucos destruíram o império romano.
Sacrificais no altar de Deus o melhor e mais puro que produz a terra. Quem luta vale mais que o que nunca o intente. Até o fato de olhar um ser que renunciou, exerce um efeito purificador. Sejais pra Deus; desligai-vos do mundo. Não transijais; renunciais ao mundo, pois só assim ficareis livres do corpo. Quando morrer o corpo, sereis livres. Sejais livres. Somente a morte não basta para vos libertar. Devemos alcançar a liberdade mediante nossos esforços durante a vida; depois, quando morrer o corpo, já não haverá renascimento para o livre.
A verdade deve ser julgada pela verdade e nada mais. O fazer bem não é a prova da verdade. Não necessitamos de tochas para ver o sol. Embora a verdade destrua o universo, continuará sendo a verdade; sujeite-se a ela.
A prática das formas concretas da religião é fácil e atrai as massas, mas na realidade nada há nas exterioridades.
“Assim como a aranha tece a teia de si mesma e a absorve novamente, da mesma maneira este universo emana de Deus e é reabsorvido por Ele”.
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Terça-feira, agosto 6.
Sem o eu não pode existir o vós no exterior. Alguns filósofos deduziram disto que o mundo externo não existe senão no sujeito, que o tu só existe no eu. Outros argüiram que o eu só pode ser conhecido mediante o tu, com igual lógica. Os dois pontos de vista são parcialmente certos; em parte falsos e em parte corretos. O pensamento é tão material e está tanto na natureza como no corpo. A matéria e a mente existem numa terceira, uma unidade que se divide nos dois. Esta unidade é o Atman, o Eu Real.
Existe o ser, uma incógnita que se manifesta como mente e como matéria. Seus movimentos no visível se realizam ao largo de certas linhas fixas chamadas leis. Como unidade, é livre; como pluralidade, está ligado pela lei. No entanto, apesar de todas estas limitações, sempre persiste uma idéia de liberdade e isto é nivriti (arrancar-se do apego). As forças materializantes que nos levam a tomar parte ativa nos assuntos mundanos, mediante o desejo, são chamadas pravritti (ir para o apego).
Ação moral é aquela que nos livra dos laços da matéria e vice-versa. Este mundo aparece como infinito porque tudo se acha em um círculo; tudo volta a seu ponto de partida. O círculo se completa e por isso não há aqui descanso nem paz em nenhuma parte. Devemos sair. Mukti é o único fim que devemos alcançar.
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O mal muda de forma, mas em essência acaba sendo o mesmo. Nos tempos antigos governava a força, hoje rege a astúcia. Na Índia, a miséria não é tão grave como na América, porque aqui o pobre nota um contraste entre sua má condição e a dos outros.
O bem e o mal se acham inextricavelmente combinados e não se pode ter um sem o outro. No universo, a soma total de energia se parece com um lago; cada onda produz, inevitavelmente, a correspondente depressão. A soma total permanece inalterável; de maneira que fazer feliz a um homem equivale a fazer desgraçado a outro. A felicidade externa é material e tem provisão fixa; ninguém pode obter nem um grão, sem tirar de outro. A felicidade só pode ser alcançada, sem perda para ninguém, além do mundo material. A felicidade material é unicamente uma transformação do sofrimento material.
Aqueles que nasceram em uma onda e se mantém nela, não notam a depressão nem que esteja ali. Nunca penseis que podeis melhorar ou fazer mais feliz o mundo. O boi junto ao moinho de azeite nunca alcança o fardo de feno diante dele; só mói as sementes. Da mesma maneira, perseguimos o fogo fátuo da felicidade que sempre nos ilude, só moemos no moinho da natureza e depois morremos para começar de novo. Se pudéssemos nos livrar do mal, nunca chegaríamos a vislumbrar algo mais elevado; ficaríamos satisfeitos e não lutaríamos para obter a liberdade. A religião começa quando o homem compreende a insensatez de buscar a felicidade na matéria. Todo conhecimento humano constitui somente numa parte da religião.
O bem e o mal estão equilibrados no corpo humano e se o homem quiser, pode libertar-se de ambos.
O livre nunca se escravizou; é ilógico inquirir como o fez. Onde não existe escravidão, não há causa e efeito. “Sonhei que era uma raposa e um cão me perseguia”. Como pode perguntar agora por que me perseguia o cão? A raposa era parte do sonho; por conseqüência lógica surgiu um cão; mas ambos pertencem ao sonho e fora dele carecem de existência. A ciência e a religião são esforços para sair do cativeiro; só que a religião é mais antiga e por superstição, pensamos que é a mais santa. O é, de um certo modo, porque faz da moralidade um ponto vital, enquanto que a ciência não.
“Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus”. Somente esta sentença bastaria para salvar a humanidade, até que desaparecessem todos os livros e profetas. Tal pureza de coração traz uma visão de Deus. É o tema de toda música deste universo. Na pureza não existem ligações. Arranquemos por meio da pureza os véus da ignorância e então nos manifestaremos como realmente somos e saberemos que jamais estivemos ligados. Ver os muitos é o grande pecado de todo mundo. Vedes tudo como o Eu e ame-o todo; despojais-vos de toda idéia de separação.
* * *
O homem diabólico é parte de meu corpo como uma ferida ou uma queimadura. Devemos cuidar dele e melhora-lo; até que se cure e se sinta novamente feliz e são.
Enquanto pensamos no plano espiritual relativo, temos o direito de crer que como corpos, podemos ser prejudicados pelas coisas relativas e igualmente ajudados por elas. A esta idéia de ajuda, quando abstrata, chamamos Deus. Deus é o conjunto de todas as idéias de ajuda; o composto abstrato do quanto é misericordioso, bom e capaz de prestar ajuda; essa deveria ser a única idéia. Como Atman, não possuímos corpo; portanto é absurdo dizer: “eu sou Deus e o veneno não pode prejudicar-me”. Enquanto existe um corpo e o vemos, não realizamos Deus. Pode um pequeno redemoinho continuar existindo quando o rio desaparece? Pedis ajuda e a tereis, no fim achareis que o pedido de ajuda se desvanece e também o Ajudante; o jogo termina, só fica o Eu.
Uma vez alcançado isso, volteis a jogar segundo vossa vontade. Este corpo já não poderá causar prejuízo, porque a libertação só chega quando todas as más forças tenham sido queimadas; todas as impurezas queimam e só fica “chama sem fumaça e sem calor”.
O impulso dado faz avançar o corpo, mas este só pode fazer bem, porque o mal desapareceu antes de chegar à liberdade. O ladrão moribundo na cruz colheu os efeitos de suas passadas ações. Tinha sido um yogui e teve um deslize; precisou nascer novamente; voltou a cair e se converteu em ladrão; mas o bem que fez anteriormente frutificou e encontrou Jesus no instante em que podia alcançar a libertação e uma só palavra o libertou.
Buda liberou seu maior inimigo porque este o odiava tanto que pensava constantemente Nele; esse pensamento purificou sua mente e ficou em condições de alcançar a liberação. Portanto, pensais constantemente em Deus e isso os purificará.
CARTAS
de Swami Vivekananda
(1)
541
Dearborn Avenue, Chicago.
3 de março de 1894.
Estimado...: Estou de acordo com o senhor em que a fé é uma maravilhosa percepção interior e em que só ela pode salvar; mas existe o perigo de que alimente o fanatismo, impedindo o progresso ulterior.
Jnana é coisa boa contanto que não se converta em seco intelectualismo. O amor é grande e nobre; mas pode desvanecer-se, transformando-se em sentimentalismo sem sentido. O que se necessita é harmonia entre todos eles. Ramakrishna representou tal harmonia. Seres como ele existem poucos e nascem muito de vez em quando; tomando-o e a seus ensinamentos como ideal, podemos marchar adiante. Se entre nós não pode cada um, individualmente, alcançar tal perfeição, podemos alcança-la coletivamente, neutralizando-nos, equilibrando-nos, ajudando-nos e completando-nos uns aos outros. Esta harmonia, alcançada entre certo número de pessoas, constituiria um decidido progresso sobre as demais formas e credos.
Para que uma religião seja eficaz, se requer entusiasmo. Ao mesmo tempo temos que evitar o perigo da multiplicação de credos. Nós o temos alcançado constituindo uma seita “não sectária”, com todas as vantagens de uma seita e a amplitude de uma religião universal.
Embora Deus esteja em todas as partes, podemos conhece-lo em e por meio do caráter humano. Nenhum caráter foi jamais tão perfeito como o de Ramakrishna; este haveria de ser o centro ao redor do qual deveríamos nos agrupar; deixando, ao mesmo tempo, que cada um o considere sob sua própria luz; seja como Deus, como Salvador, como instrutor, como modelo ou como grande homem, como for melhor.
Nós não pregamos nem igualdade, nem desigualdade social, senão que todos os seres têm os mesmos direitos; e insistimos na liberdade de pensamento e de ação em todos os sentidos;
Não rechaçamos a ninguém; nem o ateísta, nem ao panteísta, monista, politeísta, agnóstico, nem ateu; a única condição para ser discípulo é modelar o caráter para que seja o mais amplo e o mais intenso possível.
Tampouco insistimos em determinados códigos de moralidade enquanto conduta, caráter, comida e bebida, salvo aquele que prejudique aos outros.
Tudo quanto retarde o progresso ou ajude a caída, é vício; tudo o quanto ajude na ascensão e a estabelecer harmonia, é virtude.
Desejamos a todos plena liberdade para conhecer, escolher e seguir aquilo que lhe acomode e ajude. Assim, por exemplo, comer carne pode ajudar a um, comer frutas a outro. Cada qual tem direito a suas próprias peculiaridades, mas não deve criticar a conduta dos demais porque isso acabaria por prejudicar a si mesmo; muito menos insistir para que outros sigam seu caminho. Para alguns, uma esposa pode ser uma ajuda na senda do progresso; para outros, pode resultar em prejuízo positivo. Mas o solteiro não tem direito de dizer que um casado está equivocado; muito menos impor seu próprio ideal de moralidade a seu irmão.
Opinamos que todo ser é divino, que é Deus. Cada alma é um sol coberto por nuvens de ignorância; a diferença entre alma e alma está na densidade das capas de nuvens. Cremos que tal é a base, consciente ou inconsciente, de todas as religiões e a explicação da historia inteira do progresso humano; seja no plano material, no intelectual ou no espiritual. O mesmo espírito se manifesta através de todos os planos.
Cremos que isto é a essência dos Vedas e que é dever de toda alma tratar as outras almas, pensar nelas, comportar-se com elas, como tais; é dizer como deuses e não odiá-las, despreza-las, denegri-las, nem tratar de prejudica-las de nenhuma maneira, nem por meio algum. Tal é o dever, não só do sannyasin, mas também de todos os homens e mulheres. A alma não tem sexo, nem casta, nem imperfeição.
Em nenhuma parte afirmam os Vedas, Darshanas, Puranas ou Tantras, que a alma tenha sexo, credo ou casta. Por conseguinte, coincidimos com quem diz: “Que tem a ver a religião com as reformas sociais?”. Mas hão de estar de acordo conosco quando lhes dizemos que a religião não tem porquê formular leis sociais e insistir nas diferenças entre os seres; porque seu objetivo e finalidade são apagar todas as ficções e monstruosidades.
Se alegar-se como razão que graças a esta diferença alcançaremos, finalmente, igualdade e unidade, responderemos que a mesma religião diz uma ou outra vez que o barro não pode ser limpo com barro.
Como se um homem pudesse tornar-se moral, sendo imoral!
As leis foram criadas por condições econômicas, sob a sanção da religião. O terrível erro da religião foi imiscuir-se em questões sociais. Mas com que hipocrisia disse, contradizendo-se: “A reforma social não é assunto da religião!”. Exato; o que queremos é que a religião não seja uma reformadora social; mas insistimos, ao mesmo tempo, que a religião não tem o direito a converter-se em legislador social. Não vos intrometais; mantenha-vos dentro de vossos próprios limites e tudo ficará bem!
1.
Educação é a manifestação da perfeição já existente no homem.
2.
Religião é a manifestação da divindade já existente no homem.
Portanto o único dever do instrutor, em ambos os casos, é eliminar as obstruções do caminho. Não se imiscuir, como digo sempre e tudo ficará bem. É dizer, nosso dever é despejar o caminho. O Senhor faz o resto.
Em conseqüência tenha o senhor presente que a religião se relaciona unicamente com a alma e nada tem que fazer em questões sociais. Tenha também em conta que isto se aplica inteiramente ao mal já feito. É como se alguém, depois de tomar pela força a posse da propriedade de outro, chora, quando este outro trata de recupera-la e se põe a pregar a santidade do direito humano.
Com que direito o sacerdote se intromete (prejudicando a milhões de seres humanos) em toda questão social?
Falais do kshatriya que come carne; com carne ou sem ela, são os pais de todo o nobre e belo que há no hinduismo. Quem escreveu os Upanishads? Quem foi Rama? Quem foi Krishna? Quem foi Buda? Quem foram os tirthankaras dos jainos? Onde quer que os kshatriyas preguem religião, a deram a todo o mundo; em troca, quando os brahmanes escreveram algo, negaram todo o direito a outros. Leia o Gita e os Sutras de Vyasa, ou faça com que alguém os leia. O Gita abre o caminho a todos, homens e mulheres de todas as castas e todas as cores; mas Vyasa trata de interpretar a seu modo os Vedas para enganar aos pobres shudras. É acaso Deus um tolo nervoso para que o rio de sua misericórdia possa ficar estancado por um pedaço de carne? Se assim fosse, não valeria um confeito!
Não espere nada de mim; mas estou convencido, como lhe escrevi e disse ao senhor, que a Índia há de ser salva pelos hindus mesmo. Assim, senhores, filhos da mãe pátria, podem converter-se por dúzias em quase fanáticos deste novo ideal? Pensem, juntem materiais, escrevam um esboço da vida de Ramakrishna, evitando cuidadosamente todos os milagres. Essa biografia deve ser escrita como ilustração das doutrinas que ele pregou. Só isto; não incluam a mim, nem a pessoa vivente alguma. O objetivo principal deve ser dar ao mundo que ele ensinou e descrever a vida que ilustra tal ensinamento. Eu, indigno como sou, tenho uma missão; mostrar o cofre de jóias que me foi confiado e passa-lo aos senhores. Por que aos senhores? Porque os hipócritas, os ciumentos, os escravos e os covardes, os que crêem unicamente na matéria, jamais podem fazer algo. A inveja é a calamidade de nosso caráter nacional; e é natural dos escravos. Nem o Senhor, com todo o seu poder, pode fazer nada por nós por causa dos ciúmes.
Pense em mim como alguém que cumpriu com seu dever e está agora morto e desaparecido. Pense que todo o trabalho pesa sobre seus ombros. Pensem que os senhores, jovens de nossa mãe pátria, foram destinados para fazer isto. Ponham-se à tarefa. Deus os bendiga. Abandonem-me, percam-me de vista. Preguem o novo ideal, a nova doutrina, a nova vida. Não preguem contra ninguém; contra nenhum costume. Não preguem contra nenhuma casta, nem contra qualquer outro mal social; preguem; “Não imiscuir-se”, e todo ficará bem.
Com minha bênção para todos os senhores, meus valentes, firmes e amantes almas,
Vosso,
VIVEKANANDA.
(2)
Chicago, 23 de junho de 1894.
Alteza: Que Sri Narayana vos bendiga e aos vossos. Agradeço pela bondosa ajuda de vossa Alteza de possibilitar minha vinda a este país. Desde então, chego a ser bem conhecido aqui e este povo hospitaleiro tem satisfeito todas as minhas necessidades. Este é um país maravilhoso em muitos sentidos. Em nenhuma outra nação se emprega tanto maquinário no trabalho diário, como aqui. Tudo são máquinas. Constitui só a vigésima parte da população total do mundo; não obstante, possui uma sexta parte de toda riqueza da terra. Sua riqueza e luxo não têm limites. Contudo, tudo é muito caro. Os jornais do trabalhador são os mais altos do mundo; todavia, a luta entre o capital e o trabalho é constante.
Em parte alguma da terra gozam as mulheres de tantos privilégios como na América; pouco a pouco tomam todas as coisas em suas mãos; e estranho é dizer que o número de mulheres cultas é muito maior que o de homens. Naturalmente os gênios superiores pertencem às fileiras masculinas. Apesar do muito que os ocidentais censuram nossa casta, eles têm uma pior, a do dinheiro. O todo-poderoso dólar, como dizem os americanos, tudo pode aqui...
Nenhum outro país da terra tem tantas leis; mas em nenhum país são tão pouco tidas em conta. Em conjunto, nosso pobre povo hindu tem mais moral que qualquer dos ocidentais. Em religião, ou são hipócritas, ou fanáticos. Os homens desapaixonados estão desgostosos com suas religiões supersticiosas e dirigem seus olhares à Índia em busca de nova luz. Vossa Alteza não pode imaginar, sem vê-la, a ânsia com que recebem qualquer fragmento das grandes idéias dos santos Vedas, que resistem incólumes aos ataques da ciência moderna. As teorias sobre a criação surgida do nada, sobre uma alma criada, sobre um tirânico Deus sentado em um trono em um lugar chamado céu e sobre o fogo eterno do inferno, tem nauseado todas as pessoas instruídas. Em troca, as nobres idéias dos Vedas sobre a eternidade da criação e da alma e sobre Deus em nossas próprias almas, estão infiltrando-se rapidamente, de uma forma ou outra. Dentro de cinqüenta anos, as pessoas cultas do mundo chegarão a crer na eternidade, tanto da alma como da criação e em um Deus que não é senão nossa natureza superior e perfeita, segundo se ensina em nossos santos Vedas. Agora, até os sacerdotes instruídos interpretam a Bíblia neste sentido. Minha conclusão é que necessitam se mais civilização espiritual e nós, uma mais material.
A raiz principal de todos os males da Índia é a condição dos pobres. Os pobres do Ocidente são demônios; comparados com eles, os nossos são anjos; por conseguinte, fica muito mais fácil levantar nossos pobres. O único serviço que podemos prestar a nossas classes baixas é dar-lhes educação; desenvolver sua perdida individualidade. Esta é a grande tarefa entre nosso povo e os príncipes. Até agora, nada foi feito nesse sentido. O poder sacerdotal e a conquista estrangeira têm pisoteado durante séculos, até que por último, os pobres da Índia esqueceram que são seres humanos. Devemos dar-lhes idéias; abrir seus olhos ao que ocorre no mundo que os rodeia; logo eles mesmos trabalharão por sua salvação. Dêem-lhes idéias; esta é a única ajuda que necessitam; o mais há de seguir como conseqüência. Nossa função consiste em juntar os elementos químicos, a cristalização se produz pela lei natural. Nosso dever é pôr idéias em suas cabeças; eles farão o resto. Isto é o que é necessário fazer na Índia. Tal é a idéia que há muito tempo cobiço em minha mente. Não pude realiza-la na Índia; por isso vim a este país. A grande dificuldade na maneira de educar os pobres de nosso país reside no seguinte: supondo que Vossa Alteza abrisse uma escola gratuita em cada povo, não faria bem algum porque a pobreza na Índia é tanta, que os meninos prefeririam ajudar seus pais nos campos, ou ganhar a vida de alguma maneira, antes de ir à escola. Agora bem, se a montanha não vai a Maomé, Maomé terá que ir à montanha. Se o menino pobre não pode ir receber instrução, a instrução tem de ir até ele.
Existem em nosso próprio país milhares de sannyasines com sincero espírito de sacrifício, que vão de povo em povo, ensinando religião. Se fosse possível organizar alguns deles como mestres de coisas seculares, também iriam de lugar em lugar, de casa em casa, não só pregando, mas ensinando por sua vez. Suponhamos que dois desses homens vão a um povo com uma câmara, um globo, alguns mapas, etc. Poderiam ensinar muito sobre astronomia e geografia aos ignorantes. Mediante relatos sobre diferentes nações, poderiam dar aos pobres cem vezes mais informações de ouvido, que a que podem obter lendo livros durante toda sua vida. Isto requer organização e também dinheiro. Há bastante homens na Índia para desenvolver este plano; mas ai! Carecem de dinheiro. Fica muito difícil pôr uma roda em movimento. Mas uma vez posta em marcha, se move com crescente velocidade. Depois de buscar ajuda em meu próprio país, sem encontrar simpatia alguma dos ricos, vim a este com a ajuda de Vossa Alteza. Aos americanos não interessa o mínimo se os pobres da Índia vivem ou morrem. E por que haveria de lhes importar, quando nosso próprio povo só pensa em seus egoísmos?
Meu nobre príncipe, esta vida é curta, as vaidades do mundo são transitórias; só vive quem vive para outros; os demais estão mais mortos que vivos. Um filho exaltado, de pensamento nobre e real da Índia, como Vossa Alteza, pode fazer muito para levantar de novo a Índia e, assim, deixar à posteridade, um nome que será adorado. Que o Senhor faça sentir intensamente em vosso nobre coração, o sofrimento de milhões de hindus, sumidos na ignorância, é a pregação de
VIVEKANANDA.
À
sua Alteza, Maharaj de Mysore.
(3)
54 West
33rd Street, N. Y.
1º de fevereiro de 1895.
Apreciada irmã: Acabo de receber sua formosa cartinha. Acontece, às vezes, ser boa disciplina ver-se forçado a trabalhar pelo trabalho mesmo, embora a ponto de não poder desfrutar dos frutos de seu labor. Regozijam-me muito suas críticas e não as lamento o mínimo. Outro dia, na casa da senhorita T., tive uma viva discussão com um cavalheiro presbiteriano, quem, como de costume, se acalorou, aborreceu e insultou. No entanto, mais tarde, fui severamente repreendido pela senhora B. por isso; porque essas coisas obstaculizam meu trabalho. Parece que a senhora tem a mesma opinião.
É aprazível que me escreva a senhora sobre ele agora, porque refleti muito sobre o assunto. Eu não lamento, em absoluto, estas coisas. Talvez isso desgoste a senhora, pode ser. Eu sei perfeitamente bem quando convém para a situação mundana, que alguém se faça agradável... Faço tudo o que posso para sê-lo, mas quando para isso devo barganhar com a verdade interna, me detenho. Eu não creio na humildade; creio em “samadarshitvam”; o mesmo estado mental com respectivo a todos. O dever do homem ordinário é obedecer aos mandatos de seu “Deus”, ou seja, à sociedade; mas os filhos da Luz nunca fazem assim. Esta é uma lei eterna. Alguém se acomoda ao meio ambiente e a opinião social e obtém tudo da sociedade, que para ele é a doadora de todo o bem. Outro permanece só e eleva a sociedade a si mesmo. O homem acomodatício encontra uma senda de rosas; e no acomodatício um caminho de espinhos. Mas os adoradores da “Vox populi” chegam muito logo à aniquilação; os filhos da verdade vivem eternamente.
Comparo a verdade a uma substância corrosiva de poder infinito. Onde quer que caia, se abre caminho queimando; se a substância é branda, de imediato; se é duro granito, pouco a pouco; mas há de queima-lo. O escrito, escrito está. Lamento muitíssimo, irmã, não poder fazer-me agradável e acomodatício a toda negra falsidade. Porém não posso. Sofri por isso toda minha vida; porém não posso. Procurei e provei; porém não posso. Por fim, o deixei. O Senhor é grande. Ele não permitirá que me torne um hipócrita. Agora deixemos que saia o que está dentro. Não encontrei a maneira de agradar a todos e não posso ser senão como sou, fiel a mim mesmo. “A juventude e a beleza se desvanecem, a vida e a riqueza desaparecem, o nome e a fama se esfumam, até as montanhas se tornam pó. A amizade e o amor se desvanecem, só a verdade perdura”. Deus da verdade, seja Tu meu único guia! Sou demasiado velho para converter-me em leite e mel; deixa-me permanecer tal qual sou. “Sem temor, sem mercantilismo, sem preocupar-te pelo amigo, nem pelo inimigo, mantém a verdade, sannyasin e desde este instante, abandona este mundo e o seguinte e todos os que hão de vir, com seus gozos e suas vaidades. Seja tu, verdade, meu único guia”. Não ambiciono riqueza, nem nome, nem fama, nem gozos, irmã, eles são pó para mim. Quero ajudar meus irmãos. Não tenho tato para ganhar dinheiro; o Senhor seja bendito. Que razão há para conformar-me com os caprichos deste mundo e não obedecer a voz da verdade interna? A mente é débil, irmã, ela, às vezes, se aferra mecanicamente à ajuda terrena. Mas não tenho medo. O medo é o pecado maior, segundo ensina minha religião.
A última controvérsia com o sacerdote presbiteriano e a longa luta depois com a senhora B., me fizeram ver, claramente, o que disse Manu ao sannyasin: “Vive só, marcha só”. Toda amizade, todo amor, é só limitação. Nunca houve amizade, especialmente de mulheres, que não fosse exigente. Oh, grandes sábios! Vós tínheis razão. Mantém-te tranqüila, alma minha; ficas só! E que o Senhor esteja contigo. A vida não é nada; a morte é uma ilusão! Tudo isto não é; só Deus é! Não temas, alma minha; ficas só! Irmã, o caminho é longo, o tempo é curto, a noite se aproxima. Devo chegar logo em casa. Não tenho tempo de transmitir minha mensagem. Os senhores são tão bons e amáveis; não farei tudo pelos senhores, mas não se incomodem, vejo-os a todos como crianças.
Não sonhes mais! Oh, não sonhes mais, alma minha! Em uma palavra, tenho uma mensagem a dar; não tenho tempo para fazer-me agradável ao mundo; cada intenção de ser agradável me converte em hipócrita; morrerei mil vezes antes de levar uma existência de medusa e ceder a cada demanda deste mundo néscio; não importa se for em meu próprio país ou no estrangeiro.
Está a senhora equivocada, completamente equivocada se crê que tenho um trabalho, como a senhora B. acredita; eu não tenho trabalho sob o sol, nem mais além. Tenho uma mensagem e a darei a minha maneira. Não farei minha mensagem hinduísta, nem cristã, nem a darei forma mundana alguma; a darei da minha forma e isso é tudo. Liberdade, mukti, condensa toda minha religião, evitarei lutando ou fazendo tudo o quanto trate de torce-la. Bah! Eu tratar de apaziguar aos sacerdotes! Irmã, não leve isto a mal. Os senhores são criaturas e as criaturas se submetem a ser ensinadas. Não beberam, todavia, na fonte que torna a razão irracional; ao mortal, imortal; a este mundo, zero; e ao homem, Deus. Afaste-se, se pode, desta rede de necessidades que eles chamam mundo. Então a chamarei de verdadeiramente valente e livre. Se não pode, encoraje aos que se atrevem a atirar ao solo este falso Deus, a sociedade, e pisotear sua protegida hipocrisia; se não os pode encorajar, ore, guarde silêncio, mas não trate de arrasta-los ao abismo, impulsionando-os às necessidades de transigir para tornar-se fino e agradável.
Odeio este mundo, a este sonho, a este horrível pesadelo, com suas igrejas e ardis, seus livros e patifarias; seus belos rostos e falsos corações, seus uivos de retidão na superfície e completa vaidade por debaixo e sobre tudo, seu mercantilismo santificado. Quê, medir minha alma de acordo com os que se dizem servos do mundo! Bah! Irmã, a senhora não conhece o sannyasin. “Ele está na cabeça dos Vedas”, dizem isto, porque está livre de igrejas, seitas, religiões, profetas, livros e de toda essa mesquinhez.
Missionário ou não missionário, deixe que uivem e me ataquem com tudo o que possam; os tomo, como disse Bhartrihari: “Segue teu caminho, sannyasin. Alguns dirão, quem é este louco? Outros, quem é este tagarela?; outros saberão que és um sábio. Alegra-te deste tagarelar dos mundanos. Mas quando te atacarem, saberás que o elefante, ao cruzar o mercado, será acossado sempre pelos cães; mas ele não fará caso, seguirá direto seu próprio caminho. Assim acontece sempre, quando aparece uma grande alma, são muitos os que a acossam com seus latidos”.
Vivo com L. em 54 West 33rd street. É uma alma valente o nobre, Deus o bendiga. Às vezes vou dormir em casa de G.
Deus os bendiga sempre a todos e os tire logo desta grande farsa, o mundo! Que nunca se deixem fascinar por esta velha bruxa, o mundo! Que Shankara os ajude! Que Uma lhes abra a porta da verdade e lhes tire as ilusões!
A senhora com carinho e bênçãos,
VIVEKANANDA.
(4)
A UM INGLÊS
Nova Yorque, 9 de agosto de 1895.
...Tratarei de expressar-lhe algumas de minhas opiniões como correspondente. Creio plenamente que a religião fermenta periodicamente na sociedade humana e que o mundo instruído está atravessando um desses períodos. Mesmo cada fermento aparecendo quebrado em várias pequenas bolhas, estas são todas similares e demonstram que têm uma mesma causa. Esse fermento religioso que no presente atrai a cada dia mais aos homens que pensam, tem esta característica: todos os pequenos redemoinhos de pensamento em que se quebram, afirmam um só objetivo, ou seja, a visão e a busca da unidade dos seres. Nos planos: físico, ético e espiritual, flutua uma sempre mais ampla generalização, levando-nos ao conceito da Unidade eterna. Podemos, pois, considerar que todos os movimentos da época representam, a saber ou sem sabe-lo, a mais nobre das filosofias sobre a unidade do homem, ou seja, a advaita-vedanta.
Por outro lado, é observado sempre que, como resultado da luta entre os diversos fragmentos do pensamento, em uma época dada, sobrevive uma só bolha. As demais só nascem para fundir-se com ela e formar uma só grande onda, a qual arrasta a sociedade com força irresistível.
Na Índia, na América e na Inglaterra (os países que conheço) centenas dessas bolhas estão lutando no momento presente. Na Índia as fórmulas dualistas estão já decaindo; só a advaita se mantém vigorosa. Na América, muitos movimentos lutam pelo predomínio; todos eles representam o conceito da advaita em maior ou menor medida e a série que se difunde mais rapidamente, é a que se aproxima, mais que as outras, àquela. Agora bem, se algo tem sido sempre claro para mim, é que uma delas há de sobreviver, absorvendo todas as demais, para constituir o poder do futuro. Qual será?
Se recorrermos a história, veremos que unicamente sobrevive o fragmento mais apto e que o faz mais apto senão o caráter? A advaita será a religião futura da humanidade pensante. Não há dúvida. E em todas as seitas, só ganhará a batalha quem mostrar mais caráter em suas vidas, não importa quão longe estejam.
Permita-me contar-lhe uma experiência minha: quando meu Mestre deixou o corpo, éramos uma dezena de jovens sem um centavo e desconhecidos. Contra nós se erguiam centenas de organizações poderosas que lutavam duramente para florescer. Mas Ramakrishna nos havia legado um grande dom; o desejo de, não falar somente, mas viver a vida, mesmo que para isso tivesse que lutar durante toda a existência. E hoje, toda a Índia conhece e reverencia o Mestre; e as verdades que ele ensinou se propagam como fogo na selva. Há dez anos não consegui reunir cem pessoas para celebrar o aniversário de seu nascimento. No ano passado, havia cinco mil.
Nem a multidão, nem o poder, nem a riqueza, nem o saber, nem a eloqüência, nem outra coisa alguma prevalece mais que a pureza, viver a vida. Em uma palavra, anubhuti, realização. Se existisse em cada país uma dezena de tais almas-leões, que tivessem rompido suas próprias ligações, que tivessem alcançado o Infinito, cuja alma inteira tivesse ido a Brahman e que não buscassem nem riqueza, nem poder, nem fala, bastariam para sacudir o mundo.
Nisto consiste o segredo. Patanjali, pai do yoga, disse: “Quando um homem rechaça todos os poderes sobre-humanos, então alcança a nuvem da virtude”. Vê a Deus, converta-se em Deus e ajuda a outros a chegar a ser o mesmo. Isto é tudo o que tenho que pregar. As doutrinas têm sido bastante explicadas. Há livros por milhões. Oh! se houvesse uma onça de prática!
E quanto às sociedades e organizações, elas se encontrarão a si mesmas. Pode haver ciúmes onde não há de quê estar ciumento? Os nomes de quem queiram nos prejudicar, serão legião. Mas, não é isso mesmo o sinal mais patente de que possuímos a verdade? Quanto mais oposição encontrar, tanto mais se expressará minha energia. Tem sido exaltado e adorado pelos príncipes; tem sido caluniado pelos sacerdotes e laicos por igual. Mas, que importa isso? Benditos sejam todos. Eles são Eu mesmo. Não me ajudaram, atuando como trampolim, para que minha energia tomasse mais e mais elevados os vôos?
... descobri um grande segredo; nada tenho que temer dos que falam de religião; e os grandes seres que realizam não são inimigos para ninguém. Deixemos que os tagarelas falem. Não sabem de nada melhor. Deixemos que fartem de nome, de fama, de dinheiro e de mulheres. Mantenhamos o desejo de realização; de ser Brahman; de nos convertermos em Brahman. Atenhamos-nos à verdade até a morte e de vida em vida. Não prestemos a mínima atenção ao que os outros digam; e se depois do esforço de toda a vida, uma alma, só uma, romper as ligações deste mundo e ver-se livre, teremos realizado nossa obra. Hari Om!
...uma palavra mais. Indubitavelmente eu amo a Índia. Mas cada dia minha visão se torna mais clara. Que é a Índia, ou Inglaterra, ou América para nós? Somos os servidores desse Deus a quem os ignorantes chamam Homem. Quem rega as raízes, não rega também toda a árvore?
Só há uma base para o bem-estar social, político e espiritual: é saber que eu e meu irmão somos um. Isto é verdade para todos os países e para todas as pessoas. Os ocidentais, permitam-me dizer, se darão conta disso antes que os orientais, os quais se esgotarão, quase, formulando a idéia e produzindo uns poucos casos de realização individual.
Trabalhemos sem desejo de nome ou fama, nem de mandar nos outros. Mantenhamos-nos livres de concupiscências, cobiça e de ira. E a verdade está conosco.
CARTAS
(5)
EE.UU. de N.A., agosto de 1895.
Quando receber esta presente, querido A, eu estarei em Paris. Tenho realizado muito trabalho este ano e espero que o que vem, realizará muito mais. Não te preocupes com os missionários; é muito natural que gritem. Quem não grita, quando seu pão diminui? Os fundos dos missionários têm experimentado uma grande diminuição durante os últimos anos e esta diminuição está se acentuando. No entanto, desejo aos missionários, êxito completo. Enquanto sentes amor por Deus e ao guru e fé na verdade, nada pode prejudicar-te, filho meu. Mas a perda de qualquer destes é perigosa. Tua observação é acertada; minhas idéias darão melhores resultados no Ocidente que na Índia. Eu fiz mais pela Índia que o que este fez jamais por mim. Creio, em verdade, que o Senhor me envia trabalhadores em grande número onde quer que eu vá e não são como... os discípulos; senão que estão dispostos a dar suas vidas por seu guru.
A verdade é meu Deus, o universo minha pátria. Não creio no dever. O dever é a maldição do “samsari”, não é para o sannyasin. O dever é uma farsa. Sou livre, minhas ligações estão cortadas; que me importa aonde vai ou deixa de ir este corpo? Tu tens me ajudado quase sozinho. O Senhor te recompensará. Não tenho buscado louvores, nem da Índia, nem da América, nem busco tais bagatelas. Eu, o filho de Deus, tenho uma verdade que ensinar. E Aquele que me deu a verdade, me enviará colaboradores dos mais valentes e melhores da terra. Vós, os hindus, verão dentro de poucos anos, o que o Senhor faz no Ocidente. Parecerão a vós os judeus da antiguidade; cães de hortelãos que nem comem, nem deixam comer. Não terão religião, vosso Deus é a cozinha, vossa Bíblia as panelas. São uns poucos rapazes valentes...Conserva-os assim; que não haja covardes entre meus filhos... Acaso se alcançam as grandes coisas sem dificuldades? O tempo, a paciência e a vontade indomável devem triunfar. Poderia ter dito muitas coisas que teriam feito palpitar teu coração, mas não as direi. Quero vontades de ferro e corações que não fraquejem. Firmes! Que o Senhor os bendiga. Vosso sempre com bênçãos,
VIVEKANANDA
(6)
63 St.
George’s Road, London, S. W.
Julio 6 de 1986.
Querido F.: …As coisas vão muito bem deste lado do Atlântico.
As conferências dominicais tiveram muito êxito e o mesmo as aulas. O ciclo terminou e me sinto completamente exausto. Darei uma volta pela Suíça com a senhorita Muller. Os G. têm sido muito, muito amáveis, J. os conquistou de forma esplêndida. Verdadeiramente, admiro a J. por seu tato e seu modo tranqüilo; é todo um homem de Estado, feminino. É capaz de governar um reino. Poucas vezes vi um ser humano em sentido comum, tão firme e bom. Voltarei no próximo outono a renovar meu trabalho na América.
Anteontem à noite fui a uma festa na casa da Sra. M., a quem seguramente conheces já por tudo o que J. te havia contado.
A obra segue crescendo, silenciosa, porém firmemente, na Inglaterra. São muito numerosos os homens e mulheres que têm vindo a falar-me de seu trabalho. Apesar de todos seus defeitos, o Império Britânico é a melhor máquina existente para disseminar idéias. Tenho intenção de colocar minhas idéias no centro desta máquina e assim se espargirão pelo mundo inteiro. No entanto, toda grande obra se efetua com lentidão e nesta, as dificuldades são muitas, sobretudo per serem nossos hindus, a raça conquistada. E sem dúvida, por essa mesma razão obteremos o resultado, porque os ideais espirituais têm provido sempre os povos pisoteados. Os judeus oprimiram o império romano com seus ideais espirituais.
Te alegrará saber que a cada dia vou aprendendo minha lição de paciência e sobretudo de simpatia. Creio que estou começando a ver a Divindade até nos altaneiros e poderosos anglo-hindus. Creio que pouco a pouco vou me aproximando de um estado do qual serei capaz de amar ao mesmíssimo demônio, se é que existe.
Aos vinte anos, era eu o mais inflexível e desalmado dos fanáticos, por nada teria pisado a calçada dos teatros de Calcutá. Agora, aos trinta e três, posso viver na mesma casa com prostitutas, sem que me ocorra dirigir-lhes uma palavra de reprovação. Estou degenerando? Ou será que estou ampliando no Amor Universal que é o Senhor Mesmo? Também tenho ouvido dizer que se alguém não vê o mal ao seu redor, não pode fazer boa obra, pois cai em uma espécie de fatalismo. Não me parece certo. Pelo contrário, meu poder de trabalhar está aumentando imensamente e tornando-se muito eficiente. Em certos dias me sinto possuído por uma espécie de êxtase. Sinto ânsias de bendizer a tudo, bendizer a todos; quero amar e abraçar todas as coisas; vejo que o mal é uma ilusão enganosa. Estou justamente agora com uma disposição de ânimo assim, meu querido F. e verto verdadeiras lágrimas de felicidade ao recordar oi carinho e as atenções que tu e tua esposa me proporcionaram. Bendigo o dia em que nasci. Colhi tantas bondades e tanto carinho aqui! E aquele Infinito Amor que me deu o Ser, protege cada um de meus atos, bons ou maus (não te assustes); que eu sou, por acaso, que fui sempre, senão um instrumento em Suas mãos, em mãos Daquele para servir o abandonado de tudo; meu bem-amado, minha alegria, minha vida! Ele é meu brincalhão querido; sou Seu companheiro de jogo. Nada tem razão de ser neste Universo! Que razão pode sujeita-lo, liga-lo? Ele, o meu brincalhão, está jogando; todas estas lágrimas e risos formam parte de Seu jogo. É muito divertido, muito divertido, como disse J.
Este é um mundo cômico e o individuo mais cômico que jamais vistes é Ele – o Bem-amado! Não é uma diversão? Fraternidade ou camaradagem: um montão de meninos traquinas soltos na cancha de esportes que é o mundo! Acaso não é assim? A quem louvar, a quem censurar? Tudo é Seu jogo. Eles pedem explicações, mas como poderíamos lhes explicar Ele? Não tem cérebro e carece de razão. Nos tem enganado dando-nos minúsculos cérebros e razões; mas desta vez já não me encontrará dormindo.
Tenho aprendido uma ou duas coisas: mais além, muito mais além da razão e das palavras e da erudição, está esse sentimento, esse “Amor”, o Amado. Sim, Sake 1, enche nossa taça para que possamos beber e enlouquecer.
Teu para sempre na loucura,
VIVEKANADA
1.
Sake: denominação persa dada às mulheres que serviam bebidas aos reis e nobres.
(7)
UM AMIGO AMERICANO
Alameda, Califórnia. 12 de abril de 1900.
A Mãe se torna propícia uma vez mais. As coisas prometem. Assim tem que ser.
O trabalho sempre traz consigo o mal. Tenho pagado o mal acumulado, com má saúde. Alegro-me. Minha mente está muito melhor graças a isso. A vida tem agora para mim, uma doçura e uma serenidade que jamais tive antes. Estou aprendendo que estar apegado é o mesmo que desapegado e mentalmente chegar a ser meu próprio dono...
A Mãe está fazendo seu próprio trabalho; pouco me preocupo agora. Traças como eu morrem aos milhares a cada instante; Seu trabalho continua o mesmo. Glória a Mãe! Só e flutuando na corrente da vontade da Mãe, vivi minha vida inteira. Se em algum momento tive a intenção de romper isto, de imediato fui lastimado. Faça-se Sua vontade!
Sinto-me feliz, em paz comigo mesmo e mais sannyasin que nunca. O afeto às minhas amizades e familiares diminui a cada dia e de minha Mãe aumenta. As recordações de longas noites de vigília com Sri Ramakrishna, sob a árvore baniana de Dakshineswar, se despertam uma vez mais. E o trabalho? Que é trabalho? De quem é o trabalho? Para quem é o trabalho?
Sou livre. Sou o filho de minha Mãe. Ela trabalha, ela joga. Por que hei de fazer planos? Que plano hei de fazer? As coisas vieram e se foram, justamente como ela quis, sem meus planos. Nós somos seus autômatos. Ela é a que tira os elos.
VIVEKANANDA.
(8)
Alameda, Califórnia, 18 de abril de 1900.
Minha querida Joe:
Acabo de receber sua carta de boas-vindas, juntamente com a do Sr. B. Lhe dirijo a presente a Londres. Alegro-me muitíssimo de que a Sra. L. esteja em vias de melhoras.
O trabalho sempre é difícil; rogue por mim, Joe, para que meu trabalho cesse para sempre e minha alma seja absorvida na Mãe. Só Ela conhece Suas obras.
Deve estar o senhor contente de achar-se novamente em Londres, com os velhos amigos; expresse a todos meu carinho e agradecimento.
Estou bem, muito bem mentalmente. Sinto mais o descanso da alma que o do corpo. As batalhas se ganham e se perdem. Já embrulhei meu equipamento e estou esperando o grande libertador.
“Shiva, oh Shiva, conduz minha barca a outra margem!”.
Depois de tudo, Joe, sou somente aquele rapaz que escutava, transportado e embevecido à maravilhosa palavra de Ramakrishna sob a árvore baniano de Dakshineswar. Essa é minha verdadeira natureza; os trabalhos e as atividades, o fazer o bem e o demais, são tudo sobre-imposições. Agora ouço de novo sua voz, a mesma voz de antes que me estremece a alma. Minhas ligações estão rompendo-se, o amor morre, o trabalho perde seu sabor, a vida já não tem esse brilho deslumbrante. Só ressoa a voz do Mestre chamando.
- “Já vou, Senhor, já vou”.
- “Deixa que os mortos enterrem os mortos; tu vens e segue-me”.
- “Já vou, meu Senhor muito amado, já vou”.
Sim, já vou. Ante mim se estende o nirvana. O sinto a momentos, esse mesmo oceano infinito de paz, sem a menor onda, sem a mais leve brisa.
Alegro-me de ter nascido, alegro-me de ter sofrido, alegro-me de ter cometido grandes desatinos, alegro-me de penetrar na paz. Nem deixo ninguém ligado nem levo ligações. Seja que este corpo caia e deixe-me livre, seja que alcance eu a liberação, estando mesmo no corpo, o homem que eu era desapareceu, se foi para sempre e nunca voltará.
O guia, o guru, o dirigente, o mestre morreu; só fica o rapaz, o estudante, o servidor.
Compreenderá agora porque não quero intrometer-me com...? Quem sou eu para intrometer-me com alguém, Joe? Faz muito que abandonei meu posto de dirigente; eu não tenho o direito de elevar minha voz. Desde o começo deste ano nada foi dito na Índia. Bem sabe o senhor. Muito obrigado por tudo que o senhor e Sr. B. foram para mim no passado. Que todas as bênçãos fiquem com os senhores para sempre! Os instantes mais doces de minha vida foram aqueles em que me deixei arrastar pela corrente; de novo estou flutuando e me leva a água – além, no alto, brilha o sol cálido – abundante vegetação me rodeia por tudo – tudo está quieto e silencioso, como adormecido pelo calor – e me deixo flutuar à deriva no cálido coração do rio. Não me atrevo a movimentar as mãos nem os pés, tal é meu temor de romper esta maravilhosa quietude, tão maravilhosa em verdade, que me faz estar seguro de que é uma ilusão!
Por detrás de meu trabalho havia ambição, por detrás e meu amor havia personalidade, por detrás e minha pureza havia medo, por detrás do quanto fiz por dirigir aos homens havia a sede de poder 1. Tudo isso está se desvanecendo agora; me leva a corrente. Já vou, Mãe, já vou a Teu cálido seio, vou flutuando onde Te queira conduzir-me, ao estranho país do silêncio, já vou. Sou expectador, já não sou ator!
1.
A existência fenomenal implica impureza. O swami fala aqui do ponto de
vista do Absoluto, com o qual está agora identificado. (Ed.).
Ai, que tranqüilo está tudo! Meus pensamentos parecem chegar de muito longe, das longínquas profundidades do próprio coração. Parecem sussurros distantes e apagados; e a paz está sobre todas as coisas, uma paz doce, doce – como a que se sente durante uns curtos instantes antes de dormir, quando os objetos são vistos e percebidos como sombras – sem medo, sem amor, sem emoções – a paz que alguém sente estando só e rodeado de estátuas e pinturas. Já vou, Senhor, já vou!
O mundo não é nem formoso nem feio, mas como sensações que não suscitam emoção alguma. Supera-se, oh Joe, a felicidade deste estado! Tudo é bom e belo, pois as coisas estão perdendo para mim suas proporções relativas, meu corpo entre as primeiras. OM, Aquela Existência!
Espero grandes coisas para todos os senhores em Londres e Paris; novas alegrias, novos benefícios para a mente e o corpo.
Com afetos como sempre para o senhor e Sra B.
Seu fielmente,
VIVEKANANDA.
POEMAS
“O CANTO DO SANNYASIN”
1
Swami Vivekananda
1. Composto em Thousand Island Park, N. York, em junho de 1895.
Faz vibrar a nota! O canto que nasceu
muito longe, onde mácula alguma do mundo jamais pode chegar;
nas cavernas das montanhas e nas clareiras das frondosas selvas,
cuja calma nenhuma ânsia de luxúria, fama ou fortuna
atreveu-se jamais a turbar; ali onde fluía a corrente
de sabedoria, verdade e a felicidade que a segue.
Eleva essa nota, sannyasin valente! diz: “Om tat sat, Om!”
Rompe teus grilhões! Laços que te atam,
de ouro reluzente ou metal mais obscuro e baixo;
amor, ódio – bem ou mal – e todas as dualidades.
Sabe-o, o escravo acaricia o açoite, escravo é, e nunca livre;
porque os grilhões não atam menos por ser de ouro;
então, fora com eles Sannyasin valente! Diz: “Om tat sat, Om!”
Dissipa a obscuridade; o fogo fátuo que leva
com luz cintilante a acrescentar sombras sobre sombras.
Extingue para sempre esta sede de vida que arrasta
a alma de morte à nascimento, de nascimento à morte.
Conquista tudo quem conquista o eu. Sabe isto
e não te rendas nunca, sannyasin valente! diz: “Om tat sat, Om!”.
“Quem semeia colhe – dizem – e a causa trará
o seguro efeito; ou bom; ou mal, mal; e nada
escapa à lei. Mas quem leva uma forma
deve arrastar a cadeia”. Demasiado certo; mas mais além
do nome e da forma está o Atman, sempre livre.
Sabe que tu és Aquele, sannyasin valente! diz: “Om tat sat, Om!”
Ignoram a verdade quem sonha sonhos tão vazios
como pai, mãe, filhos, esposa e amigo.
O Eu Supremo sem sexo! De quem és pai, de quem és filho?
de quem amigo, de quem inimigo Ele que é só Uno?
O Eu Supremo é tudo em tudo, nada mais existe;
e tu és Aquele, sannyasin valente! diz: “Om tat sat, Om!”
Só há Uno – e Livre – o Conhecedor – o Eu Supremo!
sem nome, sem forma ou mancha.
Nele está a maia, sonhando todo este sonho.
Ele, a Testemunha, aparece como natureza e alma.
Sabe que tu és Aquele, sannyasin valente! Diz: “Om tat sat, Om!”
Onde tu buscas? Essa liberdade, amigo, nem este mundo
nem aquele podem dar-lhe. Vã é
tua busca em livros e templos. É só tua a mão que sujeita
a corda que te arrasta. Cesse então teu lamento,
solta a corda, sannyasin valente! diz: “Om tat sat, Om!”
Diz, “Paz a todos; de mim não há perigo
para coisa alguma vivente; naqueles que moram no alto,
naqueles que se arrastam pelo chão, eu sou o Eu Supremo em todos!
renuncio a toda vida aqui e mais além,
a todos os céus e terras e infernos, a todas as esperanças e temores”.
Corta assim todos teus laços, sannyasin valente! diz: “Om tat sat, Om”
Não te importe mais como este corpo vive ou se vá,
sua tarefa está feita. Deixa que o carma o arraste em sua corrente;
que alguém lhe ponha grinaldas
e outro pisoteie
esta figura; nada digas. Não pode haver elogio ou vitupério
onde o que louva e é louvado, o caluniador e o caluniado são um.
Seja, assim, tranqüilo, sannyasin valente! Diz: “Om tat sat, Om!”
A verdade nunca chega onde a luxúria, a fama
e o afã de lucro residem. Nenhum homem que pensa em uma mulher
como esposa, pode ser perfeito;
nem aquele que possui a mínima coisa, nem aquele
a quem encadeia a ira podem passar pelas portas de maia.
Assim, que, abandona tudo isso, sannyasin valente! diz: “Om tat sat, Om!”
Não tenhas lar. Que lar pode conter-te, amigo?
O céu teu teto; a relva teu leito; e alimento
aquele que traga o acaso, bem ou mal cozido, não o julgue.
Nem comida, nem bebida alguma podem manchar aquele nobre Eu Supremo
que conhece a Si Mesmo. Como rio impetuoso e livre
sê sempre tu, sannyasin valente! Diz: “Om tat sat, Om!”
Só poucos conhecem a verdade. Os demais te odiarão
e se rirão de ti, oh grande!, mas não prestes atenção.
Vê tu, o livre, de lugar em lugar a ajuda-los
a sair da obscuridade, do véu de maia. Sem
medo da dor e sem buscar prazer,
transcendendo a ambos, sannyasin valente! diz: “Om tat sat, Om!”
Assim, dia após dia, até que extinguido o poder do carma
se libere a alma para sempre. Não há mais nascer,
nem eu, nem tu, nem Deus, nem homem. O “Eu”
se tornará o Todo, o Todo é “Eu” e é Felicidade.
Sabe que tu és Aquele, sannyasin valente! diz: “Om tat sat, Om!”
“ A T A Ç A ”
Swami Vivekananda
Esta é tua taça, a taça que te foi destinada desde os
começos do tempo,
Bem sei, filho Meu, até que ponto o obscuro veneno que
contém
foi fabricado por ti mesmo, com tuas faltas e paixões, em
idades remotas,
além dos profundos anos de ontem. Eu sei.
Este é teu caminho, um caminho angustioso, monótono,
fatigante.
Eu mesmo fiz as pedras que te impedem todo repouso.
Eu preparei para teu amigo sendas agradáveis e luminosas
pelas quais chegará, o mesmo que tu, a Meu peito.
Mas tu, filho Meu, deves caminhar por tua senda.
Esta é tua taça. Carece de alegrias e privilégios,
mas não foi designada para outra mão que não a tua,
e em Meu universo tem destinado teu lugar;
execute-a, não peço que compreendas.
Te peço que feches os olhos para ver minha face.
“ P A
Z “ 1
Swami Vivekananda
Olha! Chega com toda sua potência
essa força que não tem poder,
essa luz que está na obscuridade,
essa sombra de uma luz deslumbrante.
Essa felicidade que jamais alcançou expressar-se,
e dor que não sente, de tão profunda.
É a via imortal não vivida,
a eterna morte não chorada.
Não é alegria nem pena,
senão aquele que entre ambas está;
nem é a noite nem a alvorada
senão o que as une.
É doce pausa na música,
descanso breve na arte sagrada,
silêncio que se produz ao falar;
e entre dois paroxismos de paixão
ela é a paz do coração
É beleza jamais contemplada,
amor solitário que em seu isolamento se afirma,
É uma canção vivente que nunca será cantada,
é a sabedoria que jamais conheceremos.
É a morte entre duas vidas,
entre dois tormentos a quietude que embala.
É o vazio de onde surgiu a criação,
esse aterrador vazio ao qual retornará.
Ali vai parar a lágrima,
para se transformar em sorriso.
É a Meta da Vida
e teu único lar: é a Paz!
1. Composto em Ridgeley Manor, New York, ano 1899.
“O HINO AO SAMADHI “ 1
Swami Vivekananda
Vede! O sol não existe; nem existe a faceira lua;
extinta está toda a luz; no imenso vazio do espaço
flutua como uma sombra a imagem do universo.
No vazio da mente que a si mesma se contempla, flutua
este universo fugaz; flutua, se funde e de novo ressurge,
e torna a fundir-se, interminavelmente, na corrente “Eu”.
Lenta, lentamente, a sombra-multidão
penetrou na matriz primária, e flutuou sem cessar
a corrente única, o “Eu sou, eu sou”.
Vede! Deteve-se. Nem sequer essa corrente flutua já.
O vazio se dissolveu no vazio, mais além da fala e do
pensamento.
Aquele cujo coração compreende, na verdade compreende.
“ 4 DE JULHO “ 1
Swami Vivekananda
Olha! Já se dissolvem as obscuras nuvens
que durante a noite se agruparam em densas massas, qual
fúnebre mortalha disposta a envolver a terra.
Teu toque mágico desperta o mundo.
Os pássaros cantam em coro.
Erguem as flores suas corolas,
que parecem estrelas umedecidas de orvalho,
e ondulantes te dão as boas-vindas.
Abrem os lagos amorosamente
seus cem mil olhos de loto
para agasalhar-te, com toda sua profundidade.
Todos te aclamam, Senhor da Luz!
Bem-vindo seja hoje, oh Sol. Hoje derramas Liberdade.
Pensa no muito que o mundo tem estado esperando-te
e clamado por ti, em todos os tempos e todos os climas.
Alguns abandonaram seu lar e o carinho dos seus
e partiram em busca de ti, expatriando-se por própria
vontade
e cruzando intermináveis oceanos, selvas primitivas
donde cada passo entranhava uma luta de morte.
Até que chegou o dia em que seu labor deu fruto, e deu fruto
sua devoção, amor, sacrifício,
cumpridos, aceitos e completados.
Então tu, propício, apareceste para derramar
a luz da Liberdade sobre a humanidade
Segue avançando, oh Senhor, por tua irresistível senda!
Até que tua melodia se estenda sobre a terra toda,
até que cada comarca reflita tua luz,
até que homens e mulheres, com cabeça erguida,
contemplem suas cadeias rompidas e sintam,
preenchidos de alegria, que sua vida ficou renovada.
1.
É bem sabido que a morte do swami Vivekananda (ou sua ressurreição,
como preferem alguns chamá-la) ocorreu em 4 de julho de 1902. No dia 4 de julho
de 1898 ele se encontrava viajando com alguns discípulos americanos por
Cachemira e querendo contribuir com a conspiração familiar para a celebração
desse fato, a declaração americana da independência, preparou este poema que
foi lido em alta voz durante o desjejum e logo cuidadosamente conservado por
Sthira Mata.
“MEU JOGO TERMINOU”
Swami Vivekananda
Alçando-me
de contínuo e de contínuo fundindo-me com as ondas do tempo, sigo arrastado, no
entanto, pelo fluxo e refluxo da vida, contemplando cenas a qual mais
transitória, a qual mais efêmera.
Ai! Estou
farto desta interminável farsa. Já não me deleita
este
contínuo perseguir sem nunca alcançar, sem sequer vislumbrar a margem.
De vida em
vida sigo esperando ante as portas. Ai de mim! Não se abrem.
Meus olhos
se nublam de tanto vão esforço por captar sequer um raio da luz desejada.
De pé
sobre a estreita ponte desta pequena vida, contemplo a meus pés
a multidão que chora, ri e
trabalha. Para quê? Ninguém pode sabe-lo.
Ante mim se erguem aqueles portais obscuros e ameaçadores, dizendo-me: “Daqui não passarás;
este é o limite; não tentes o destino, suporta-o como melhor puder;
vê,
mescla-te com essa multidão e bebe dessa mesma taça e volte-te tão louco como
eles.
Quem
intenta saber, só dor alcança; detenha-se, pois, e fica com os demais”.
Infeliz de
mim, que não posso repousar! Nem esta bolha flutuante, a terra,
nem sua
forma oca e seu oco nome, nem seu oco morrer e seu oco viver,
nada
significam para mim! Quanto anseio transcender a casca
do nome e
da forma! Abre, abre as portas! Para mim devem abrir-se.
Abre as
portas da luz, oh Mãe, a este Teu fatigado filho.
Quanto,
oh, quanto desejo regressar a meu lar! Mãe, meu jogo terminou.
Me
enviaste a jogar na obscuridade e te pusestes uma espantosa máscara;
então a
esperança fugiu, chegou o terror, e o jogo se converteu em dever.
Jogado de
um lado a outro, atirado de uma a outra onda neste fervente e embravecido mar
de
tremendas paixões e angústias profundas, donde a dor é e a alegria talvez
será;
onde a
vida e a morte vivente, ai, e a morte... quem sabe se será
outro
começo, outra volta que do girar desta velha roda do pesar e da alegria?
Onde os
meninos sonham dourados e brilhantes sonhos, para
descobrir
demasiado cedo que só são pó,
e logo
voltar a vista para a perdida esperança e a vida
convertida
em um montão de ferrugem!
Demasiado
tarde chega com os anos o conhecimento; apenas abandonamos a roda
outras
vidas viçosas e jovens lhe aplicam sua força, e assim prossegue girando
de dia em
dia e de ano em ano. Não é senão joguete da ilusão;
a falsa
esperança constitui seu motor; o desejo, sua nave, seus raios são a alegria e a
dor.
Vou a
deriva, sem saber para onde. Salva-me deste fogo!
Salva-me,
Mãe misericordiosa, de flutuar com o desejo!
Não voltes
para mim Teu rosto de espanto, que não poderia eu suportar;
mostra-te
misericordiosa e carinhosa comigo; esquece-te de repreender minhas faltas;
eleva-me,
oh Mãe, àquelas praias onda as lutam para sempre cessam;
mais além
de todas as angústias, mais além das lágrimas,
mais além
até da felicidade terrena;
cuja
glória nem o sol, nem a lua, nem as estrelas rutilantes,
nem o
fulgor do relâmpago consegue expressar. Tão só refletem sua luz.
Não
permitas que os enganosos sonhos voltem jamais a me ocultar Teu rosto.
Meu jogo
terminou, oh Mãe. Rompe minhas cadeias e dá-me a liberdade!
(Escrito
na primavera de 1985, em Nova York).
Swami Vivekananda
O coração
da Mãe, a vontade de um herói,
a
suavidade das mais suaves flores;
o encanto
e a força que eternamente fazem flutuar
as chamas
brincalhonas do sagrado fogo do altar;
a
fortaleza de ânimo que conduz e guia, mas sabe obedecer quando ama;
sonhos de
longo alcance; modos pacientes;
Fé eterna
em teu próprio Ser e em tudo o quanto existe;
atiçar a
luz divina nos grandes seres e nos mais ínfimos;
Tudo isto,
e mais o que alcanço imaginar,
queira
hoje concede-lo a “Mãe”.
Sempre seu
com carinho e bênçãos,
1.
Escrita para uma discípula americana de Perros
Guirce, Inglaterra,setembro 22 de 1900.
ÍNDICE
Prefácio
O swami
Vivekananda
Postulados
Discursos
no Congresso das Religiões
O ideal do
karma-yoga
O segredo
do trabalho
Os primeiros passos para bakthi
O mestre da espiritualidade
A necessidade de símbolos
Sobre espiritualidade prática
A filosofia vedanta
Maia e ilusão
O homem real e o aparente
O ideal da uma religião universal
Cristo, o Mensageiro
Meu Mestre
O senhor Buda
Discussão na Universidade de
Harvard
Práticas inspiradas
Cartas
Poemas
Esta
edição de 3.000 exemplares
terminou
de imprimir nas
oficinas
gráficas errece
Balbastro
5902 – Buenos Aires
República
Argentina
No mês de
abril de 1977
Contra capa:
HORUS
Há seres cujos alcances escapam às precisões de quem, ansiando pelo desenvolvimento material, esquecem a evolução de princípios motores de acentuada incidência no progresso espiritual da humanidade. Na verdade, o sutil implica na purificação do denso e esse processo contínuo e irreversível traz consigo, na manifestação múltipla, reflexos reveladores revestidos de aparências visíveis e tangíveis, para que a ilusória ignorância ceda o passo ao Conhecimento da Verdade.
O Swami Vivekananda é um dos escolhidos que soube, com devoção e total entrega a seus ideais, estampar com o pensamento, a palavra e a obra, o selo indelével da Divindade, em sua passagem pela terra. Suas conferências, discursos, práticas, poemas e epistolário, constituem a síntese de uma vida posta ao serviço da humanidade.
Aquele 4 de julho de 1902, quando o Swami Vivekananda, despojado das ligações carnais, absorveu-se no Eterno e Incognoscível, sua mensagem começou a cobrar características formais de real digesto reformador.
Correspondeu ao Swami Pavitrananda o mérito de recopilar a maioria dos escritos do Mestre. Planificadamente foi compilando o mais representativo, autêntico e comovedor daquele excelso guia espiritual.
Em uma época em que discórdias de todo tipo parecem enlouquecer com este minúsculo planeta da galáxia, a palavra do Swami Vivekananda chega até nós para nos recomendar as virtudes essenciais que nos permitirão alcançar a transcendência tanto tempo desejada. Tolerância, respeito, auto-perfeição, amor e paz, são o cajado que nos entrega aquele erudito Escolhido para salvar com inteireza os escarpados trechos do Sendero da Vida... Sua doutrina é objetiva e cordial, e pode resumir-se com suas próprias palavras:
A verdade é meu
Deus, o universo minha pátria.